quinta-feira, 31 de maio de 2018

O dia certo... (Conto escrito por Jorge Araken Filho)


O dia certo...

Conto escrito por Jorge Araken Filho

— Que noite dos infernos! Por alguns instantes, eu cheguei a pensar que o dia mais especial da minha vida — afugentado, quem sabe, por um ser diabólico — se recusava a amanhecer, não por um capricho qualquer do destino, mas bem a propósito: o desejo secreto  dessa noite eterna em que mergulhei — parecia ser o de me negar um prazer há muito tempo esperado. Mas nada me impedirá de realizar o meu plano!... Nada mesmo!... De hoje não passa!...

(Escutam-se rangidos de madeira no pequeno quarto de Theodore):

— Ah, como eu odeio a escuridão desse lugar soturno e sem esperança! As paredes de madeira, como fantasmas arrastando pesadas correntes, murmuram, ao primeiro despontar do crepúsculo; o assoalho range os seus dentes pontiagudos, como se lamentasse os dias perdidos na desilusão. Mas que diacho de desilusão poderia ter uma casa de madeira? Não ser, talvez, como a sua vizinha de alvenaria, cheia de luzes e espaços vazios. Aqui tudo é apertado; nada se enxerga, nessa maldita casa, além das memórias sombrias que ninguém deseja iluminar. É estranho enxergar, na penumbra, o que não suportamos ver à luz do dia. Mas é assim que as epifanias acontecem: na escuridão das noites mal dormidas, quando nos falta a visão, enxergamos o inconsciente.

No pequeno quarto, anunciava-se mais um dia de calor na Amazônia ocidental. O ar abafado era prenúncio de chuva rápida ao entardecer. Nada que os povos da floresta já não soubessem séculos antes da chegada dos europeus. Os brancos d’além-mar — sabedores de tudo, donos de tudo e de todos — descobriram o que já estava descoberto, fizeram do homem caucasoide a espécie dominante do reino animal, o arquétipo da perfeição divina, sem saber que, naquelas planícies equatoriais, as leis eram outras. O Plasmodium, velho habitante amazônico, nunca se impressionou com os homens de pele clara e seus “espelhinhos mágicos”...

Fizesse sol ou chuva, porém, aquele seria o dia mais importante da vida de Theodore, o personagem principal dessa narrativa nada épica. Pálido, de pele clara, estatura mediana e corpo esguio, ele era um homem comum, de meia-idade, naturalmente conservado e sem rugas aparentes. Longe de ser dândi, ele se vestia com certo apuro, percebendo-se, nas vestes consumidas pelo tempo e no seu andar altaneiro, um passado de glórias efêmeras, um tempo de bonança que não resistiu à aridez dos seus desertos intransponíveis. Ele não possuía atrativos físicos, se é isso que desejam saber; os seus olhos amendoados e castanhos — cor de mel, diziam alguns — eram praticamente tudo, naquele ser humano, que se poderia chamar de beleza. Além do razoável intelecto, que o distinguia dos medíocres, nada havia, em Theodore, que pudesse despertar a cobiça feminina. A sua inteligência não era natural e inata, feita só de genes; ele a treinara, com penitente esmero, em muitos encontros e desencontros com os livros. Depois do quarenta, o nosso amigo resolveu sair do script que adotara como norte da sua bússola existencial, o roteiro inflexível que ele seguira ao longo da vida. Antes dessa epifania, a sua existência oscilava entre o dilaceramento dos autoflagelantes da Opus Dei e a fé dos salafistas, não em matéria religiosa, pois ele sempre foi ateu, mas na certeza dos caminhos a serem seguidos por ele e pela humanidade. Ele era um homem de teimosias pacíficas e decisões inabaláveis, embora tivesse alguns breves momentos de hesitação, que ele invariavelmente resolvia com um estalar dos dedos:

— Hoje é o dia certo para executar o meu plano. Ai, que dúvida cruel! Será que eu devo executá-lo hoje mesmo? Talvez fosse melhor deixar tudo para amanhã. Não! Definitivamente, eu não o adiarei mais (Ele estala os dedos da mão direita). Tem que ser hoje! Eu preciso pensar positivo. Tudo dará certo e correrá exatamente como planejei. É isso mesmo: é só pular da cama e pegar estrada. Mas eu ainda tenho a nítida impressão de que estou-me esquecendo de algo. O que seria mesmo? Ah, se fosse assim, tão importante, eu me lembraria. Foda-se o que ficar para trás! Eu improviso... — Esses eram os seus pensamentos, naquele amanhecer tão especial.

Theodore já estava acordado desde as quatro da madrugada. A noite fora difícil, como quase todas as que a antecederam, nas últimas semanas. O sono fora cortado por intermináveis e excruciantes horas de vigília. Havia algo a fazer nesse dia, algo muito importante; os detalhes da missão ocupavam-no o tempo todo. Por volta das cinco, ele se dirigiu à pequena janela do quarto, mas não conseguiu abri-la. Lamentou-se, por alguns instantes, e caminhou em direção à cozinha.

Ele morava, há algumas semanas, com um casal de amigos. A mulher, beirando os sessenta anos, e o marido, um homem com muitos problemas de saúde, já ultrapassando os oitenta. O dono da casa, um velho bonachão e bem-humorado, sofria do mal de Parkinson e dependia da esposa para as suas necessidades básicas. O tempo havia sido cruel com o senhor Roberto, um homem de poucas letras e muitos sacrifícios. O árduo trabalho no campo roubara-lhe uma velhice tranquila, dando-lhe, como recompensa, um salário mínimo de aposentadoria rural. As suas tosses, ruidosas e profundas, torturavam-no durante as noites frias e úmidas, acordando, a contragosto, os moradores da pequena casa. Ainda assim, o velho agricultor tinha fé na vida; nada o abalava em sua certeza mística do paraíso depois da morte. Malgrado o seu ilusório desejo de viver, porém, o seu derradeiro suspiro já se anunciava no horizonte. Além de Roberto, viviam na pequena casa de madeira a sua esposa, Raquel, e Suzana, uma garotinha de 12 anos, filha de pobres seringueiros que eles resgataram no alto do rio Purus, aos dois anos de idade. Era uma vida simples e pobre, mas tranquila a que os nossos personagens tinham. Theodore, bem adaptável aos dissabores do tempo, incorporara-se, sem muitos problemas, àquela rotina espartana:

— Não faça barulho, Theodore!... Não hoje, por favor! Rrrreekkkk... Caralho! Eu sabia! Esta maldita porta sempre faz esse ruidinho chato. Será que o velho acordou? Farei o café e tomarei um bom banho, antes de partir. Eu realmente não desejo ver ninguém!... não hoje... As prioridades são outras...

Maquinalmente, ele procura as duas mensagens que chegaram ao seu smartphone na noite anterior. Theodore, por regra, nunca lia de imediato as mensagens que lhe enviavam os amigos. Para ele, esse tempo de espera tornava-o menos escravo das redes sociais:

— Theodore, você está bem?— Indagava-lhe Ana, uma antiga namorada. — Estou preocupado com você, meu amigo! — dizia Johnny Reed, um amigo de farras inesquecíveis e bebedeiras homéricas.

A ambos, ele responde com a mesma mensagem de texto:

— Estou muito bem! — Ele escreve, secamente. Maldita hipocrisia! A quem esses filhos da puta pensam que enganam, com essas perguntas hipócritas! Só a eles mesmos! Que resposta mesmo eles estão dispostos a escutar? — Estou bem, e você, amigo? Ao caralho todo mundo! Ninguém quer saber absolutamente nada sobre a vida do outro, para o bem ou para o mal, que não seja o que já planejou escutar como resposta. Basta uma mentirinha confortável:  — Estou ótimo! E você, amiga? Com essas palavrinhas, a consciência do amigo reconforta-se; uma simples mentira redime-o das suas culpas atávicas. Se algo funesto acontecer ao “amigo”, ele terá, como lenitivo, a memória reconfortante da carcomida e inútil indagação que lhe fizera antes da tragédia: — Theodore, você está bem? — É o que costumam perguntar os solidários virtuais. — Estou ótimo! Bem melhor, talvez, do que você... — Eu sempre respondo, de forma maquinal, não porque seja verdade, mas para me livrar dessas perguntas de uma só resposta, a que foi imaginada pelo próprio autor da indagação. Só espero que os humanitários das redes sociais enfiem no olho do próprio cu, e sem K-Y GEL, toda essa empatia burlesca!

Depois de enviar duas mensagens, Theodore desliga o smartphone, já imaginando as respostas, no mínimo hipócritas, de Ana e John Reed:

— Que bom que você está bem! Eu já estava ficando preocupada. — Tudo mimimi... tudo da boca para fora. Quero ver quem é solidário na desgraça; quem se entrega ao outro, para dividir o fardo de uma dor excruciante; quem enfrenta, com as armas da amizade, a autodestruição de um ser humano que desistiu de tudo. Alguém, por acaso, aceita padecer dos meus males, poupando-me o sofrimento? Duvido muito! Alguns “amigos”, quando muito, enviam mensagens — não por acaso públicas! —, entoando discursos de solidariedade, não porque a minha dor toque, de alguma forma, as suas emoções e sentimentos, mas porque desejam parecer solidários diante da plateia virtual.

Uma hora depois, ele entra no carro e coloca a chave na ignição, sem, contudo, girá-la. Por alguns instantes, ele hesita. Nada o faria desistir do seu plano. A hesitação, ao contrário de revelar fraqueza de espírito, enunciava, para ele, que algo estaria faltando. Theodore liga o carro e segue pela rua estreita, mirando, pelo retrovisor, a pequena casa de madeira. O verde esmaecido da construção tornava-se, a pouco e pouco, um ponto distante no horizonte, misturando-se ao firmamento. O sol, ainda tímido, escondia-se, aqui e ali, entre as nuvens distantes, que passeavam ao sabor dos ventos. Ele, porém, não tirava os olhos do retrovisor, tentando resgatar, das suas memórias, o que ficara esquecido ou, talvez, recalcado no inconsciente. Esquecimentos são mecanismos de defesa do ego crispado de dor. Quando não conseguimos lidar com as memórias afetivas associadas a um evento traumático, nós as relegamos ao olvido, na tentativa de apagar os desejos mais diabólicos e funestos, que cultivamos nas regiões profundas do aparelho psíquico:

— Que lindo dia para executar o meu plano! Simplesmente perfeito. Nada irá me atrapalhar, como aconteceu tantas vezes. Não permitirei que nada se interponha entre mim e o maior prazer que um ser humano é capaz de experimentar.

Depois de cinco horas dirigindo o velho Opala, a monotonia da paisagem começou a entorpecer os sentidos de Theodore: retas difusas como as suas reflexões; curvas afetuosas, campos verdejantes que se perdiam no horizonte; tudo convidava o corpo ao sono. A sua mente, hipnotizada pelo calor da planície amazônica, vagava, perdida, entre as memórias de tudo que havia deixado para trás: filhos, falsos amigos e inimigos sinceros. Mas ele havia tomado uma decisão importante...

O calor serpenteava em ondas que se projetavam do asfalto, elevando-se em direção ao azul do firmamento. As margens da estrada, ilusoriamente paralelas, enamoravam-se num ponto distante, no horizonte, um lugar sombrio onde a sua vista já não conseguia distinguir o real do imaginário.

As suas pálpebras pesavam, a visão começava a ficar turva, a cabeça pendia em direção ao peito, em movimentos ritmados que o faziam despertar por mais alguns segundos, até o cochilo seguinte, quando o queixo, mais uma vez, encontrava a clavícula. E Theodore despertava novamente, para adormecer poucos segundos depois...

Antes que o seu plano fosse beijado pelo acaso, ele decidiu parar no primeiro posto de gasolina da estrada; quem sabe, tomar um café, dar uma cochilada, para seguir viagem, sem perder de vista o seu plano inicial. Ele segurou o volante com as duas mãos, o mais firme que o sono lhe permitia, mas as pálpebras tinham vida própria. Postos de gasolina nas estradas da Amazônia?... É mais fácil encontrar o “El Dorado”!...

No meio do caminho, contudo, havia uma ponte... não um posto de gasolina... Numa fração de segundo, tudo começou a girar; ferros retorceram-se como gritos de agonia, sons estridentes invadiram os seus ouvidos, vidros projetaram-se contra o seu rosto.

Theodore começou a sentir os jorros d’água podre nos seus pulmões. Ele não sabia, ao certo, o que estava acontecendo. Sentia uma estranha sensação de leveza, como se flutuasse numa zona de tempo infinita, numa eternidade perdida entre dois segundos. Aquelas cenas não se pareciam com a sua própria existência. Era como estar fora do corpo, mirando o derradeiro suspiro de um moribundo, sem perceber que era ele mesmo, naquele emaranhado de ferros retorcidos.

Enquanto o seu corpo se debatia em convulsões ritmadas, um líquido fétido e viscoso invadia a sua boca, abrindo espaço entre os dentes semicerrados. Aquele era o gosto da morte!  Theodore nunca imaginara que a morte seria assim, tão banal, nem trágica, nem burlesca, apenas simplória, como a vida que estava perdendo. Ele sempre pensou na morte como algo extraordinário, cheio de mistérios insondáveis, como um túnel de luz misterioso que se descortina no horizonte; ele fez planos para o solitário beijo da morte, esperou-a com prazer e júbilo. Ele não a temia, antes a desejava.

Que especial que nada! Ele simplesmente estava se afogando no esgoto, literalmente morrendo na merda. Nada de mortes extraordinárias e heroicas, em cenários de guerra ou nas ruas de Veneza ou de Nova York! Theodore estava morrendo em um pequeno córrego à margem da estrada, engolindo os dejetos de alguma cidade de vivos ainda mais mortos do que ele.

Todas as suas vivências — o paraíso, o purgatório e o seu inferno particular — pareciam condensadas nas fotografias de um velho álbum, cujas folhas se desnudavam num surto febril e delirante. A sua vida passava diante dos olhos, desde o útero até esse dia especial. No meio da exposição das imagens, ele já estava entediado:

— Puta que pariu! Não era assim que eu queria morrer. Engolindo merda, não! Eu planejei esse dia por várias semanas; viajei milhas e milhas, para encontrar o dia certo. Será mesmo que essa é a minha hora de morrer? Acho que alguma coisa ficou faltando... mas deve ser assim mesmo; nunca estamos prontos, quando a morte nos convida a seguir os seus passos; sempre falta alguma coisa, para morrer... ­­— Esses eram os pensamentos de Theodore, ao descer o pano da sua existência.

Entre uma golfada e outra de esgoto, ele se dá conta de que o seu plano era esse mesmo — morrer! —, embora não tivesse sido executado da forma como esboçara por tanto tempo. Morrer com o sol se refugiando, sonolento, no fundo da cena, era um desejo da adolescência. A morte que ele planejara com tanto esmero não seria possível, mas — que diacho! — morrer é morrer. Morre-se bem na água, morre-se ainda melhor na merda... O plano inicial de Theodore era lançar o carro no Rio Madeira, para que as suas águas caudalosas o levassem lentamente. Os seus planos fracassaram, é certo; mas alcançaram, por linhas tortas, o objetivo inicial. Sentindo que daria, enfim, o último suspiro, ele convida a morte, inevitável e desejosa morte, para caminhar no seu delírio, arrancando-lhe a existência que ele nunca soube transformar em vida. Enquanto o carro era engolfado pelas águas barrentas do Rio Madeira, Theodore gritava, entre gargalhadas:

— Eu tô morrendo, porra! Há, há, há!.. Eu tô morrendo, caralho! Há, há, há!... Morre logo, filho da puta! Morre log...

— Theodore! Theodore! O que está acontecendo? Você enlouqueceu? — Do lado de fora do quarto, Raquel esganiçava-se, em desespero, tentando descobrir o que se passava com o seu estranho hóspede. Ele abre a porta, com os cabelos em desalinho:

— Não aconteceu nada, Raquel! Eu tive um sonho muito louco.

— Um pesadelo, Theodore! A julgar pelos seus gritos, você teve um pesadelo...

Depois de trocar algumas palavras com Raquel, Theodore toma um bom banho e pensa sobre o seu plano:

— Depois do café, pegarei a estrada. Hoje é o dia certo!... Mas o que será mesmo que eu esqueci?... Sempre fica alguma coisa por fazer na hora da morte...

(Theodore examina o smartphone e lê, com um sorriso irônico, as duas mensagens que chegaram na noite anterior).

F I M

Post Scriptum: a pintura superior é “O Retrato do Doutor Gachet”, primeira versão, de Vincent van Gogh, obra concluída em junho de 1890. Paul Gachet, renomado Psiquiatra francês, radicado em Saint-Rémy-de-Provence, além de ter sido o último Psiquiatra a tratar de van Gogh, acabou se notabilizando pelo círculo de amizades, que incluía muitos artistas famosos, como Manet, Monet, Renoir e Cézanne. Van Gogh o consultou a conselho do irmão, Theo. O quadro é um dos mais representativos da genialidade de van Gogh, não apenas pela qualidade dos tons pós-impressionistas, mas por ter sido pintado nos últimos meses da sua vida. Como todos sabem, após sofrer de ansiedade e profundas crises de depressão por muitos anos, van Gogh cometeu suicídio, aos 37 anos, atirando, com um revólver, contra o próprio peito. Não se sabe ao certo o motivo, mas existem duas versões para “O Retrato do Doutor Gachet”, ambas executadas em junho de 1890. A pintura inferior é a segunda versão d“O Retrato do Doutor Gachet”, de Vincent van Gogh.






sábado, 26 de maio de 2018

Interrogações...


Interrogações...

Alguns leitores não me conhecem de perto, embora leiam os meus textos, muitas vezes em segredo, temendo ser confundidos com o niilismo dos desajustados e autoexcluídos da pós-modernidade líquida. Temem, no íntimo, que os "saudáveis" dessa sociedade desajustada os confundam com um escritorzinho qualquer, louco e sem futuro, como eu, que vive para infectar feridas narcísicas abertas pelo mal-estar da civilização.

Aos inimigos sinceros e aos amigos fingidos, eu vos confesso, entre envergonhado e arrependido, que já tive carreira no mundo hipócrita do Direito, o lar dos engravatados arrogantes, que se medem por bajulação dissimulada e, não raro, por "meinhas" de masturbação egoica em grupo. Vistosos broches na lapela, ternos caros e bem cortados, símbolos de uma sociedade adoecida, que vive da aparência de sucesso e bem-aventurança, dizem mais sobre esses moços, pobres moços, do que mil palavras: majestosos por fora, mas embusteiros e falastrões por dentro. Fazem discursos empolados, usam expressões raramente compreendidas pelos próprios falantes, flertam com os gregos, para enganar os tolos, citam frases na língua da velha Roma, mas nunca ouviram falar das declinações latinas. Não dominam a "última flor do Lácio, inculta e bela", mas já se sentem aptos para dar preleções aos ignorantes, como eu. Ablativo, dativo, nominativo, acusativo, genitivo, locativo e vocativo parecem o enigma da Esfinge, para esses latinistas de águas rasas, esses borra-botas da latinidade. Copiar uma frase qualquer, num idioma que ninguém fala ou conhece, já é um grandioso feito para essa gente rasa; saber o que significa a citação em latim, porém, seria uma odisséia que eles não ousariam arrostar e vencer.

Como ia dizendo, eu já tive algum dinheiro e até canudo. Um belo dia, eu virei a página. Aliás, eu rasguei a página e lancei ao fogo todos os livros de Direito. Não se assuste, contudo! Os 30 mil livros do Araken pai continuam intactos, embora eu não lhes reconheça qualquer valor: esse fogo é, apenas, metafórico!

O que eu sou hoje? Apenas um projeto inacabado de escritor. Por que inacabado? Porque no dia em que eu me sentir pleno, na arte de escrever, repousarei na campa mais próxima...

Jorge Araken Filho, apenas o ceifador das suas ilusões.

Post scriptum: "fazer meinha", na gíria do universo gay, significa masturbar um ao outro. Como eu sei? Não é da sua conta!



Enlouquecendo de liberdade...


Enlouquecendo de liberdade...

O pedagogo e preceptor de Orestes, em Argos, falando ao seu discípulo, na Peça “As Moscas”, de Jean-Paul Sartre:

Eis-vos agora jovem, rico e belo, sensato como um ancião, liberto de todas as servidões e crenças, sem família, nem pátria ou profissão, livre para todos os compromissos, mas sabendo que nunca vos deveis comprometer...” (SARTRE, Jean-Paul. As moscas. 2. ed. Tradução de Nuno Valadas. Lisboa: Editorial Presença,1965. p. 22).

Tirando a beleza (que nunca tive) e a juventude (que perdi nas curvas do espaço-tempo), eu desejo a liberdade de Orestes, para assumir compromissos, mas sabendo que não me devo comprometer.

Crenças e servidões, eu as dissipei nos desertos da existência; da família, não sem dilaceramento, eu me desconectei e, ao mesmo passo, fui desconectado; pela pátria, que não me é cara, eu não guardo o menor desvelo; a profissão de advogado, eu a abandonei sem melancolia e dor.

O que me falta, para ser livre? Banir a razão que precede a loucura.

Jorge Araken Filho, apenas um ser humano que enlouqueceu de liberdade.




Vida de cão

Vida de cão

Crônica escrita por Jorge Araken Filho

Ainda tímido e sonolento, despertava o sol naquela manhã de quarta-feira, erguendo-se do seu berço no horizonte. Tons de laranja e amarelo, esmaecidos pela névoa, indicavam mais um dia de batalhas perdidas contra a arrogância dessa humanidade cheia de certezas, que saiu da caverna para se esconder no orgulho.

Depressivos, como eu, dormem pouco e, normalmente, despertam antes do sol. Aliás, depois de tantos anos de insônia, eu aprendi que não vale a pena lutar contra a realidade. Antes enamorar-me da depressão, adoçando a sua boca voraz com cadinhos de ilusão, do que me torturar em noites sem fim. Eu acordo às quatro da madrugada, leio os jornais na internet e, por volta das cinco, tomo o meu banho frio. Às cinco e meia, eu saio para comprar o pão. Nunca me deixo seduzir, porém, pelos braços de Morfeu. Não acalanto o sono, que um dia será eterno; por ironia do destino, quando eu começar a amar a vida.

A cama seria o meu reino de terror, se não fosse, ela própria, o berço dos meus amores fugazes. Os melhores instantes da minha existência, eu os vivi entre gozos profundos e palavras sussurradas ao ouvido. Esse meu coração peregrino, volúvel e sedento de ilusões, já descansou em muitos regaços; o meu companheiro ao sul do umbigo, o traço derradeiro da minha masculinidade, já se aninhou em muitos refúgios. Eu confesso que já tive os meus dias de glória na arte do amor! Talvez seja um exagero dizer que sou um bom amante; eu sou, quando muito, esforçado. O meu gozo não tem sentido, se não gozarmos juntos. Romantismo antiquado? Que o seja! Eu sou assim e, malgrado a minha deplorável performance sexual, morrerei tentando fazer melhor, mesmo que nunca alcance o seu ponto “G”. Mas não se engane comigo! Sou um bom teórico e não tenho vergonha de falhar. Depois do fracasso mais retumbante, eu sempre tento-me redimir... não na hora da desonra, quando o repouso do guerreiro me faz abandonar o campo de batalha do amor, mas no dia seguinte ou, quem sabe, uma semana depois... E pode apostar que eu não dou desculpas esfarrapadas. Broxei e pronto de exclamação! Ensine-me alguns poucos segredos do seu ninho do amor, e eu decifrarei os enigmas mais ocultos da sua existência. Não duvide da minha tenacidade! Ao sul das suas madeixas, tudo é zona erógena.

Como eu ia dizendo, a cama sempre me foi generosa em angústias. Em vão, eu percorri os melhores anos de juventude a rolar na cama, revivendo memórias dolorosas que nunca se dissipavam.

Como um velho relógio suíço, eu acordo às quatro da madrugada, leio os jornais do dia e me levanto por volta das cinco. Não pense, porém, que eu desperto para o trabalho com essa vocação épica para o heroísmo do labor sem fim. Na verdade, o meu desejo mais angustiante, talvez o único que me move para fora da cama, é aproveitar o ócio desses tempos perdidos. Nada ganho, mas, em compensação, nada faço. Preguiça? Ouso dizer que não! A minha indolência nasce da minha desconexão com a humanidade. Na verdade, eu preferia ter nascido um tubarão ou uma águia.  Não, na verdade, seria melhor haver nascido um frondoso carvalho, um daqueles monumentos à lassidão dos tempos infinitos. Ele nunca se move e, no entanto, nunca se enfada nem se impacienta. É verdade, eu queria renascer como um carvalho...

Naquele dia, como tem acontecido nos últimos anos, eu acordei com um novo sonho. Era uma mulher!... Só poderia ser, depois de quatro anos e quatro meses de absoluta solidão. Se você nunca viveu a dor existencial dos cinco contra um, eu sugiro não debochar do meu drama. Ele poderá cair na sua cabeça um dia... A masturbação não faz crescer pelos nas mãos, mas na autoestima.

Para entender os meandros do meu coração desenganado, recuarei mais um dia, chegando à manhã de terça-feira, o dia em que o meu coração disparou novamente! Que diacho de coração vagabundo! Nesse dia, encontraremos a razão dos meus tormentos de hoje, ironicamente, a razão, também, desses novos sonhos de hoje, que substituem velhos sonhos frustrados.

Nessa benfazeja terça-feira, três dias atrás, eu fui comprar o pão para a minha ex-sogra, algo que tenho feito nas duas últimas semanas. Eu vivo de favor na casa dessa doce mulher há duas semanas, desde que retornei do Rio de Janeiro, e é razoável ajudar no que for possível.

Logo ao abrir o portão da casa, deparei-me com um casal de vira-latas, o macho, de pelagem preta, e a fêmea, de pelos castanhos. O nome dele, bem criativo, é “Negão”. Ele pertence à minha sogra e havia fugido para a esbórnia na noite anterior. O dela eu não descobri.  Ela não quis-se identificar, provavelmente para não ser chamada de cachorra, algo que fere os sentimentos das cadelas de boa índole, como ela. Indiferentes à minha curiosidade lúbrica, eles faziam amor aos primeiros raios do sol. Engatados pelos traseiros, eles eram acompanhados de perto por outro macho, que, resignado, esperava a sua vez na fila da meiga e faceira cadelinha de rua. Aquela cena se impregnou na minha cabeça. Vida de cão é assim? É melhor do que a minha, então! E lá fui eu, na direção da padaria...

Duas horas mais tarde, eu fui fazer compras para a minha ex-sogra. Fiz-me acompanhar de uma ex-cunhada, uma mulher de trinta e poucos anos que é casada e mora com o seu marido a alguns quilômetros de distância da sua mãe.

No caminho, passamos numa pequena feira, para comprar goma de tapioca. Eu percebi os olhares curiosos das mexeriqueiras da madrugada, que, pelos sorrisinhos entre dentes e mãos levadas à boca com hipócrita timidez, já nos anunciavam, em laivos de falsa moral, como parceiros de um romance proibido. Todos conhecem a minha cunhada e o seu marido na pequena Vila do Incra, mas nunca me viram mais feio nem mais cara de pau. O sotaque carioca ainda me tornava mais depravado e sem-vergonha. — Esse safado vem lá da casa do caralho, pra pegar mulher casada? Depois que saímos da feira, disse-me a minha cunhada que um dos feirantes, velho conhecido dela, perguntara-lhe quem eu era. Ela teve vontade de dizer que éramos amantes, mas, tímida e pudica, conteve o impulso da galhofa. Disse, sem maiores explicações, que éramos amigos de longa data. Aquilo ficou martelando na minha cabeça...

Chegamos ao maior e melhor supermercado da pequena vila. Novamente, fomos examinados pelos clientes e circunstantes.  Algumas senhorinhas da igreja cochichavam segredos vis, lançando, a cada passo que dávamos, um olhar de repulsa e reprimenda contra os dois pecadores ignóbeis. A minha cunhada, naquele teatrinho de fofocas, seria a adúltera, e eu, o maligno demônio da desonra familiar. A tradição judaico-cristã da fidelidade e do temor a Deus estava sendo conspurcada pela “adúltera” e pelo forasteiro libertino, o terror das donzelas e mulheres de família tementes a Deus da Vila do Incra. Retornei com todas essas ideias na cabeça... Puta que pariu, não como ninguém há quase quatro anos e meio e, ainda assim, levo a fama de comilão. Porra, logo eu, que vivo na punheta!

Na hora de pagar as compras, e não por acaso, eu escolhi o caixa número três, para onde me atraía uma linda jovem. A minha intenção era, apenas, examiná-la de perto, e nada mais. A minha cunhada, contudo, preferiu passar no caixa número um, desculpando-se com a jovem:

— Não tenho nada contra você, mas eu vou no caixa da minha amiga! Baixei os olhos, decepcionado, mas resolvido a voltar outro dia.

A garota que eu cobiçara sorriu sem graça e assentiu com um leve menear da cabeça. Por esse dia, é o que tenho para narrar.

No dia seguinte — quarta-feira última, para os que já se perderam —, eu retornei ao supermercado. Usei o pretexto de comprar sabonete, para ver mais de perto a mulher que me fisgara pela cabeça sem neurônios, aquele monstro abjeto que repousa ao sul do equador do meu corpo. Ela me atraía como as sereias, com o seu canto melódico, fisgando-me pelo desejo carnal.

Logo ao chegar e antes que eu a divisasse em meios aos caixas, ela me encontrou com os seus olhos maliciosos e sedutores. Trocamos olhares por alguns segundos, frações de tempo que pareceram a eternidade. Antes que me perguntem, ela era de parar o pequeno supermercado; despertava a concupiscência até dos mortos, fazia subir até pênis de borracha. Era, sem dúvida, um belo exemplar do sexo feminino, uma ninfa de belos traços, cabelos castanhos que percorriam o seu corpo em ondas enigmáticas. As suas curvas, no dorso e na lateral do corpo, desafiavam a minha masculinidade, fazendo derrapar a libido que castrei nos desenganos do passado. Há  quatro anos, havia um amor na minha vida... um amor que se foi, mas deixou pegadas no meu coração, que permaneceu estrangulado entre a certeza e inevitabilidade da ausência dessa mulher do passado e o meu amor por ela, que nunca me abandonou. Mas, depois de mais de quatro anos sem afagos e carinhos, eis que a sexualidade despertou no meu corpo. Na verdade, não é bem assim! Naquele caixa de supermercado, na Vila do Incra, em Porto Acre, eu comecei a pensar, entre alegre e aliviado, que as minhas mãos já não me seduziam mais... Eu precisava dessa ninfa de sonhos, dessa Circe da minha Odisseia. Nada de masturbações delirantes!

O amiguinho lá do Sul, o espigão dos meus corpos cavernosos, deu o ar da sua graça; o sangue percorreu o meu corpo enregelado pelos anos de castidade. Essa linda Afrodite despertou a libido que eu, com tanto esforço, sublimara na literatura por mais de quatro anos. Que porra de texto, que nada! Naquele instante, eu queria era rasgar as roupas daquela mulher ali mesmo, no caixa do pequeno supermercado em que ela trabalha. Não passou pela minha cabeça narrar as noites de amor que nunca tive. O que eu queria, mais do que tudo, era desvendar o kama Sutra, deitar aquele corpo no balcão e percorrer a sua vulva com a minha língua intumescida. Calma, garanhão, que esse conto não é pornográfico! Uma onda de calor subitamente percorreu o meu corpo, fazendo-me suar frio como um adolescente em seu primeiro encontro. Essa garota é realmente um sonho!... Nada além de um entardecer, um pôr do sol e um belo exemplar do sexo feminino! Era tudo que eu desejava naquele instante.

Eu a imaginava numa praia deserta, com os seus longos cabelos castanhos, soltos ao vento, olhos verdes (assim ela aparece na minha ilusão, embora os seus olhos sejam cor de mel), curvas perigosas, protuberâncias monumentais, vales profundos, reentrâncias e concavidades que me enfeitiçam com o seu doce gingado, aquela malemolência cruel, quase sádica das mulheres que herdaram a beleza de Afrodite, mas possuem a impura concupiscência das sereias, que enfeitiçam os guerreiros e entorpecem os sábios.

Não quero ser mais do que um menino, com seus carrinhos de plástico, diante dessa sereia do Olimpo, que atormenta navegadores incautos e solitários, inebriados por seu canto melódico. Sem a força de Odisseu, a caminho de Ítaca, sem a intercessão de Atena, eu acabaria cativo da bela ninfa do meu entardecer. Com ela, a Calipso da minha Odisseia, eu passaria sete anos perdido... Pobre Penélope! Haveria de permanecer, pelo resto das suas noites, frias e solitárias, desfazendo a mortalha, à minha espera, enquanto eu me deliciaria, em delírios infinitos, com a encantadora Calipso, a ninfa do mar das minhas lágrimas de dor e solidão.

Ela haveria de caminhar na praia, distraída, sem perceber que eu me aproximava sorrateiro, hipnotizado pelos seus encantos, derrapando os meus olhos pedintes e cobiçosos em suas curvas salientes e bem definidas.

Suas pernas... e que pernas!... A obra mais divina da criação, longas e graciosas, grossas e firmes como um carvalho, voluptuosas como as de Afrodite. Não, que Afrodite que nada! Elas são como os ébanos divinos das passistas de Escolas de Samba! Os seios, majestosos, eretos e arredondados, daqueles de proporções hercúleas, que enchem bocas famintas de meninos fogosos, como eu. Preciso reverenciar os céus, para falar do seu lindo bumbum, de boca gulosa, com um talho divino, que forma um vale profundo entre os Apalaches.

Eu precisaria de um livro inteiro para descrever a mulher da minha ilusão. Diria o poeta Austin Henry Dobson, no poema "To a Greek Girl": "a Dream of form in days of thought" ("um sonho de forma em dias de pensamento"). E que formas...

Nem Leonardo da Vinci, que era apenas humano, a teria imaginado em traços mais perfeitos; só nos meus delírios de prazer solitário – a cinco dedos –, eu haveria de buscar inspiração em uma beleza assim tão delicada, quase divina, a serpente do paraíso, que oferece aos caminhantes solitários o fruto proibido, que dá voz ao inconsciente e desperta a libido sublimada pelos meus fracassos na arte do amor.

E como balança esse doce poema em forma de Ninfa... Caminhando na minha ilusão, ela parece não perceber os pobres mortais, como eu, que a seguem, hipnotizados por seu canto silencioso, feito de gestos, aparentemente descuidados, quase imperceptíveis aos olhos femininos, mas vivamente capturados pelos sentidos de fera dos homens enjaulados em seus hormônios.

Ela talvez não tenha consciência dos feromônios que marcam seus passos de gata no cio, algo que sinto nas golfadas de ar que invadem os meus pulmões. Tá certo! Eu posso estar exagerando um pouquinho. Perdoem-me, contudo, o eventual exagero, mas o desejo é meu e o delírio também! O seu perfume, um leve odor de sândalo, que se mistura com a brisa do mar, deve ter entorpecido os meus sentidos, que nunca foram muito confiáveis diante de fêmeas no cio, principalmente dessas dançarinas do efêmero, musas dos poemas eternos, que carregam esses grandes e profundos apêndices no dorso.

No mais profundo e respeitoso silêncio, eu prosseguiria no meu caminho, olhando as ondas que lambiam as areias da praia. Ela iria desaparecendo, a pouco e pouco, até se desfazer nas areias do tempo.

Só um coração partido consegue entender a poesia dessa mulher feita de sonho, a mulher do corpo dourado que nunca toquei, a não ser na minha doce ilusão. Se a houvesse tocado, porém, o encanto se desfaria naquele pequeno supermercado, e ela, a etérea e indefinível sereia, que foi a razão de tantos naufrágios em corações humanos, deixaria de ser um sonho, para se tornar uma realidade muito distante das minhas fantasias.

Mas caminhamos juntos na mesma ilusão, eu e a garota do corpo dourado, e isso já me aquece a alma. Ela não sabe dos meus devaneios... Deixemos 02no reino dos sonhos!

Mas será que ela estava interessada neste sonhador ou, maledicente como muitos, ela afiava a língua para falar de um tórrido e proibido romance na pacata vila do Incra? Sem o chifre não se reconheceria o grande amor!

Eu já havia planejado encerrar por aqui a minha crônica, mas o destino — algumas vezes traiçoeiro, outras feiticeiro —, transformou o sonho em realidade. Uma epifania estava reservada para o final da tarde de ontem, quinta-feira. Por volta das 17 horas, quando a noite começava a flertar com o dia, a minha sorte começou a mudar. Se a garota do supermercado, de súbito, pulou no meu pescoço? Nem de longe! A essa altura, eu nem a desejava mais. A vida pode mudar em apenas um segundo... Acredite em mim!

No crepúsculo, eu recebi uma mensagem pelo WhatsApp. Era a última mulher que eu tivera nos braços, uma fêmea fogosa, em permanente cio, mas supercomplicada e perfeitinha, por quem me apaixonei em 2013. Ela fugiu de mim por todos esses anos e, para me enterrar na autopiedade, casou-se de véu e grinalda. O noivo não era eu... maldito noivo! O que será que ele tinha a mais do que eu? Ela, certamente!...

Na intrigante mensagem, ela me convidava para “estar em sua companhia” no Shopping Center de Rio Branco. Foi assim mesmo, com essas palavras! Estranhei toda essa formalidade, quase um memorando interno, para quem já estivera no meu regaço, desnuda, em gozos profundos. Lamentei a distância que nos separava. Ela estava em Rio Branco e eu, em Porto Acre. De fato, ela nunca me premiou com a traição, jamais brigamos ou tivemos qualquer atrito, mas eu já fui corno na vida, num passado distante, e todo castigo pra corno é pouco!

Mas quem era mesmo esse amor do passado? — Você me indaga, curiosa.

Além de ser a última que me levou para alcova, há quase quatro anos e meio, o que já lhe reserva um lugar especial no meu coração, ela foi a mulher que me desafiou a superar o medo que eu tinha das mulheres de fases. Depois dela, eu não tive mulher alguma, é verdade, mas, dela em diante, eu escolhi outro caminho para o meu coração. Só permitiria mulheres que não cedessem aos meus ideais, que subvertessem as minhas certezas, abrindo novos caminhos para os velhos paradigmas a que me acomodei.

Agora, encanecido na dor, eu desejo essas fêmeas apenas humanas, as “mulheres-cabeça” e “desequilibradas”, sempre “confusas”, de “guerra e de paz”. Essas são sempre legítimas, até nos defeitos que as tornam humanas, simplesmente humanas, sem gozos fingidos e falsas expectativas a meu respeito. Pena que raramente aceitam um cara romântico, latino-americano, sem dinheiro no banco e com muitas dúvidas.

Eu tive muitas mulheres, mas só uma permaneceu viva na minha memória afetiva.

Não sou homem de usar a razão nas coisas do coração, mas existiu uma mulher especial na minha vida, a única que me tomaria nos braços pela razão, e não apenas pela emoção. A sua passagem foi tão breve, que não deixou tempo para o relógio do coração, que bate mais lento, depois que a razão começa a amadurecer. Mesmo assim, ficaram as suas pegadas no deserto das minhas emoções e afetos.

Esse doce ser humano, a “mulher-cabeça” da minha canção, desafiadora e enigmática, cheia de dilemas e conflitos, zonas de sombra e cores esmaecidas, deixou marcas que só a razão reconhece, mas que o coração não nega. Eu bem queria retornar ao passado, de volta ao tempo em que a deixei partir sem lutar. Quem sabe, agora, com essa estranha memória do que não vivi, o coração e a razão se fariam totalidade, caminhando para o verdadeiro amor? Por essa, quem sabe, a razão se faria coração...

Essa doce mulher, que me laçou pela razão, foi a feiticeira dos meus afetos sublimados, foi o grande amor na minha vida, mulher “confusa, de guerra e de paz”, “mulher-cabeça e desequilibrada”. Traiçoeira com o meu coração peregrino, essa alma errante se foi, mas deixou rastros no meu peito dilacerado. Nem o tempo e suas dissipações impedem-me de sentir a sua respiração no meu caminhar. Todos os ventos me trazem o cheiro do seu hálito, todas as canções me fazem escutar a sua voz. Até as bocas, que vejo nas esquinas da vida, trazem-me o embriagante mel dos seus lábios macios. Com essa, eu voltaria pela razão e pela emoção; por essa, o cadinho de loucura que habita o meu peito lasso far-se-ia razão e maturidade. Com essa mulher de fases, o meu coração far-se-ia razão...

Se eu pudesse encontrar uma curva no espaço-tempo, o efeito borboleta, para fazer um “loop” e retornar ao exato momento em que a razão e o coração se desencontraram, eu tentaria mudar o destino que acabei criando.

Saudosismo? Ilusão? Estou apenas revivendo as memórias do coração, mesmo as que se encobriram sob o manto da razão.

"No entardecer da vida, só o amor permanece"! Assim foi no tempo de São João da Cruz, e assim será por toda a eternidade...

Entre a razão e a emoção, eu escolhi o amor! Aposto que até na mulher que me tocou pela razão, eu encontraria o amor, não o romance de doces palavras, mas o amor improvável e misterioso, um sentimento que eterniza o efêmero, como uma pequena flor que brota entre as rochas da montanha, perfurando o tédio e a dor. Ele surge nos desencontros da lógica, quando uma singularidade na curva do espaço-tempo faz nascer uma nova realidade.

O amor não se mede; o amor não se controla, não tem regras, não tem script, não obedece a fórmulas e convenções. O amor perturba os sentidos, tira do prumo, expõe os paradoxos, muda tudo em que acreditamos. O amor faz o sangue circular nas veias, multiplica a vontade, soma a energia, divide a tristeza, diminui o desânimo.

A razão transita por paradigmas, traz a acomodação e a rotina: vemos o mundo em preto e branco, com poucas notas, que se repetem, como as músicas da moda, que gritam muito, e não dizem nada. Quando agimos apenas pela razão, perdemos, muitas vezes, a humanidade, a experiência do outro. Esbarramos na finitude da vida.

O amor nos impulsiona para novas fronteiras, para o salto no escuro, onde não valem as nossas certezas; vemos o mundo colorido como o arco-íris, sonoro como uma sinfonia. No amor, nos humanizamos, deixamos de nos sentir medíocres, contingentes e mortais. No amor, navegamos em mares desconhecidos, em meio a tormentas, sem segurança, sem certezas, mas sentindo o gostinho de sal na ponta da língua.

A razão é constante, regular, simétrica, sem riscos, mas sem empolgação, sem sal, sem tempero.

Quem ama não tem medo de parecer ridículo; quem ama inova e se recicla, amadurece, abandona os paradigmas, perde o prumo, aprecia a caminhada. Quem só usa a razão, e não se entrega ao amor, encolhe, se apequena, perde o sabor dos brigadeiros da vida, não percebe o arco-íris, o cheiro de chuva.

Mesmo o desamor é melhor do que a racionalidade dos que não desejam correr riscos. Amar sem plano “B”, sem plano de contingência, sem rede de proteção é mais emocionante do que permanecer no casulo, protegido do mundo, prisioneiro do medo de explorar novas fronteiras, de ver as sombras, para reconhecer a luz.

Até no amor que se vai; até no desamor e no amor não correspondido, no amor de perdição, no amor solitário, dos corações feridos, encontramos o sentido da vida, e mudamos o destino, alteramos o roteiro. Na dor, encontramos o prazer; no sofrimento, encontramos a alegria de viver. Quando o amor se perde na desilusão, quando entregamos o coração e acabamos feridos, olhamos para dentro de nós mesmos, depuramos a alma e nos libertamos.

Entre a razão e a emoção, como já disse, escolhi o amor! Só assim, amando, posso sentir que estou vivo. Quando deixar de amar, estarei morto!

Não que eu viva sonhando. Nunca desejei uma princesa de contos de fada, uma mocinha fútil, banal e pequena, que pensa em sapatinhos de cristal, que espera encontrar príncipes em lagoas cheias de sapos.

Quero que essa mulher do WhatsApp, confusa, de guerra e de paz, essa guerrilheira dos afetos, esse ser humano mutável e insubmisso, que me olha nos olhos e diz simplesmente: você é cheio de problemas, nunca atravessou os meus sonhos, mas eu preciso “estar em sua companhia no Shopping”.

Mais importante: ela precisa estar aberta para o amor sem jogos de azar, sem piedade ou carência, sem buscar em mim o que lhe falta. Ela deve ser ela mesma, ainda que me desagrade; deve ter opinião, mesmo que me desafie; deve reagir, mesmo que a queira submissa.

Quero alguém que me faça ser melhor do que eu sou, e não um espelho que me devolva a minha própria imagem.

Quero um anjo que desperte os meus demônios, e não uma Deusa que me leve ao tédio! Quero uma “mulher-cabeça e desequilibrada”, uma mulher “confusa, de guerra e de paz”, alguém que se permita entrelaçar as nossas sincronicidades, sem perder as diferenças; encontrar a nota comum nas nossas dissonâncias; caminhar para a dualidade dos inteiros que interagem, mas não se anulam nem se fundem.

Sem idealizar sentimentos, só desejo a felicidade dos pequenos gestos, a alegria de voltar para casa e encontrar um sorriso, alguém que me aplauda, sem me acorrentar; que me respeite, mas não deseje moldar a minha vontade e o meu caráter. Quero alguém que não precise matar a minha essência para existir, nem me capturar no seu desejo, para ser feliz. Desejo encontrar uma mulher que seja capaz de ser feliz sem mim, mas seja ainda mais feliz comigo.

Mulher ideal? Que nada, eu quero uma mulher sem verdades absolutas, sem a perfeição divina, alguém que se torne ela mesma e não conjugue o verbo ter com arrogância.

Estou pedindo muito?

Nem tudo está perdido, porém! Como dizia o Fernando Pessoa,

“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.”
Fernando Pessoa. “Mar Portuguez”).

A mensagem que recebi no WhatsApp fora enviada pela mulher mais especial da minha vida, a única que me tomaria nos braços pela razão, e não apenas pela emoção. Passamos a metade da noite de ontem num flerte surreal, cheio de medos e pudores, lamentos velados, recuos estratégicos e desejos inconfessáveis. Nada falamos além do que nos permitisse o reencontro futuro.  Nada dissemos que pudesse nos afastar nesse momento delicado e perigoso, em que o passado insiste em se revelar presente.  Chegamos à conclusão (ela chegou e eu fingi engolir) de que nós realmente precisávamos desses quatro anos, eu de solidão e ela de casamento. Não sei o que aconteceu entre ela e no marido, mas eu posso garantir que ainda estou rolando os dados... Esperanças, eu as tenho, embora não me atreva a acelerar o tempo.

Quem sabe, em breve, eu não terei uma vida de cão? A vida do lindo casal de vira-latas que eu flagrei numa tórrida cena de amor no meio de uma pequena rua na Vila do Incra... O que o futuro me reserva, para o bem ou para o mal, eu contarei, quando se tornar presente... só sei dizer uma coisa, porém: com essa mulher de fases,

“Eu dançaria tango no teto
Eu limparia
Os trilhos do metrô
Eu iria a pé
Do Rio a Salvador

Eu aceitaria
A vida como ela é
Viajaria a prazo
Pro inferno
Eu tomaria banho gelado
No inverno

Por você
Eu deixaria de beber
Por você
Eu ficaria rico num mês
Eu dormiria de meia
Pra virar burguês

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher

Por você! Por você!
Por você! Por você!

Por você
Conseguiria até ficar alegre
Pintaria todo o céu
De vermelho
Eu teria mais herdeiros
Que um coelho

Eu aceitaria
A vida como ela é
Viajaria a prazo
Pro inferno
Eu tomaria banho gelado
No inverno

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher

Por você! Por você!
Por você! Por você!

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher

Por você! Por você!
Por você! Por você!
Por você! Por você!
Por você! Por você!
Por você! Por você!”