O dia certo...
Conto
escrito por Jorge Araken Filho
— Que noite dos infernos! Por alguns
instantes, eu cheguei a pensar que o dia mais especial da minha vida — afugentado,
quem sabe, por um ser diabólico — se recusava a amanhecer, não por um capricho qualquer do destino, mas bem a propósito: o desejo secreto — dessa noite eterna em que mergulhei — parecia ser o de me negar um prazer há muito tempo esperado. Mas nada me impedirá de realizar o meu plano!... Nada mesmo!... De hoje não passa!...
(Escutam-se
rangidos de madeira no pequeno quarto de Theodore):
— Ah, como eu odeio a escuridão desse lugar
soturno e sem esperança! As paredes de madeira, como fantasmas arrastando
pesadas correntes, murmuram, ao primeiro despontar do crepúsculo; o assoalho
range os seus dentes pontiagudos, como se lamentasse os dias perdidos na
desilusão. Mas que diacho de desilusão poderia ter uma casa de madeira? Não ser,
talvez, como a sua vizinha de alvenaria, cheia de luzes e espaços vazios. Aqui
tudo é apertado; nada se enxerga, nessa maldita casa, além das memórias
sombrias que ninguém deseja iluminar. É estranho enxergar, na penumbra, o que
não suportamos ver à luz do dia. Mas é assim que as epifanias acontecem: na escuridão
das noites mal dormidas, quando nos falta a visão, enxergamos o inconsciente.
No pequeno quarto, anunciava-se mais um
dia de calor na Amazônia ocidental. O ar abafado era prenúncio de chuva rápida ao
entardecer. Nada que os povos da floresta já não soubessem séculos antes da
chegada dos europeus. Os brancos d’além-mar — sabedores de tudo, donos de tudo
e de todos — descobriram o que já estava descoberto, fizeram do homem caucasoide
a espécie dominante do reino animal, o arquétipo da perfeição divina, sem saber
que, naquelas planícies equatoriais, as leis eram outras. O Plasmodium, velho habitante amazônico,
nunca se impressionou com os homens de pele clara e seus “espelhinhos mágicos”...
Fizesse sol ou chuva, porém, aquele
seria o dia mais importante da vida de Theodore, o personagem principal dessa narrativa
nada épica. Pálido, de pele clara, estatura mediana e corpo esguio, ele era um
homem comum, de meia-idade, naturalmente conservado e sem rugas aparentes. Longe
de ser dândi, ele se vestia com certo apuro, percebendo-se, nas vestes consumidas
pelo tempo e no seu andar altaneiro, um passado de glórias efêmeras, um tempo
de bonança que não resistiu à aridez dos seus desertos intransponíveis. Ele não
possuía atrativos físicos, se é isso que desejam saber; os seus olhos
amendoados e castanhos — cor de mel, diziam alguns — eram praticamente tudo,
naquele ser humano, que se poderia chamar de beleza. Além do razoável intelecto,
que o distinguia dos medíocres, nada havia, em Theodore, que pudesse despertar
a cobiça feminina. A sua inteligência não era natural e inata, feita só de
genes; ele a treinara, com penitente esmero, em muitos encontros e desencontros
com os livros. Depois do quarenta, o nosso amigo resolveu sair do script que adotara como norte da sua
bússola existencial, o roteiro inflexível
que ele seguira ao longo da vida. Antes dessa epifania, a sua existência oscilava
entre o dilaceramento dos autoflagelantes da Opus Dei e a fé dos salafistas,
não em matéria religiosa, pois ele sempre foi ateu, mas na certeza dos caminhos
a serem seguidos por ele e pela humanidade. Ele era um homem de teimosias pacíficas
e decisões inabaláveis, embora tivesse alguns breves momentos de hesitação, que
ele invariavelmente resolvia com um estalar dos dedos:
— Hoje é o dia certo para executar o meu
plano. Ai, que dúvida cruel! Será que eu devo executá-lo hoje mesmo? Talvez
fosse melhor deixar tudo para amanhã. Não! Definitivamente, eu não o adiarei
mais (Ele estala os dedos da mão direita).
Tem que ser hoje! Eu preciso pensar positivo. Tudo dará certo e correrá
exatamente como planejei. É isso mesmo: é só pular da cama e pegar estrada. Mas
eu ainda tenho a nítida impressão de que estou-me esquecendo de algo. O que
seria mesmo? Ah, se fosse assim, tão importante, eu me lembraria. Foda-se o que
ficar para trás! Eu improviso... — Esses eram os seus pensamentos, naquele
amanhecer tão especial.
Theodore já estava acordado desde as quatro
da madrugada. A noite fora difícil, como quase todas as que a antecederam, nas
últimas semanas. O sono fora cortado por intermináveis e excruciantes horas de
vigília. Havia algo a fazer nesse dia, algo muito importante; os detalhes da
missão ocupavam-no o tempo todo. Por volta das cinco, ele se dirigiu à pequena
janela do quarto, mas não conseguiu abri-la. Lamentou-se, por alguns instantes,
e caminhou em direção à cozinha.
Ele morava, há algumas semanas, com um
casal de amigos. A mulher, beirando os sessenta anos, e o marido, um homem com
muitos problemas de saúde, já ultrapassando os oitenta. O dono da casa, um velho
bonachão e bem-humorado, sofria do mal de Parkinson e dependia da esposa para
as suas necessidades básicas. O tempo havia sido cruel com o senhor Roberto, um
homem de poucas letras e muitos sacrifícios. O árduo trabalho no campo
roubara-lhe uma velhice tranquila, dando-lhe, como recompensa, um salário
mínimo de aposentadoria rural. As suas tosses, ruidosas e profundas,
torturavam-no durante as noites frias e úmidas, acordando, a contragosto, os
moradores da pequena casa. Ainda assim, o velho agricultor tinha fé na vida;
nada o abalava em sua certeza mística do paraíso depois da morte. Malgrado o
seu ilusório desejo de viver, porém, o seu derradeiro suspiro já se anunciava no
horizonte. Além de Roberto, viviam na pequena casa de madeira a sua esposa, Raquel,
e Suzana, uma garotinha de 12 anos, filha de pobres seringueiros que eles
resgataram no alto do rio Purus, aos dois anos de idade. Era uma vida simples e
pobre, mas tranquila a que os nossos personagens tinham. Theodore, bem
adaptável aos dissabores do tempo, incorporara-se, sem muitos problemas, àquela
rotina espartana:
— Não faça barulho, Theodore!... Não
hoje, por favor! Rrrreekkkk... Caralho! Eu sabia! Esta maldita porta sempre faz
esse ruidinho chato. Será que o velho acordou? Farei o café e tomarei um bom banho,
antes de partir. Eu realmente não desejo ver ninguém!... não hoje... As
prioridades são outras...
Maquinalmente, ele procura as duas
mensagens que chegaram ao seu smartphone
na noite anterior. Theodore, por regra, nunca lia de imediato as mensagens que
lhe enviavam os amigos. Para ele, esse tempo de espera tornava-o menos escravo
das redes sociais:
— Theodore, você está bem?— Indagava-lhe
Ana, uma antiga namorada. — Estou preocupado com você, meu amigo! — dizia
Johnny Reed, um amigo de farras inesquecíveis e bebedeiras homéricas.
A ambos, ele responde com a mesma
mensagem de texto:
— Estou muito bem! — Ele escreve,
secamente. Maldita hipocrisia! A quem esses filhos da puta pensam que enganam,
com essas perguntas hipócritas! Só a eles mesmos! Que resposta mesmo eles estão
dispostos a escutar? — Estou bem, e você, amigo? Ao caralho todo mundo! Ninguém
quer saber absolutamente nada sobre a vida do outro, para o bem ou para o mal,
que não seja o que já planejou escutar como resposta. Basta uma mentirinha
confortável: — Estou ótimo! E você,
amiga? Com essas palavrinhas, a consciência do amigo reconforta-se; uma simples
mentira redime-o das suas culpas atávicas. Se algo funesto acontecer ao “amigo”,
ele terá, como lenitivo, a memória reconfortante da carcomida e inútil
indagação que lhe fizera antes da tragédia: — Theodore, você está bem? — É o que
costumam perguntar os solidários virtuais. — Estou ótimo! Bem melhor, talvez,
do que você... — Eu sempre respondo, de forma maquinal, não porque seja
verdade, mas para me livrar dessas perguntas de uma só resposta, a que foi
imaginada pelo próprio autor da indagação. Só espero que os humanitários das
redes sociais enfiem no olho do próprio cu, e sem K-Y GEL, toda essa empatia
burlesca!
Depois de enviar duas mensagens,
Theodore desliga o smartphone, já imaginando
as respostas, no mínimo hipócritas, de Ana e John Reed:
— Que bom que você está bem! Eu já
estava ficando preocupada. — Tudo mimimi... tudo da boca para fora. Quero ver
quem é solidário na desgraça; quem se entrega ao outro, para dividir o fardo de
uma dor excruciante; quem enfrenta, com as armas da amizade, a autodestruição
de um ser humano que desistiu de tudo. Alguém, por acaso, aceita padecer dos
meus males, poupando-me o sofrimento? Duvido muito! Alguns “amigos”, quando
muito, enviam mensagens — não por acaso públicas! —, entoando discursos de
solidariedade, não porque a minha dor toque, de alguma forma, as suas emoções e
sentimentos, mas porque desejam parecer solidários diante da plateia virtual.
Uma hora depois, ele entra no carro e
coloca a chave na ignição, sem, contudo, girá-la. Por alguns instantes, ele
hesita. Nada o faria desistir do seu plano. A hesitação, ao contrário de
revelar fraqueza de espírito, enunciava, para ele, que algo estaria faltando.
Theodore liga o carro e segue pela rua estreita, mirando, pelo retrovisor, a
pequena casa de madeira. O verde esmaecido da construção tornava-se, a pouco e
pouco, um ponto distante no horizonte, misturando-se ao firmamento. O sol,
ainda tímido, escondia-se, aqui e ali, entre as nuvens distantes, que passeavam
ao sabor dos ventos. Ele, porém, não tirava os olhos do retrovisor, tentando resgatar,
das suas memórias, o que ficara esquecido ou, talvez, recalcado no
inconsciente. Esquecimentos são mecanismos de defesa do ego crispado de dor. Quando não conseguimos lidar com as memórias
afetivas associadas a um evento traumático, nós as relegamos ao olvido, na
tentativa de apagar os desejos mais diabólicos e funestos, que cultivamos nas
regiões profundas do aparelho psíquico:
— Que lindo dia para executar o meu
plano! Simplesmente perfeito. Nada irá me atrapalhar, como aconteceu tantas
vezes. Não permitirei que nada se interponha entre mim e o maior prazer que um
ser humano é capaz de experimentar.
Depois de cinco horas dirigindo o velho
Opala, a monotonia da paisagem começou a entorpecer os sentidos de Theodore:
retas difusas como as suas reflexões; curvas afetuosas, campos verdejantes que
se perdiam no horizonte; tudo convidava o corpo ao sono. A sua mente,
hipnotizada pelo calor da planície amazônica, vagava, perdida, entre as
memórias de tudo que havia deixado para trás: filhos, falsos amigos e inimigos
sinceros. Mas ele havia tomado uma decisão importante...
O calor serpenteava em ondas que se
projetavam do asfalto, elevando-se em direção ao azul do firmamento. As margens
da estrada, ilusoriamente paralelas, enamoravam-se num ponto distante, no
horizonte, um lugar sombrio onde a sua vista já não conseguia distinguir o real
do imaginário.
As suas pálpebras pesavam, a visão
começava a ficar turva, a cabeça pendia em direção ao peito, em movimentos ritmados
que o faziam despertar por mais alguns segundos, até o cochilo seguinte, quando
o queixo, mais uma vez, encontrava a clavícula. E Theodore despertava novamente,
para adormecer poucos segundos depois...
Antes que o seu plano fosse beijado
pelo acaso, ele decidiu parar no primeiro posto de gasolina da estrada; quem
sabe, tomar um café, dar uma cochilada, para seguir viagem, sem perder de vista
o seu plano inicial. Ele segurou o volante com as duas mãos, o mais firme que o
sono lhe permitia, mas as pálpebras tinham vida própria. Postos de gasolina nas
estradas da Amazônia?... É mais fácil encontrar o “El Dorado”!...
No meio do caminho, contudo, havia uma
ponte... não um posto de gasolina... Numa fração de segundo, tudo começou a
girar; ferros retorceram-se como gritos de agonia, sons estridentes invadiram
os seus ouvidos, vidros projetaram-se contra o seu rosto.
Theodore começou a sentir os jorros
d’água podre nos seus pulmões. Ele não sabia, ao certo, o que estava
acontecendo. Sentia uma estranha sensação de leveza, como se flutuasse numa
zona de tempo infinita, numa eternidade perdida entre dois segundos. Aquelas
cenas não se pareciam com a sua própria existência. Era como estar fora do
corpo, mirando o derradeiro suspiro de um moribundo, sem perceber que era ele
mesmo, naquele emaranhado de ferros retorcidos.
Enquanto o seu corpo se debatia em
convulsões ritmadas, um líquido fétido e viscoso invadia a sua boca, abrindo
espaço entre os dentes semicerrados. Aquele era o gosto da morte! Theodore nunca imaginara que a morte seria
assim, tão banal, nem trágica, nem burlesca, apenas simplória, como a vida que
estava perdendo. Ele sempre pensou na morte como algo extraordinário, cheio de
mistérios insondáveis, como um túnel de luz misterioso que se descortina no
horizonte; ele fez planos para o solitário beijo da morte, esperou-a com prazer
e júbilo. Ele não a temia, antes a desejava.
Que especial que nada! Ele simplesmente
estava se afogando no esgoto, literalmente morrendo na merda. Nada de mortes
extraordinárias e heroicas, em cenários de guerra ou nas ruas de Veneza ou de
Nova York! Theodore estava morrendo em um pequeno córrego à margem da estrada,
engolindo os dejetos de alguma cidade de vivos ainda mais mortos do que ele.
Todas as suas vivências — o paraíso, o
purgatório e o seu inferno particular — pareciam condensadas nas fotografias de
um velho álbum, cujas folhas se desnudavam num surto febril e delirante. A sua vida
passava diante dos olhos, desde o útero até esse dia especial. No meio da
exposição das imagens, ele já estava entediado:
— Puta que pariu! Não era assim que eu
queria morrer. Engolindo merda, não! Eu planejei esse dia por várias semanas; viajei
milhas e milhas, para encontrar o dia certo. Será mesmo que essa é a minha hora
de morrer? Acho que alguma coisa ficou faltando... mas deve ser assim mesmo; nunca
estamos prontos, quando a morte nos convida a seguir os seus passos; sempre
falta alguma coisa, para morrer... — Esses eram os pensamentos de Theodore,
ao descer o pano da sua existência.
Entre uma golfada e outra de esgoto,
ele se dá conta de que o seu plano era esse mesmo — morrer! —, embora não
tivesse sido executado da forma como esboçara por tanto tempo. Morrer com o sol
se refugiando, sonolento, no fundo da cena, era um desejo da adolescência. A
morte que ele planejara com tanto esmero não seria possível, mas — que diacho!
— morrer é morrer. Morre-se bem na água, morre-se ainda melhor na merda... O
plano inicial de Theodore era lançar o carro no Rio Madeira, para que as suas
águas caudalosas o levassem lentamente. Os seus planos fracassaram, é certo; mas
alcançaram, por linhas tortas, o objetivo inicial. Sentindo que daria, enfim, o
último suspiro, ele convida a morte, inevitável e desejosa morte, para caminhar
no seu delírio, arrancando-lhe a existência que ele nunca soube transformar em
vida. Enquanto o carro era engolfado pelas águas barrentas do Rio Madeira,
Theodore gritava, entre gargalhadas:
— Eu tô morrendo, porra! Há, há, há!.. Eu
tô morrendo, caralho! Há, há, há!... Morre logo, filho da puta! Morre log...
— Theodore! Theodore! O que está
acontecendo? Você enlouqueceu? — Do lado de fora do quarto, Raquel esganiçava-se,
em desespero, tentando descobrir o que se passava com o seu estranho hóspede.
Ele abre a porta, com os cabelos em desalinho:
— Não aconteceu nada, Raquel! Eu tive
um sonho muito louco.
— Um pesadelo, Theodore! A julgar pelos
seus gritos, você teve um pesadelo...
Depois de trocar algumas palavras com Raquel,
Theodore toma um bom banho e pensa sobre o seu plano:
— Depois do café, pegarei a estrada.
Hoje é o dia certo!... Mas o que será mesmo que eu esqueci?... Sempre fica
alguma coisa por fazer na hora da morte...
(Theodore
examina o smartphone e lê, com um sorriso irônico, as duas mensagens que
chegaram na noite anterior).
F I M
Post
Scriptum:
a pintura superior é “O Retrato do
Doutor Gachet”, primeira versão, de Vincent van Gogh, obra concluída em
junho de 1890. Paul Gachet, renomado Psiquiatra francês, radicado em Saint-Rémy-de-Provence,
além de ter sido o último Psiquiatra a tratar de van Gogh, acabou se
notabilizando pelo círculo de amizades, que incluía muitos artistas famosos,
como Manet, Monet, Renoir e Cézanne. Van Gogh o consultou a conselho do irmão,
Theo. O quadro é um dos mais representativos da genialidade de van Gogh, não
apenas pela qualidade dos tons pós-impressionistas, mas por ter sido pintado
nos últimos meses da sua vida. Como todos sabem, após sofrer de ansiedade e
profundas crises de depressão por muitos anos, van Gogh cometeu suicídio, aos
37 anos, atirando, com um revólver, contra o próprio peito. Não se sabe ao
certo o motivo, mas existem duas versões para “O Retrato do Doutor Gachet”, ambas executadas em junho de 1890. A
pintura inferior é a segunda versão d“O
Retrato do Doutor Gachet”, de Vincent van Gogh.