Amor narcísico, o amor da angústia e da
incompletude
Angústia, poder-se-ia definir, usando
uma metáfora bíblica, é a busca do nostálgico e utópico paraíso perdido, o
reino celeste, angelical e perfeito do qual decaímos depois do pecado original.
Desde então, segundo o mito religioso da criação, narrado no Gênesis, nós
procuramos esse lugar perdido, esse objeto ao qual, numa catexia angustiante,
dirigimos todos os nossos investimentos psíquicos, de maneira especial as
fantasias, pulsões e desejos. A impossibilidade ou limitação do real, tão
contingente quanto os humanos, transforma em sintoma, na forma de angústia, a
perseguição aflitiva e excruciante a esse objeto perdido, mas nunca encontrado.
Como o paraíso é, apenas, uma
ilusão de onipotência narcísica, tão irreal e inalcançável quanto a felicidade
plena e sem dor, nada do que fazemos, para o bem ou para o mal, consegue
gratificar o desejo e a pulsão de encontrar esse objeto perdido. Sendo
ilusório, ele está — e sempre estará! — um passo adiante de nós, renascendo,
como angústia, a cada passo que damos na sua direção, e ressignificando, como
insatisfação, os desejos já eventualmente gratificados. Uma nova utopia
substitui a anterior, toda vez que nos aproximamos, tropegamente, do nosso
objeto perdido, um lugar pessoal e intransferível que só existe no campo dos
nossos próprios desejos.
Mas o que isso tem a ver com amor
narcísico? Tem tudo a ver! Por enquanto, apenas confie em mim. Retomemos, pois,
o fio da meada, para encontrar significantes e significados comuns — a mim e a
você —, enfim, uma linguagem universal que traduza os sentimentos de que
estamos falando.
Amor narcísico, numa abordagem simplista,
é o que nasce da dependência emocional em relação à alteridade, da escravidão
afetiva aos desejos e caprichos do parceiro, um sentimento angustiante que me
faz depender do outro e seus referenciais, para me sentir vivo.
Alieno-me de mim mesmo e só me
reconheço e me identifico como sujeito na medida em que me enlaço com esse
outro, um ser humano idealizado que, ao menos ilusoriamente, me completa e
define. Eu preciso desse outro, eu me alimento da sua energia vital e, malgrado
a impossibilidade e o desatino dessa empreitada amorosa entre seres que só
existem na fantasia, eu tento-me tornar, com ele, duas pessoas em um só corpo.
Como um bebê em relação à sua mãe, eu absorvo do parceiro o leite da
completude, os pedaços que me faltam, para me construir como sujeito. Nem assim,
contudo, eu me torno um ser humano inteiro.
Mas por que seria narcísico esse amor
idealizado? esse enlaçamento afetivo em que me busco no outro? já que não
existiria, neste caso, a imposição do meu próprio ego em detrimento do parceiro, a tentativa de encobrir a vontade do
outro com os meus desejos e pulsões!? Será mesmo verdade?
A resposta é mais simples do que se
poderia imaginar num exame apressado e superficial: na relação de amor
narcísico, ao contrário do que aparenta à primeira vista, o outro não me
importa, mas apenas eu mesmo e a minha própria felicidade, se necessário em
sacrifício dele. Esse tipo de relação afetiva, necessariamente devocional e, ao
mesmo tempo, vampiresca, só traz angústia, pois eu só existo no outro, ou seja,
fora de mim; só o sangue dele abranda, temporariamente, a minha sede. Eu busco
no parceiro, e não em mim mesmo, a minha identidade como sujeito, mas nunca
realizo o desejo ilusório da completude. A busca pelo meu objeto afetivo perdido
— o paraíso dos sentimentos e emoções que personifico como a criatura seráfica e
perfeita em que descarregarei o amor represado no peito, um ser idealizado e inexistente
entre humanos — está na raiz da minha angústia. Eis a metáfora do paraíso
perdido!
De fato, toda angústia nasce de uma
perda, normalmente de algo que não existe ou que não está definido. Como o
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, os objetos que eu persigo e contra os quais
duelo são moinhos de vento. Jamais os vencerei, apesar da luta insana e sem fim
a que me dedico. Essa angústia me faz buscar um objeto perdido e incerto,
impossível de ser alcançado, o parceiro ideal, que, aflitivamente, será sempre
o próximo. Mesmo quando, eventualmente, eu o alcanço, não raro fazendo
sacrifícios pulsionais ainda mais aflitivos e penosos, a minha angústia infinda
desloca-o para outro objeto, também perdido. Nunca estou plenamente satisfeito.
Os desejos que não realizei, normalmente incertos e difusos, acabam contaminados
pela angústia, transformando em desprazer os instantes de gozo pelos objetos,
outrora perdidos, que vou encontrando na caminhada existencial. Inicia-se um
círculo vicioso com breves momentos de prazer e longos e angustiantes dias de
insatisfação.
Ainda pior do que desistir dessa busca
angustiante pelo objeto perdido, contudo, é deixar de se indignar com o fato de
haver desistido, é conformar-se com o abismo existencial. Quando se chega a tal
ponto de indiferença em relação ao destino, o homem dissolve-se em suas
próprias memórias, e o abismo o devora. Desse ponto em diante da sua
existência, todo dia vivido se torna um suplício, toda conquista, uma droga
para aliviar a insuportável dor de existir. Nada o satisfaz plenamente!
A vida humana, inevitavelmente centrada
na angústia, é medida pelo que poderia ser, e não pelo que de fato é. O ritmo
da existência é percebido como devir, e não como tempo presente; percebe-se nas
águas que correrão um dia, e não nas que correm agora, neste recorte do espaço
tempo; persegue-se a felicidade em algo que faremos no porvir, e nunca na
cotidiana realidade do tempo atual; na pessoa que nos tornaremos no futuro, e
raramente no ser humano que somos agora. Esse desejo infinito e torturante de
se tornar algo diferente, muitas vezes ilusório, acaba sendo a prisão sem
grades em que sepultamos a felicidade que poderíamos viver no agora, se não nos
prendêssemos à dimensão do tempo a ser vivido.
É cruel e irônica a percepção do tempo
vivido: quanto maior o prazer que experimentamos, mais rápido ele passa; quanto
maior é o martírio da existência, quanto mais profundo é o poço em que nos
precipitamos, mais ele se arrasta. O que é bom dura pouco; só o que machuca
persiste... e insiste...
No entanto, ele passa sempre da mesma
forma, na sua cadência própria, feita de horas, minutos e segundos, indiferente
aos nossos lamentos e desenganos, alegrias e sorrisos. Um minuto tem sessenta
segundos; uma hora, sessenta minutos; um dia, vinte e quatro horas... Bem
simples, não?! Mas a física não explica a dimensão dos afetos, não transita
pelas emoções e sentimentos, que alteram, para mais ou para menos, a percepção heterogênea que temos desse homogêneo fluir do tempo.
Toda relação afetiva inicia-se como um
enlaçamento narcísico, pois, nesta fase, que pode ter a duração do próprio
romance, só revelamos ao outro o nosso lado iluminado, deixando no oblívio as
neuroses, angústias e podridões que nos acompanham. Malgrado a nossa fantasia
de identificação com a divindade, o lado diabólico, que negamos em nós próprios,
pleno de sombras e obscuridades, constitui parte indissociável do que somos e
nos tornamos. Essa é a fase da paixão e do encantamento, necessariamente
narcísica e ilusória. Nessa etapa, negamos as nossas sombras e idealizamos a
luz que desejamos ter. Do outro, só aceitamos o que é espelho.
Contraditoriamente, porém, tentamos
lamber o espelho, para tirar do outro o sal da vida, a completude ilusória que
perseguimos como se fosse um objeto perdido, e não uma quimera. Vemos o outro
como espelho do que somos, identificamo-nos com a visão que temos desse outro.
Contudo, filtramos a imagem que ele nos devolve com as lentes da nossa
percepção narcísica, extraindo dele o que desejamos para nós próprios.
A centralidade do nosso próprio ego contamina o olhar que lançamos sobre
a alteridade, compelindo-nos a perseguir, como ideal, um ser humano completo e
doador de pedaços psíquicos que não existe no mundo real, justa e precisamente o
objeto perdido dos nossos afetos, o anjo do nosso paraíso perdido. O outro só
nos bastará por algum tempo, quase sempre enquanto as nossas ilusões egóicas
filtrarem a sua personalidade real, devolvendo-nos, não por acaso, apenas o que desejamos ver. Logo, ele será substituído por outro doador de completude, até que a imagem perfeita e
idealizada desse outro, por sua vez, também se desfaça no éter da realidade. A
imagem da perfeição, que vemos na alteridade, é apenas o reflexo de como nos
vemos narcisicamente. No espelho de Narciso, só é belo o autoreflexo.
Como vencer, mesmo temporariamente,
essa sede insaciável pelo objeto perdido? essa vontade vampiresca de beber,
todos os dias, um sangue novo nunca antes bebido? um amor perfeito nunca antes vivido?
Novamente, a resposta é mais simples do
que aparenta: quando confiamos ao outro e, dessa forma, descarregamos nele as
nossas neuroses e angústias, e o outro, em contrapartida, oferece-nos uma
escuta, mesmo silenciosa, nasce o amor, que será recíproco, se o outro fizer o
mesmo movimento em sentido contrário.
A paixão transforma-se em amor correspondido, quando os parceiros — renunciando à alienação narcísica inicial, ao olhar
egoísta sobre o próprio umbigo, à projeçao na alteridade das suas próprias sombras — colocam as angústias um no outro e são
escutados, mesmo em silêncio. O que o outro deseja, na maior parte das vezes, é
apenas ser escutado. Permita que ele coloque em você a angústia que lhe transborda
do peito, ainda que, da sua parte, você nada possa fazer para aplacá-la.
Coloque nele, também, as suas próprias angústias, descarregue, com palavras, o
que lhe dói no peito, depure-se num processo de catarse, conte-lhe os seus tormentos,
dúvidas, aflições e agonias, mesmo que ele não possa oferecer lenitivo.
A angústia relaciona-se,
instrumentalmente, com o desejo, sendo tanto mais forte e avassaladora quanto
mais ilusório e inalcançável for o objeto perdido. E, contudo, nunca deixamos
de persegui-lo, sendo a busca menos angustiante, quando fazemos dela própria, e
não do encontro, o motivo do gozo existencial.
Falei sobre assuntos que não domino,
fiz gala da minha própria ignorância — diria o Marquês de Maricá —, tergiversei
sobre o amor narcísico, mas permanece, incólume e obscura, uma indagação ou, mais
apropriadamente, uma curiosidade: quem seria o objeto perdido, em se tratando
dos meus afetos?
Alguém que me lembre quem eu sou,
quando eu me esquecer; alguém que me conte os meus sonhos, quando eu os houver
adiado; alguém que me liberte de mim mesmo, quando eu me fizer cativo da
desesperança; alguém que me ilumine, quando eu caminhar na escuridão; alguém
que respire por mim, quando eu sufocar no silêncio; alguém que se torne uma
pergunta dirigida ao mundo, e que não se acomode com a resposta que o mundo
oferecer; alguém que seja o seu próprio enigma, e não o reflexo do meu Narciso.
Eu não a procurarei, apesar do desejo; eu não farei qualquer movimento na
direção dessa mulher ideal. Ela que abafe, com palavras que me encantem, o não
amor que eu grito com o meu silêncio! Ela que sobrepuje as muralhas do meu castelo! Ou permanecerei solitário, por maior que seja o preço que tenha de pagar na forma de angústia.
Utopia? Ilusão? Apenas amor narcísico?
Se fosse fácil, não teria valor. Mas eu não me iludo!... não mais: já descobri que o paraíso perdido não existe e o objeto afetivo que persigo é
ilusório. Contudo, ele me estimula a caminhar, sem perder o ânimo e sem me precipitar no abismo da desesperança. O perigo, que sempre me ronda, é tornar-me escravo de um desejo que pode, a pouco e pouco, incendiar-me.
A nostalgia bíblica do paraíso perdido, essa busca por algo que não existe, está na raiz de toda a nossa angústia. E não pense que é possível extinguir a angústia, apenas abolindo o desejo e sublimando a sensação atávica de perda do objeto desejado: a ausência de desejo, assim como a incapacidade de desejar são fontes, elas próprias, de intensa, perturbadora e inquietante angústia.
A nostalgia bíblica do paraíso perdido, essa busca por algo que não existe, está na raiz de toda a nossa angústia. E não pense que é possível extinguir a angústia, apenas abolindo o desejo e sublimando a sensação atávica de perda do objeto desejado: a ausência de desejo, assim como a incapacidade de desejar são fontes, elas próprias, de intensa, perturbadora e inquietante angústia.
O amor narcísico, em sua definição mais
singela, é o amor da incompletude e da angústia. Inevitável entre humanos, quase
sempre doloroso, raramente assintomático, pleno de memórias recorrentes, assim
ruins como boas, umas torturantes, outras reconfortantes, ele é indelével em
suas cicatrizes emocionais, porém necessário e insubstituível no longo e
difícil processo para a construção do sujeito.
Apaixonar-se pelo impossível é sintoma
clássico de angústia e, não raro, de neurose obsessiva; manter-se nos limites
do possível é, portanto, o melhor que podemos fazer para lidar com o objeto
perdido. Por isso, amigo leitor, nunca persiga um objeto impossível de ser
alcançado, nem entre numa batalha que não possa ser vencida! Isso vale para o
amor e, de resto, para tudo na vida.
Como disse Charles Baudelaire,
“Esta vida é um hospital em que
cada doente é dominado pelo desejo de mudar de leito.”. (Pequenos
poemas em prosa: o Spleen de Paris —. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
n. XLVIII)
Angústia é esse mudar interminável de
leito, essa busca insana pela cama do hospital em que, embalde, irei morrer.
Mas confesso que ainda estou vivo, perseguindo instantes fugazes, nesse mundo
de coisas findas. Por quanto tempo? Pouco, talvez... e com muita sorte...
Jorge Araken Filho,
apenas a voz, abafada e distante, do inconsciente coletivo.
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