Puto com a porra da vida, fodido, não pago, mas sobrevivendo
nesse mar de giletes!
Alguns leitores — sugestionados,
talvez, pelo meu passado de aparências, mulheres bonitas, festas banais, roupas
de marca e bons restaurantes — não imaginam as batalhas diárias da minha existência,
lutas inglórias e solitárias que arrosto contra a miséria, nesses tempos de
escritor.
Poucos se dão conta do que sinto, no
corpo e na “alma”, ao escutar: — “procure um emprego!” Porra, o meu emprego é
escrever! Eu acordo às quatro da madrugada todos os dias da semana, inclusive
aos domingos e feriados; escrevo sem interrupções, por horas a fio, mas dizem
que que eu não trabalho.
O toque da alvorada sempre me alcança
escrevendo, e o crepúsculo nunca me surpreende com os dedos pousados no ócio.
Nos instantes mais sublimes da criação, quando, já vencido pelo cansaço, eu começo
a perder o fio das palavras, surgem-me, misteriosas, as narrativas que busquei,
embalde, ao longo do dia. Elas brotam, aflitas, das profundezas da minha mente atormentada,
penetrando, a pouco e pouco, os esconderijos da noite. Perdido entre delírios,
eu vou construindo os diálogos mais sórdidos, tecendo as tramas mais sombrias,
as narrativas mais burlescas, mesmo sem recompensas palpáveis; nada além do
imenso prazer que tenho de escrever, o único que me resta nessa vida de
desterros, voluntários e involuntários, a que me reneguei. Sem embargo do meu
labor extenuante, ainda me dizem para procurar emprego, como seu eu fosse inimigo
do trabalho. Até o meu ócio é criativo, se você não sabe! Escrever por dez,
doze horas a fio é para poucos. Tente, mas escolha o silêncio! Eu sei a resposta
que você, em pouco tempo, haverá de dar ao meu repto...
Depois que abandonei o Direito e a
Advocacia, para me dedicar exclusivamente à literatura, eu comecei a desfazer,
lentamente, as infinitas memórias da minha vida, tentando transformar as
experiências traumáticas em maturidade, um saudável exercício para quem se
aproxima do flanco descendente da escalada, aquele instante em que começamos a
descer a ladeira e se inicia o lento e inexorável declínio do vigor físico,
quando o corpo já não acompanha os devaneios da mente.
Mesmo sem muitos leitores, eu continuarei
nas trilhas do bom e velho Rocinante, lutando contra moinhos de vento
imaginários, como fazia o engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha em seu
amor por Dulcinea del Toboso. Ser pobre, dir-se-ia miserável, e ainda escrever
— nesse mundo de seres vazios, que não cultivam o hábito da leitura — é bem
pior, talvez, do que desafiar moinhos de vento.
Apesar das forças invisíveis que me
levam a desistir de escrever — e a falta de remuneração é a maior delas —, eu continuarei
sendo essa “metamorfose ambulante”,
indefinível, meio louco, por vezes insensato, que mistura Machado com Proust,
mas não se esquece de Sartre; que almoça com Victor Hugo e janta com Kafka; que
sonha com Freud e se alimenta de Saramago, mas celebra com Vinícius a “Receita de Mulher”, e ainda sonha com
aquela “Mulher sem Pecado”, de Nélson
Rodrigues, trajando, quem sabe, o seu lindo “Vestido
de Noiva”.
Acreditem, amigos leitores, mas eu realmente
sobrevivi ao “Ulisses”, de James
Joyce; fui ao “Inferno” e ao “Purgatório”, com Dante; conheci o
amaldiçoado “Doutor Fausto”, de
Goethe, e o doce “Menino de Engenho”,
do tristemente esquecido José Lins do Rego.
Confesso, porém, que aprendi a ler nos gibis e
nos contos de Perrault, de Andersen e de Grimm, para viajar com o “Pequeno Príncipe”, nas asas do “Correio do Sul”, na doce companhia de
Saint-Exupéry e seu pequeno avião. Na verdade, só queria passar “Cem Anos de Solidão” com os Buendía, de
Gabriel García Márquez.
Com ou sem leitores, eu continuarei a
expiar os meus “crimes”, para, quem
sabe, receber o merecido castigo, com Dostoiévski. Não quero ser pretensioso,
nem arrogante, mas eu gosto mesmo é da “Ilíada”
e da “Odisseia”, e não do Instagram
ou das fotos da última balada, que só revelam, na aparência de beleza e sucesso
enganoso, o vazio de mentes obscuras, o narcisismo de quem nada encontra, em si
mesmo, para alimentar o autoamor.
A culpa — bem o sei! — é do meu pai e
da minha mãe, que me enfiaram nos livros ainda criança, “punindo-me” com
educação e cultura! Agora é tarde para esquecê-los.
Eu quero mesmo é me deliciar com a “Divina Comédia”, aprender, com Ivan
Fiodorovitch Karamazov, que sou “plenamente mortal”, que não existe
ressurreição, para poder, enfim, aceitar a morte com altivez e tranquilidade.
Compreender, finalmente, que não há razão para reclamar que a vida é um só
instante e que, por isso, eu devo amar de verdade, sem esperar recompensa. Amor
é jogo de sedução, e não de poder!
Prefiro viver as angústias de “Guerra e Paz”, com Leon Tolstói, a
perder tempo com as “delícias” do Michel Teló. Amo Baudelaire e Rimbaud, não
tolero mexericos de aldeia e desprezo quem procura a minha alma nos tênis que eu
calço, imaginando que os caminhos da minha existência foram traçados pela Nike,
em alguma fábrica da China.
Que me perdoe o Rei Roberto Carlos, mas
“esse cara sou eu”, ser humano cheio
de falhas, quase sempre solitário, permanentemente insatisfeito, que nasceu nos
livros e vai morrer entre eles! Estou longe da beleza de Apolo, não tenho a
força de Hércules, nem conheço os caminhos do coração feminino e, muito menos,
os segredos da sedução! Não tenho respostas, e mal comecei a descobrir as
perguntas! Mas “esse cara sou eu”:
miserável, mas não escravo; torturado e fatalista, mas não iludido.
Assim, taciturno e azedo, doce a
amargo, triste em alguns dias, alegre em outros, seguirei escrevendo, mesmo que
as minhas palavras não encontrem leitores, como acontece quase todos os dias,
nesse tempo de memes e pequenas
mensagens de 140 caracteres.
A minha página pública do Facebook (“Contos e Crônicas do Araken”), até aqui
um completo fracasso (tem apenas 217 seguidores), permanecerá viva até o meu
derradeiro suspiro, ainda que seja eu mesmo o meu único leitor.
Em que pese andar desestimulado,
agradeço aos 217 amigos que a curtiram, não com a intenção de me lisonjear,
algo que definitivamente não mereço, mas para acompanhar os meus escritos e mal
escritos.
De tempos em tempos, eu faço um “retiro
sabático” e paro de publicar (não de escrever, porém!). Depois de alguns meses
de silêncio virtual, eu reencontro o fio da meada, que se perde, aqui e ali, na
gravíssima depressão que me acomete. Se essa doença insidiosa se curou? De modo
algum! Na verdade, eu comecei a tratá-la, mas desisti da cura. As minhas
resistências em buscar, novamente, a ajuda especializada de que necessito — e
só um psiquiatra resolveria — são bem maiores do que a vontade de curar a
depressão. Escrevo para liberar a peçonha e não morrer envenenado. Só
escrevendo, porém, eu não desisto de viver.
Por mais difíceis e obscuros que sejam
os caminhos que escolhemos trilhar, a vida só chega ao seu fim, triste e
inexorável, quando nos acomodamos ao tédio e vivemos na varanda, sentados em
velhas cadeiras de balanço, abandonados pelos parentes e amigos, esperando o
nosso próprio cortejo fúnebre passar. Eu sinto que estou próximo desse ponto de
dilaceramento. Luto todos os dias contra o meu abismo existencial, faço de cada
passo uma lenta agonia, tentando encontrar a esperança que ficou pelo caminho.
As minhas noites são especialmente difíceis e torturadas. Os espaços vazios da
minha existência — dias de recolhimento, noites de ascetismo e insônia —
estimulam o salto no abismo. Para os depressivos, como eu, sempre existe uma
ponte para pular, um jeito criativo de morrer. A função da literatura, na minha
vida, é dar-me asas para voar. Por ela e através dela, eu resisto e insisto em
ficar vivo, mesmo sem motivos para lutar, mesmo cheio de razões para desistir.
Vagabundo, porém, eu não sou! O que eu
faço para sobreviver? Escrevo! Por que não sobrevivo, então, do que escrevo?
Porque sou escritor, e não agente literário! Por que não contrato um agente
literário? Porque não tenho dinheiro; apenas palavras... e palavras não seduzem
os homens que saberiam vender o meu peixe...
E, contudo, você ainda diz que eu não faço
nada!... Ora, tente fazer o que eu faço: escreva todos os dias do ano, sem receber
um só centavo por suas criações literárias, se você for capaz! Escreva quase
dois mil textos e os publique em um Blog. Ah, que pena! Você não sabe escrever?
É fácil tecer o fio das palavras. Comece da infância, lendo os contos de Andersen,
dos irmãos Grimm e de Perrault; na adolescência, passe para os clássicos, até penetrar,
timidamente, no reino das palavras. Um escritor não se cria do nada, com um
simples estalar dos dedos; ele se constrói ao longo da vida, não com
inteligência sobre-humana, mas com milhares de horas de leitura e centenas de
livros. Para forjar um escritor, não bastam “memes”
e textículos! Elas servem para adestrar ignorantes, palermas e beócios, mas
não para criar literatura. Desista, amigo: 140 caracteres jamais o transformarão
num escritor! Sem “textão”, não existe arte literária. Dedique-se, mesmo assim,
à literatura; faça-o sem recompensas pecuniárias, antes de me reputar vagabundo
ou, pior ainda, antes de me recomendar algo que você, em sua infinita
boçalidade narcísica, aceite como trabalho.
Sobrevivente, meu caro detrator
imaginário, é quem se dedica a desconstruir paradigmas, nesse mundo de "memes" e leituras
confortáveis; é quem faz da literatura a ilusão do sustento digno; é quem
sobrevive de migalhas lançadas ao vento e, ainda assim, persiste em sonhar com a
arte literária; é quem sobrevive, todos as noites, à pulsão de morte, mas não
se curva diante dos caprichos e veleidades do leitor; é quem cria personagens,
para — matando-os — não matar a si
próprio...
Posso até morrer no processo de me
tornar escritor — e essa é uma possibilidade real e até tentadora —, mas não me
renderei jamais! Nem a miséria em que
sobrevivo — dolorosa, intensa e degradante — far-me-á ceder às tentações da literatura
de aluguel. Sejam quais forem os caprichos que o futuro me reserva, eu jamais
me tornarei um escritor de banalidades adoçadas no mel da autoajuda! Prefiro a
morte a escrever o que você deseja ler! E não pense que eu me curvarei diante
de um emprego qualquer. Desistir eu até posso... da vida... mas não de escrever
o que incomoda os leitores.
Jorge Araken Filho, a
pedra no seu sapato de cromo alemão, a espinha de peixe na sua garganta
sensível, o sol do crepúsculo nos seus olhos irritados, o carrapato na sua pele
caucasiana e macia, o piolho no seu cabelo bem tratado, a pedra no seu feijão
bem temperado...
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