sábado, 24 de fevereiro de 2018

Pequeno ensaio sobre a mentira (Segunda edição revista e significativamente aumentada)

Pequeno ensaio sobre a mentira
(Segunda edição revista e significativamente aumentada)

Quanto mais próximo da verdade tu te conservares ao inventar uma mentira, mais fácil será invocar em teu favor o benefício da dúvida.

E ainda melhor será contar verdades com aparência de mentiras, pois, ao descobrirem a veracidade das tuas narrativas mais inverossímeis, as tuas mentiras passarão por verdades, ainda que impregnadas pelo signo da inverossimilhança.

O mentiroso, reduzido ao seu mínimo essencial, é um contador de ilusões, um criador de narrativas imaginárias. Ele inventa acontecimentos e os “vende” como autênticos, mascarando a realidade que o incomoda. Ele pode camuflar a pobreza envergonhada, a falta de caráter de uma traição ou, em muitos casos, a sua prosaica indigência intelectual. Todavia, ele sempre estará fugindo da verdade, para obter algum proveito para si ou para outrem.

E qual é o paraíso do mentiroso? As redes sociais, sem dúvida alguma! Nelas, o mentiroso sente-se protegido pela distância dos seus alvos, refugiando-se por trás da telinha do smartphone ou do computador. Ele ataca camuflado por identidades virtuais falsas e espalha o seu veneno na forma de “fake news”.

O que a internet tem de benéfica enquanto meio de comunicação de massas — essa liberdade de expressão sem limites — pode representar o seu maior perigo, o ponto de inflexão para o abismo. A palavra concedida a todos, indistintamente, quando usada por tolos e malfeitores, pode contaminar o tecido social e necrosar o caráter dos que possuem mentes esponjosas. As histórias que se propagam na rede globalizada podem ter sido distorcidas, para o mal ou para o bem, por pessoas que nem sempre as conhecem ou, pior ainda, que as deturpam por interesses raramente confessados, muitas vezes inconscientes. Quando a mentira encontrou a internet, a verdade se tornou uma utopia.

O melhor filtro — para evitar inocentes úteis e falsos profetas, que normalmente falam muito mais do que as palavras expressam — é sempre a dúvida de quem escuta, enfim, a percepção crítica do que o discurso distorce nas palavras que não estão a serviço da verdade ou camufla nos silêncios reveladores.

Que 90% das notícias compartilhadas nas redes sociais sejam falsas e apócrifas, isso eu até compreendo. O ser humano, pérfido por natureza, tem necessidade de gratificar o seu lado sombrio e oculto, sempre que a maldade transborda para o ego. Nada disso me surpreende!

Mas eu juro que gostaria de entender como funciona a mente — primitiva e maleável — de quem acredita e compartilha tantas tolices e falsidades, sem verificar, com olhar crítico, a veracidade do seu conteúdo e a intenção perversa e sub-reptícia de quem "criou" a mentira virtual. Impende notar, todavia, que “fake news”  — o mal de todos os tempos — só existirá enquanto tiver, como combustível, a cumplicidade mal-intencionada de quem a propaga por interesse escuso ou o olhar complacente de quem a propaga por alienação e ingenuidade. O que se convencionou chamar de "fake news", entretanto, pode ser a notícia verdadeira que contraria as suas certezas prévias e, por isso, incomoda-o, tirando-o da sua zona de conforto; ao passo que "notícia verdadeira" pode ser a "fake news" que confirma as suas certezas prévias e, assim o fazendo, afaga o seu ego, acariciando-o na sua zona de conforto.

O grande problema é que muitos leem de forma passiva, sem permear a experiência da leitura com a reflexão, sem depurar a escrita dos seus venenos, sem perceber as ciladas que o escritor deixou pelo caminho. Para esses leitores — normalmente tolos fantasiados de sábios —, a escrita e a leitura caminham juntas, vagando na uniformidade conformista, invariavelmente, mas não por acaso, no sentido que foi sugerido pelo escritor ou criador de conteúdo, algumas vezes sub-repticiamente.

Sem a reflexão crítica, para mediar a palavra escrita no seu caminho para se transformar em conhecimento adquirido, o leitor pode ser vítima da falsificação da realidade, acreditando, muitas vezes, em versões fantasiosas para os fatos que estão sendo adulterados com a sua cumplicidade passiva.

Só uma postura ativa, diante da palavra escrita e do conhecimento, pode levar a novas perspectivas para a apropriação da realidade, sem a assimilação cega das versões obscuras que se criaram para os fatos. Leia duas, três ou mais fontes, antes de se deixar enganar pelo ouro dos tolos. Faça o que fizer, porém, nunca pesquise, apenas, nas redes sociais ou em Blogs, mas, sim, em grandes jornais e revistas, checando uns comparativamente com outros. Não desperdice o seu precioso tempo com os noticiosos de reputação duvidosa ou controlados pelos lobos das oligarquias da grande imprensa. Eles têm interesses próprios a defender e, por certo, não coincidem com os seus.

Para cada pós-verdade ou mentira descarada — e essa é uma conclusão óbvia —, existe um bobo ou, em alguns casos, um espertalhão que a propaga e um tolo que acredita. Sem confirmação em várias fontes, arquive o factoide como boato, fofoca, mentira ou pós-verdade.

O prazer de encontrar no outro uma compensação para as minhas próprias misérias, algo que me faça acreditar, mesmo iludido, que existem vidas ainda mais medíocres do que a minha, é a verdadeira raiz do boato e da fofoca, a razão de ser da sua propagação, vertical e horizontal, nas sociedades humanas.

Mas o que seriam, então, a fofoca e o boato?

Creio que cada leitor, segundo o seu próprio contato com o fenômeno, há de lhe emprestar um significado próprio, mas, em essência, as variações de sentido, bastante sutis, não chegam a tornar incerta ou difusa a exata compreensão dos termos. Em primeiro lugar, podemos dizer que se trata de uma criação exclusivamente humana. Ouso dizer, e o afirmo sem ironia, que você não verá outros animais — não os desse Planeta —, espalhando boatos e fofocas na esquina da sua rua nem no mundo digital.

Além disso, é fácil concluir, pela experiência de cada um — como autor ou como vítima —, que fofoca e boato são criações fantasiosas de uma mente doentia, normalmente sem autoestima, que se espalham como pragas, notadamente nos meios virtuais, onde o anonimato inspira a fofoca e o obscurantismo, conspirando contra a verdade. Boatos e fofocas surgem da maldade atávica do Homo sapiens sapiens! Essa é a nossa segunda conclusão, também dotada de razoável grau de acuidade.

Nesse mundo fantasioso, onde todos mergulham no próprio umbigo, detrair a alteridade me faz menos banal e medíocre. A fofoca, ao denegrir as pessoas que invejo e de quem guardo rancor, pavimenta, ao menos nas minhas ilusões narcísicas, a estrada para a minha ascensão econômica e social. Enfim, reduzindo o outro à sua insignificância, tento dar significado à minha própria existência banal, mesmo que, para isso, eu precise subir no ombro alheio e pisotear a verdade.

Fofoca (também serve para o seu irmão gêmeo, o boato) é, pois, a realização ilusória de um desejo ou pulsão destrutiva, na verdade uma perversão que nasce da inveja, da ira, da vingança, do arrivismo, das paixões mal resolvidas, das projeções no outro das sombras recalcadas no inconsciente ou, na maior parte dos casos, de interesses torpes, notadamente financeiros, políticos ou, o que é bastante comum, ligados à vontade de ascender, a qualquer preço, na pirâmide social, mesmo que em sacrifício da fama e reputação alheias.

O que estimula a fofoca, na verdade, é a percepção, pelo fofoqueiro, de algum traço (real ou imaginário) da sua vítima que o identifica a si próprio. Fofocar, portanto, é declarar ao mundo, na pessoa do outro, os defeitos e traços negativos que o fofoqueiro não aceita em si mesmo, mas enxerga na alteridade, projetando em outrem, real ou imaginariamente, tudo que o ego recalca no inconsciente. A fofoca não fala da sua vítima, mas do próprio fofoqueiro.

Invencível é o desejo de bisbilhotar a vida alheia, quando não se sabe o que fazer da própria vida.

Só tenho pena das crianças e jovens do nosso tempo, que já nascem marcados pelo signo do obscurantismo desse mundo de verdades virtuais ou, como prefiro dizer, ilusórias, que se propagam ao sabor dos ventos, mudando de direção conforme os interesses abjetos e sombrios de cada um. Como desgraça pouca é bobagem, criaram um eufemismo pomposo para a fofoca e o boato: pós-verdade.

Criamos a fofoca no início da evolução humana e, malgrado a nossa ilusão de dominá-la, acabamos sobrepujados por ela nas redes sociais. O criador curvou-se diante da criatura, e a fofoca — também conhecida como boato, factoide, pós-verdade ou, pura e simplesmente, mentira — alcançou o "status" de certeza.

Para o fofoqueiro, a vida alheia é moeda de troca! Por isso, não mostre todas as suas cartas a ninguém. Guarde um ás na manga da camisa, para matar de inveja o fofoqueiro.

E o mais importante: nunca se exponha no mais impiedoso, parcial, injusto, cruel, arrogante e leviano dos tribunais, a Internet! Quem nela navega costuma julgar por ouvir dizer, não confirma a informação, não sabe do que fala, mas tem certeza de tudo.

Pobre mundo esse em que os fatos só se tornam fatos, quando afagam as minhas certezas confortáveis.

A moda agora é essa: eu li na Internet, logo é verdade!

Se você estiver no seu período de fertilidade intelectual, não leia notícias nas redes sociais, ou acabará emprenhando pelos ouvidos...

Da minha parte, não gaste seu tempo tentando engravidar-me de boatos e falsidades. Não confio sequer nas minhas verdades! Acho mesmo que estou na andropausa intelectual: não emprenho de nada que se publica na Internet, principalmente nas redes sociais. Aliás, nem em você eu acredito, meu caro leitor, e duvido ainda mais do que escrevo: as minhas convicções de ontem acabarão no lixo amanhã ou, quem sabe e com sorte, ainda hoje.

Se duvido, logo penso! Assim é que caminho ultimamente... Muito antes das redes sociais, época de culto ao efêmero, tempo de sabedoria pasteurizada, era de homogeneidades, dizia Antoine Léonard Thomas, em seu clássico “Éloge de René Descartes”:

"Se duvido, penso; se penso, logo existo" ("Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j'existe". (THOMAS, Antoine Léonard. Éloge de René Descartes. In: Oeuvres philosophiques de Descartes. Paris: Auguste Desrez, 1838. p. 06).

Prisioneiros desse complexo de vira-latas, que nos faz carentes de amor próprio, passamos a vida em busca de pessoas mais atraentes, mais inteligentes ou mais bem-sucedidas do que nós, seres acima do bem e do mal que nos “presenteiem”, não com a realidade objetiva, mas com uma versão subjetiva e distorcida dessa realidade.

Invejamos tudo que nos vendem com o signo do sucesso, objetos que passam a receber os nossos investimentos libidinais, não porque deles necessitemos, mas por estarem associados aos padrões de consumo e paradigmas das pessoas de sucesso aparente, cujos modelos copiamos sem perceber. Basta ver a mais nova balada do momento ou o mais novo brinquedinho da moda, normalmente o melhor gadget de todos os tempos da última semana — diziam os Titãs, falando dessas bandas que surgem no alvorecer e desaparecem no crepúsculo —, reproduzidos na selfie de algum "amigo" virtual, que o desejo compulsivo nos devora.

Vivemos desesperados por dar opiniões definitivas e geniais sobre tudo o que se passa no mundo, não porque tenhamos a intenção de refletir seriamente sobre os desafios da contemporaneidade, mas porque desejamos ser curtidos e compartilhados nas redes sociais. Esse é o mundo mágico do “Ctrl c” “Ctrl v”, a era dos copiadores compulsivos de ideias prontas!

Nesse delírio de onipotência narcísica, imaginamos saber tudo sobre todos e, com algumas palavras vagas, não raramente ofensas gratuitas e suposições repetidas por ouvir dizer, vomitamos uma velha opinião sobre todos os assuntos, julgando as pessoas como se as conhecêssemos. Aquele é corrupto e ladrão, aquela, puta e safada, aqueloutro, imbecil e assim por diante... Julgando os outros, vamos definindo o que somos.

Para os sábios das redes sociais, o feio não é falar abobrinhas, vomitar injúrias e escarrar preconceitos, mas não saber o que falar ou simplesmente ter dúvidas.

E, contudo, sabemos tão pouco sobre nós mesmos. Sequer fazemos ideia do que se passa em nosso próprio inconsciente.

Escondidos sob o manto das certezas afáveis, envergonhados das dúvidas e perplexidades que nos consomem, tememos ser vítimas do escárnio e da maledicência dos sábios do “Ctrl c” “Ctrl v”.

Meu caro leitor, duvide, resista, reme contra a corrente e não abdique da capacidade de pensar! Geneticamente, essa é a maior diferença entre você e as amebas!

Nem tudo é como dizem ou como parece ser.

Por isso, não se torne escravo das certezas! Desapegue-se das ideias absolutas, abandone as crenças e pensamentos imutáveis! Só assim, você se libertará da dependência emocional!

No início, você se sentirá meio perdido, sem chão, mas terá conquistado a maturidade. Estará mais apto a lidar com as frustrações da vida, nutrindo menos ilusões e expectativas. Será mais flexível aos desafios imprevistos, podendo lidar de forma amadurecida com o mundo em transformação e com as pessoas que "conspiram" contra a verdade.

Libertando-se da dependência emocional, despegando-se das ideias e crenças absolutas, você poderá reagir com flexibilidade às variáveis e incertezas que se apresentem a cada instante da caminhada.

Quem reage ao imponderável, sem se abandonar e sem abdicar da dúvida, encontra o caminho da virtude.

Perdoem-me a impaciência, mas não estou no meu período fértil, para engravidar de boatos e suposições.

Como já deixei consignado, nenhuma forma de manipulação escrita sobrevive sem a passividade do leitor. É a sua cumplicidade resignada que alimenta a manipulação.

Por isso, leia, mas não acredite em tudo que leu: você tem mais neurônios do que uma ovelha! Comece duvidando das suas fontes e, principalmente, do que eu escrevo. As minhas palavras, rotas e repetitivas, podem não passar de um amontoado de tolices, expressões banais e sem outros significados possíveis, além daqueles que todos já conheciam antes de mim. Ou eu posso ser um psicopata manipulador...

Não leia para engolir as “verdades” alheias, mas para desconstruí-las, se necessário em sacrifício da sua popularidade virtual. Existe vida inteligente além da normose. Sabe de uma coisa? Foda-se todo mundo que acredita! Você não é todo mundo, porra.

Grite, berre, mas não engula abobrinhas. Cento e quarenta caracteres não bastam para o seu manifesto? Resista! Escreva quantas palavras quiser! Se ninguém as ler no início, paciência. De tanto repeti-las, alguém acabará se interessando. Você terá plantado uma pequena semente chamada dúvida...

Acima de tudo, não seja manipulado: é para isso que serve o cérebro, esse órgão estrategicamente situado entre os seus dois ouvidos. Pode apostar que ele não está aí por acaso...

Quem fala nem sempre tem a intenção de informar.

Entre o que se diz e o que se escuta, entre a práxis e o discurso pende, no cabresto, a ingenuidade de quem lê, mas não reflete; acredita, mas não duvida.

Se você quiser saber se determinado fato é verdadeiro, faça uma breve pesquisa no Facebook e no Twitter. Se a versão que você leu ou escutou tornou-se “viral”, aposte todas as suas fichas que é falsa. Não confie em gregos e, menos ainda, em troianos: ambos fingem tanto, que chegam a fingir que é falsa a falsidade que contam. Nesses tempos de pós-verdade, as verdades são mentiras, e as mentiras são provadas como verdades...

Na dúvida, mande todo mundo à merda e não confie em ninguém, nem mesmo em você, quando se perceber muito crédulo e ingênuo. A regra é essa: duvide de todos e de si mesmo, sobretudo quando o esforço probatório lhe parecer maior do que a diligência que a verdade exigiria nas mesmas condições.

O problema, de fato, não é a mentira nas redes sociais — algo inevitável em se tratando de humanos —, mas ser idiota o suficiente para acreditar nela.

Quando compartilhas um boato ou notícia falsa, mas não verificas a idoneidade da fonte, tu te tornas o inocente-útil do mundo virtual ou, traduzindo para a linguagem dos tolos, o cúmplice de um crime perfeito, que só deixa a ti mesma como suspeita. Quem criou a farsa, em alguma curva do espaço-tempo, já se ocultou nas sombras. Para propagá-la, existem os papagaios da rede, pessoas com o teu perfil...

O diabo, nessa rede de intrigas e mentiras, é a tua obsessão compulsiva por compartilhar boatos que confirmem velhas certezas, o maldito viés de confirmação. A verdade pode ser manipulada e distorcida, para que a realidade se acomode aos valores e preconceitos que aprisionaram os teus neurônios, formando essa argamassa disforme chamada intolerância, a ilusão narcísica de ter uma velha opinião formada sobre tudo. O Raul Seixas tinha razão!...

Não tens dúvida de nada e, para reafirmar os teus delírios de sabedoria e verdade, tu precisas compartilhar, sem pudor ou modéstia, as mentiras que vomitam nas redes sociais, mesmo as mais toscas e inverossímeis, reproduzindo as narrativas (tolas ou diabolicamente racionais) que sirvam como viés de confirmação para as tuas certezas prévias.

O que seria do mundo sem o egocentrismo dos idiotas-úteis? Menos ilusório, provavelmente...

Seja como for, eu ainda prefiro escutar ”algumas” mentiras — inevitáveis entre seres humanos! — a amordaçar toda a verdade! Censura não é solução para nada, mas fuga da realidade, que nunca deixará de ser realidade pelo simples fato de a negarmos, censurando as formas e meios pelos quais ela pode expressar-se em todas as suas nuances. Sempre que a verdade doer, alguma transformação surgirá!

Eu não me deslumbro, porém: existem pessoas nesse mundo que mentem tão cinicamente, e com tal naturalidade, que chegam a se esquecer de que são mentiras as inverdades que contam. Enganam-se a si próprias com tal sinceridade, que acabam consoladas por suas próprias mentiras.

Mentem a felicidade que não experimentam depois que a telinha mágica do smartphone se desliga; mentem até a tristeza, para angariar piedade; postam notícias falsas, reproduzem textos apócrifos, que fazem revirar nos túmulos os supostos autores; mentem sobre bens que nunca terão, sobre pessoas que jamais haverão de conquistar. E vai tão longe essa compulsão de enganar o outro, que mentem até sobre futilidades, que não importariam a ninguém, ainda que fossem reais.

Não é apenas o outro que é ludibriado, mas o próprio ego do mentiroso, que adormece em negações delirantes, disfarçando a verdade que não é capaz de modificar nem tolerar ou transformar em realidade.

Para o mentiroso compulsivo, contudo, mentir é uma forma de se iludir com a própria tolice, tomando-a por astúcia inigualável. Enfim, para alguns, basta a ilusão de riqueza, caráter, poder e beleza. Esses não vivem os sonhos, inventam a vida... e se convencem de que a viveram... Eu conheço muita gente inteligente que vive assim... Um deles é meu parente...

Mas qual é a mentira mais difícil de detectar? A resposta me parece simples: a que inventamos para nós mesmos!

Na maior parte das vezes, ignoramos as nossas próprias motivações, que permanecem recalcadas no inconsciente. Sem perceber, criamos narrativas fictícias, ou seja, mentiras, na tentativa de justificar ou camuflar as nossas ações, reações e desejos obscuros, desconhecendo e, mais do que isso, negando as emoções e sentimentos destrutivos que as motivaram.

Os conteúdos do inconsciente, para não irromperem na consciência, manifestam-se, parcialmente, através de sintomas, ações, opiniões, afetos, fantasias, sonhos e, não raro, por meio de narrativas fictícias (mentiras), cujo descolamento da realidade nós ignoramos no plano da consciência. Quando o ego distorce a verdade, para negar ou alterar os conteúdos do inconsciente, enganamo-nos a nós próprios, este, sim, o pior dos enganos.

A mentira que inventamos para nós mesmos é, de fato, a mais singular de todas: não a percebemos, mas os outros, muitas vezes, sim...

“Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira..." — já dizia o grande Renato Russo.

Na verdade, saber iludir é um dom! Poucos o dominam e, para os que desejam tornar-se “artistas do embuste”, eu darei dois conselhos:

1º) Uma vez ou outra, diz verdades que pareçam mentiras, provando que são reais, mesmo sendo inverossímeis, e todos acreditarão quando tu disseres mentiras que caminhem próximas da verdade.

2º) Recheia com algumas verdades as tuas mentiras mais cabeludas, e jamais saberão distinguir umas das outras. Meias mentiras e verdades mascaradas de mentiras, quando espargidas com argúcia durante determinado tempo, iludirão a mais perspicaz das criaturas, quando uma mentira inteira for contada.

Muito difícil para os teus neurônios peregrinos e solitários? Então, fala a verdade e desiste de mentir! Se não suportarem a realidade, o problema não será teu...

Para trazer ainda mais desconforto à tua mente iludida, eu lanço duas perguntas meramente retóricas (Traduzindo, eu não tenho a menor curiosidade de saber a tua resposta!):

Tu te sentes confortável ao ser confrontada com a verdade, mesmo que ela contrarie as tuas expectativas e certezas, ou só a desejas escutar se tu mesma estiveres certa? Na hipótese de estares errada, tu preferes uma mentira bem contada?...

Mas não te iludas! Nenhuma mentira é inocente. Todas têm um preço e muitas consequências, reais ou ilusórias.

Seja qual for a tua intenção, porém, segue o conselho de Millôr Fernandes e “jamais diga uma mentira que não possa provar.”

Acima de tudo, sê humilde nas tuas mentiras, porque, para cada arrogante que pensa que engana todo mundo, existe outro mentiroso que finge que acredita.

Queres um conselho? Não? Mas eu o darei assim mesmo. Começa a falar a verdade! É bem mais simples.

A falsidade é um pesado fardo para ti, pobre alma que te alimentas da infelicidade alheia! A mentira exige dissimulação, boa memória e capacidade de criar ilusões. E tu, vulto sem cor e luz, tu mal começaste a viver a vida... Se nem sabes dizer a verdade, por que te imaginas sabendo iludir?

Mentir é para poucos! Uma simples mentira exige dez outras para confirmá-la. E tu não tens esse dom, criatura inútil! Se nem sabes repetir a verdade, como pretendes dominar a arte dos embustes?

Queres fazer uma revolução na tua vida inútil? Acorda as verdades adormecidas no inconsciente, que sonham com os teus lábios, para despertar! Há muitas verdades que permanecem mudas à espera da tua voz!

Ainda pior do que as tuas mentiras é a ilusão em que vives, ao imaginar que eu, mesmo tolo, não percebo os teus embustes. Finjo-me de iludido, disfarço-me com o véu do fascínio, para alimentar o teu tolo engano. Quando perceberes, desiludida, que só tu acreditavas nas tuas mentiras, quando a verdade toda se revelar a ti mesma, será tarde demais para curar as feridas do teu Narciso.

Mas continua assim, embotando a verdade nos teus disfarces, que eu te concedo o meu olhar mais piedoso, o derradeiro sorriso que antecede o desprezo.

Do teu coração de gelo, farei meu último drink, que repousará nos meus lábios sem lamento e sem tristeza.

Jorge Araken Filho, apenas um farsante do mundo virtual, alguém que veste a persona de escritor para desconstruir pós-verdades.

Post scriptum: flexiono o estrangeirismo "fake news" no singular, mantendo-me fiel ao original em inglês, onde o substantivo "news", apesar do "s" final, é singular e incontável (incountable noum), significando, portanto, "notícia", e não "notícias". Se houvesse escolhido a expressão equivalente, em língua portuguesa (evitando, assim, o estrangeirismo), flexioná-la-ia no plural e no feminino, escrevendo "notícias falsas", ao invés de "fake news". Considerando, porém que optei pelo estrangeirismo "fake news", mantenho-me fiel à flexão original, no singular, que é a única correta, no idioma de Shakespeare.


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