Pequeno ensaio sobre a mentira
(Segunda edição revista e significativamente
aumentada)
Quanto mais próximo da verdade tu te
conservares ao inventar uma mentira, mais fácil será invocar em teu favor o
benefício da dúvida.
E ainda melhor será contar verdades com
aparência de mentiras, pois, ao descobrirem a veracidade das tuas narrativas
mais inverossímeis, as tuas mentiras passarão por verdades, ainda que
impregnadas pelo signo da inverossimilhança.
O mentiroso, reduzido ao seu mínimo
essencial, é um contador de ilusões, um criador de narrativas imaginárias. Ele
inventa acontecimentos e os “vende” como autênticos, mascarando a realidade que
o incomoda. Ele pode camuflar a pobreza envergonhada, a falta de caráter de uma
traição ou, em muitos casos, a sua prosaica indigência intelectual. Todavia,
ele sempre estará fugindo da verdade, para obter algum proveito para si ou para
outrem.
E qual é o paraíso do mentiroso? As
redes sociais, sem dúvida alguma! Nelas, o mentiroso sente-se protegido pela
distância dos seus alvos, refugiando-se por trás da telinha do smartphone ou do computador. Ele ataca
camuflado por identidades virtuais falsas e espalha o seu veneno na forma de “fake news”.
O que a internet tem
de benéfica enquanto meio de comunicação de massas — essa liberdade de
expressão sem limites — pode representar o seu maior perigo, o ponto de
inflexão para o abismo. A palavra concedida a todos, indistintamente, quando
usada por tolos e malfeitores, pode contaminar o tecido social e necrosar o
caráter dos que possuem mentes esponjosas. As histórias que se propagam na rede
globalizada podem ter sido distorcidas, para o mal ou para o bem, por pessoas
que nem sempre as conhecem ou, pior ainda, que as deturpam por interesses
raramente confessados, muitas vezes inconscientes. Quando a mentira encontrou
a internet, a verdade se tornou uma utopia.
O melhor filtro — para evitar inocentes
úteis e falsos profetas, que normalmente falam muito mais do que as palavras
expressam — é sempre a dúvida de quem escuta, enfim, a percepção crítica do que
o discurso distorce nas palavras que não estão a serviço da verdade ou camufla
nos silêncios reveladores.
Que 90% das notícias compartilhadas nas
redes sociais sejam falsas e apócrifas, isso eu até compreendo. O ser humano,
pérfido por natureza, tem necessidade de gratificar o seu lado sombrio e oculto,
sempre que a maldade transborda para o ego. Nada disso me
surpreende!
Mas eu juro que gostaria de entender
como funciona a mente — primitiva e maleável — de quem acredita e compartilha
tantas tolices e falsidades, sem verificar, com olhar crítico, a veracidade do
seu conteúdo e a intenção perversa e sub-reptícia de quem "criou" a
mentira virtual. Impende notar, todavia, que “fake news” — o mal de todos os tempos — só
existirá enquanto tiver, como combustível, a cumplicidade mal-intencionada de quem a propaga por interesse escuso ou o olhar complacente de quem a propaga por alienação e ingenuidade. O que se convencionou chamar de "fake news", entretanto, pode ser a notícia verdadeira que contraria as suas certezas prévias e, por isso, incomoda-o, tirando-o da sua zona de conforto; ao passo que "notícia verdadeira" pode ser a "fake news" que confirma as suas certezas prévias e, assim o fazendo, afaga o seu ego, acariciando-o na sua zona de conforto.
O grande problema é que muitos leem de
forma passiva, sem permear a experiência da leitura com a reflexão, sem depurar
a escrita dos seus venenos, sem perceber as ciladas que o escritor deixou pelo
caminho. Para esses leitores — normalmente tolos fantasiados de sábios —, a
escrita e a leitura caminham juntas, vagando na uniformidade conformista,
invariavelmente, mas não por acaso, no sentido que foi sugerido pelo escritor
ou criador de conteúdo, algumas vezes sub-repticiamente.
Sem a reflexão crítica, para mediar a
palavra escrita no seu caminho para se transformar em conhecimento adquirido, o
leitor pode ser vítima da falsificação da realidade, acreditando, muitas vezes,
em versões fantasiosas para os fatos que estão sendo adulterados com a sua
cumplicidade passiva.
Só uma postura ativa, diante da palavra
escrita e do conhecimento, pode levar a novas perspectivas para a apropriação
da realidade, sem a assimilação cega das versões obscuras que se criaram para
os fatos. Leia duas, três ou mais fontes, antes de se deixar enganar pelo ouro
dos tolos. Faça o que fizer, porém, nunca pesquise, apenas, nas redes sociais ou
em Blogs, mas, sim, em grandes jornais e revistas, checando uns
comparativamente com outros. Não desperdice o seu precioso tempo com os
noticiosos de reputação duvidosa ou controlados pelos lobos das oligarquias da
grande imprensa. Eles têm interesses próprios a defender e, por certo, não
coincidem com os seus.
Para cada pós-verdade ou mentira
descarada — e essa é uma conclusão óbvia —, existe um bobo ou, em alguns casos,
um espertalhão que a propaga e um tolo que acredita. Sem confirmação em várias
fontes, arquive o factoide como boato, fofoca, mentira ou pós-verdade.
O prazer de encontrar no outro uma
compensação para as minhas próprias misérias, algo que me faça acreditar, mesmo
iludido, que existem vidas ainda mais medíocres do que a minha, é a verdadeira
raiz do boato e da fofoca, a razão de ser da sua propagação, vertical e
horizontal, nas sociedades humanas.
Mas o que seriam, então, a fofoca e o
boato?
Creio que cada leitor, segundo o seu
próprio contato com o fenômeno, há de lhe emprestar um significado próprio,
mas, em essência, as variações de sentido, bastante sutis, não chegam a tornar
incerta ou difusa a exata compreensão dos termos. Em primeiro lugar, podemos
dizer que se trata de uma criação exclusivamente humana. Ouso dizer, e o afirmo
sem ironia, que você não verá outros animais — não os desse Planeta —,
espalhando boatos e fofocas na esquina da sua rua nem no mundo digital.
Além disso, é fácil concluir, pela
experiência de cada um — como autor ou como vítima —, que fofoca e boato são
criações fantasiosas de uma mente doentia, normalmente sem autoestima, que se
espalham como pragas, notadamente nos meios virtuais, onde o anonimato inspira
a fofoca e o obscurantismo, conspirando contra a verdade. Boatos e fofocas surgem
da maldade atávica do Homo sapiens
sapiens! Essa é a nossa segunda conclusão, também dotada de razoável grau
de acuidade.
Nesse mundo fantasioso, onde todos
mergulham no próprio umbigo, detrair a alteridade me faz menos banal e
medíocre. A fofoca, ao denegrir as pessoas que invejo e de quem guardo rancor,
pavimenta, ao menos nas minhas ilusões narcísicas, a estrada para a minha
ascensão econômica e social. Enfim, reduzindo o outro à sua insignificância,
tento dar significado à minha própria existência banal, mesmo que, para isso,
eu precise subir no ombro alheio e pisotear a verdade.
Fofoca (também serve para o seu irmão
gêmeo, o boato) é, pois, a realização ilusória de um desejo ou pulsão
destrutiva, na verdade uma perversão que nasce da inveja, da ira, da vingança, do arrivismo, das paixões mal resolvidas, das projeções no outro das sombras recalcadas no
inconsciente ou, na maior parte dos casos, de interesses torpes, notadamente
financeiros, políticos ou, o que é bastante comum, ligados à vontade de
ascender, a qualquer preço, na pirâmide social, mesmo que em sacrifício da fama
e reputação alheias.
O que estimula a fofoca, na verdade, é
a percepção, pelo fofoqueiro, de algum traço (real ou imaginário) da sua vítima
que o identifica a si próprio. Fofocar, portanto, é declarar ao mundo, na
pessoa do outro, os defeitos e traços negativos que o fofoqueiro não aceita em
si mesmo, mas enxerga na alteridade, projetando em outrem, real ou imaginariamente, tudo que o ego recalca no inconsciente. A fofoca não fala da sua vítima, mas do próprio fofoqueiro.
Invencível é o desejo de bisbilhotar a
vida alheia, quando não se sabe o que fazer da própria vida.
Só tenho pena das crianças e jovens do
nosso tempo, que já nascem marcados pelo signo do obscurantismo desse mundo de
verdades virtuais ou, como prefiro dizer, ilusórias, que se propagam ao sabor
dos ventos, mudando de direção conforme os interesses abjetos e sombrios de
cada um. Como desgraça pouca é bobagem, criaram um eufemismo pomposo para a
fofoca e o boato: pós-verdade.
Criamos a fofoca no início da evolução
humana e, malgrado a nossa ilusão de dominá-la, acabamos sobrepujados por ela
nas redes sociais. O criador curvou-se diante da criatura, e a fofoca — também conhecida como boato, factoide, pós-verdade ou, pura e simplesmente,
mentira — alcançou o "status" de certeza.
Para o fofoqueiro, a vida alheia é
moeda de troca! Por isso, não mostre todas as suas cartas a ninguém. Guarde um
ás na manga da camisa, para matar de inveja o fofoqueiro.
E o mais importante: nunca se exponha
no mais impiedoso, parcial, injusto, cruel, arrogante e leviano dos tribunais,
a Internet! Quem nela navega costuma
julgar por ouvir dizer, não confirma a informação, não sabe do que fala, mas
tem certeza de tudo.
Pobre mundo esse em que os fatos só se
tornam fatos, quando afagam as minhas certezas confortáveis.
A moda agora é essa: eu li na Internet, logo é verdade!
Se você estiver no seu período de
fertilidade intelectual, não leia notícias nas redes sociais, ou acabará emprenhando
pelos ouvidos...
Da minha parte, não gaste seu tempo
tentando engravidar-me de boatos e falsidades. Não confio sequer nas minhas
verdades! Acho mesmo que estou na andropausa intelectual: não emprenho de nada
que se publica na Internet, principalmente
nas redes sociais. Aliás, nem em você eu acredito, meu caro leitor, e duvido
ainda mais do que escrevo: as minhas convicções de ontem acabarão no lixo
amanhã ou, quem sabe e com sorte, ainda hoje.
Se duvido, logo penso! Assim é que
caminho ultimamente... Muito antes das redes sociais, época de culto ao
efêmero, tempo de sabedoria pasteurizada, era de homogeneidades, dizia Antoine
Léonard Thomas, em seu clássico “Éloge de
René Descartes”:
"Se duvido, penso; se
penso, logo existo" ("Puisque je doute, je pense; puisque je pense,
j'existe". (THOMAS, Antoine Léonard. Éloge de René Descartes. In:
Oeuvres philosophiques de Descartes. Paris: Auguste Desrez, 1838. p. 06).
Prisioneiros desse complexo de
vira-latas, que nos faz carentes de amor próprio, passamos a vida em busca de
pessoas mais atraentes, mais inteligentes ou mais bem-sucedidas do que nós,
seres acima do bem e do mal que nos “presenteiem”, não com a realidade objetiva,
mas com uma versão subjetiva e distorcida dessa realidade.
Invejamos tudo que nos vendem com o
signo do sucesso, objetos que passam a receber os nossos investimentos
libidinais, não porque deles necessitemos, mas por estarem associados aos padrões
de consumo e paradigmas das pessoas de sucesso aparente, cujos modelos copiamos
sem perceber. Basta ver a mais nova balada do momento ou o mais novo
brinquedinho da moda, normalmente o melhor gadget
de todos os tempos da última semana — diziam os Titãs, falando dessas bandas
que surgem no alvorecer e desaparecem no crepúsculo —, reproduzidos na selfie de algum "amigo"
virtual, que o desejo compulsivo nos devora.
Vivemos desesperados por dar opiniões
definitivas e geniais sobre tudo o que se passa no mundo, não porque tenhamos a
intenção de refletir seriamente sobre os desafios da contemporaneidade, mas
porque desejamos ser curtidos e compartilhados nas redes sociais. Esse é o
mundo mágico do “Ctrl c” “Ctrl v”, a era dos copiadores compulsivos de ideias
prontas!
Nesse delírio de onipotência narcísica,
imaginamos saber tudo sobre todos e, com algumas palavras vagas, não raramente
ofensas gratuitas e suposições repetidas por ouvir dizer, vomitamos uma velha
opinião sobre todos os assuntos, julgando as pessoas como se as conhecêssemos.
Aquele é corrupto e ladrão, aquela, puta e safada, aqueloutro, imbecil e assim
por diante... Julgando os outros, vamos definindo o que somos.
Para os sábios das redes sociais, o
feio não é falar abobrinhas, vomitar injúrias e escarrar preconceitos, mas não
saber o que falar ou simplesmente ter dúvidas.
E, contudo, sabemos tão pouco sobre nós
mesmos. Sequer fazemos ideia do que se passa em nosso próprio inconsciente.
Escondidos sob o manto das certezas
afáveis, envergonhados das dúvidas e perplexidades que nos consomem, tememos
ser vítimas do escárnio e da maledicência dos sábios do “Ctrl c” “Ctrl v”.
Meu caro leitor, duvide, resista, reme
contra a corrente e não abdique da capacidade de pensar! Geneticamente, essa é
a maior diferença entre você e as amebas!
Nem tudo é como dizem ou como parece
ser.
Por isso, não se torne escravo das certezas!
Desapegue-se das ideias absolutas, abandone as crenças e pensamentos imutáveis!
Só assim, você se libertará da dependência emocional!
No início, você se sentirá meio
perdido, sem chão, mas terá conquistado a maturidade. Estará mais apto a lidar
com as frustrações da vida, nutrindo menos ilusões e expectativas. Será mais
flexível aos desafios imprevistos, podendo lidar de forma amadurecida com o
mundo em transformação e com as pessoas que "conspiram" contra a verdade.
Libertando-se da dependência emocional,
despegando-se das ideias e crenças absolutas, você poderá reagir com
flexibilidade às variáveis e incertezas que se apresentem a cada instante da
caminhada.
Quem reage ao imponderável, sem se
abandonar e sem abdicar da dúvida, encontra o caminho da virtude.
Perdoem-me a impaciência, mas não estou
no meu período fértil, para engravidar de boatos e suposições.
Como já deixei consignado, nenhuma
forma de manipulação escrita sobrevive sem a passividade do leitor. É a sua
cumplicidade resignada que alimenta a manipulação.
Por isso, leia, mas não acredite em
tudo que leu: você tem mais neurônios do que uma ovelha! Comece duvidando das
suas fontes e, principalmente, do que eu escrevo. As minhas palavras, rotas e
repetitivas, podem não passar de um amontoado de tolices, expressões banais e
sem outros significados possíveis, além daqueles que todos já conheciam antes
de mim. Ou eu posso ser um psicopata manipulador...
Não leia para engolir as “verdades”
alheias, mas para desconstruí-las, se necessário em sacrifício da sua
popularidade virtual. Existe vida inteligente além da normose. Sabe de uma
coisa? Foda-se todo mundo que acredita! Você não é todo mundo, porra.
Grite, berre, mas não engula
abobrinhas. Cento e quarenta caracteres não bastam para o seu manifesto?
Resista! Escreva quantas palavras quiser! Se ninguém as ler no início,
paciência. De tanto repeti-las, alguém acabará se interessando. Você terá
plantado uma pequena semente chamada dúvida...
Acima de tudo, não seja manipulado: é
para isso que serve o cérebro, esse órgão estrategicamente situado entre os
seus dois ouvidos. Pode apostar que ele não está aí por acaso...
Quem fala nem sempre tem a intenção de
informar.
Entre o que se diz e o que se escuta,
entre a práxis e o discurso pende, no cabresto, a ingenuidade de quem lê, mas
não reflete; acredita, mas não duvida.
Se você quiser saber se determinado
fato é verdadeiro, faça uma breve pesquisa no Facebook e no Twitter. Se a
versão que você leu ou escutou tornou-se “viral”, aposte todas as suas fichas
que é falsa. Não confie em gregos e, menos ainda, em troianos: ambos fingem
tanto, que chegam a fingir que é falsa a falsidade que contam. Nesses tempos de
pós-verdade, as verdades são mentiras, e as mentiras são provadas como
verdades...
Na dúvida, mande todo mundo à merda e
não confie em ninguém, nem mesmo em você, quando se perceber muito crédulo e
ingênuo. A regra é essa: duvide de todos e de si mesmo, sobretudo quando o
esforço probatório lhe parecer maior do que a diligência que a verdade exigiria
nas mesmas condições.
O problema, de fato, não é a mentira
nas redes sociais — algo inevitável em se tratando de humanos —, mas ser idiota
o suficiente para acreditar nela.
Quando compartilhas um boato ou notícia
falsa, mas não verificas a idoneidade da fonte, tu te tornas o inocente-útil do
mundo virtual ou, traduzindo para a linguagem dos tolos, o cúmplice de um crime
perfeito, que só deixa a ti mesma como suspeita. Quem criou a farsa, em alguma
curva do espaço-tempo, já se ocultou nas sombras. Para propagá-la, existem os
papagaios da rede, pessoas com o teu perfil...
O diabo, nessa rede de intrigas e
mentiras, é a tua obsessão compulsiva por compartilhar boatos que confirmem
velhas certezas, o maldito viés de confirmação. A verdade pode ser manipulada e
distorcida, para que a realidade se acomode aos valores e preconceitos que
aprisionaram os teus neurônios, formando essa argamassa disforme chamada
intolerância, a ilusão narcísica de ter uma velha opinião formada sobre tudo. O
Raul Seixas tinha razão!...
Não tens dúvida de nada e, para
reafirmar os teus delírios de sabedoria e verdade, tu precisas compartilhar,
sem pudor ou modéstia, as mentiras que vomitam nas redes sociais, mesmo as mais
toscas e inverossímeis, reproduzindo as narrativas (tolas ou diabolicamente
racionais) que sirvam como viés de confirmação para as tuas certezas prévias.
O que seria do mundo sem o egocentrismo
dos idiotas-úteis? Menos ilusório, provavelmente...
Seja como for, eu ainda prefiro escutar
”algumas” mentiras — inevitáveis entre seres humanos! — a amordaçar toda a
verdade! Censura não é solução para nada, mas fuga da realidade, que nunca
deixará de ser realidade pelo simples fato de a negarmos, censurando as formas
e meios pelos quais ela pode expressar-se em todas as suas nuances. Sempre que
a verdade doer, alguma transformação surgirá!
Eu não me deslumbro, porém: existem
pessoas nesse mundo que mentem tão cinicamente, e com tal naturalidade, que
chegam a se esquecer de que são mentiras as inverdades que contam. Enganam-se a
si próprias com tal sinceridade, que acabam consoladas por suas próprias
mentiras.
Mentem a felicidade que não
experimentam depois que a telinha mágica do smartphone se desliga;
mentem até a tristeza, para angariar piedade; postam notícias falsas, reproduzem
textos apócrifos, que fazem revirar nos túmulos os supostos autores; mentem
sobre bens que nunca terão, sobre pessoas que jamais haverão de conquistar. E
vai tão longe essa compulsão de enganar o outro, que mentem até sobre
futilidades, que não importariam a ninguém, ainda que fossem reais.
Não é apenas o outro que é ludibriado,
mas o próprio ego do mentiroso, que adormece em negações
delirantes, disfarçando a verdade que não é capaz de modificar nem tolerar ou
transformar em realidade.
Para o mentiroso compulsivo, contudo,
mentir é uma forma de se iludir com a própria tolice, tomando-a por astúcia
inigualável. Enfim, para alguns, basta a ilusão de riqueza, caráter, poder e
beleza. Esses não vivem os sonhos, inventam a vida... e se convencem de que a
viveram... Eu conheço muita gente inteligente que vive assim... Um deles é meu
parente...
Mas qual é a mentira mais difícil de
detectar? A resposta me parece simples: a que inventamos para nós mesmos!
Na maior parte das vezes, ignoramos as
nossas próprias motivações, que permanecem recalcadas no inconsciente. Sem
perceber, criamos narrativas fictícias, ou seja, mentiras, na tentativa de
justificar ou camuflar as nossas ações, reações e desejos obscuros,
desconhecendo e, mais do que isso, negando as emoções e sentimentos destrutivos
que as motivaram.
Os conteúdos do inconsciente, para não
irromperem na consciência, manifestam-se, parcialmente, através de sintomas,
ações, opiniões, afetos, fantasias, sonhos e, não raro, por meio de narrativas
fictícias (mentiras), cujo descolamento da realidade nós ignoramos no plano da
consciência. Quando o ego distorce a verdade, para negar ou
alterar os conteúdos do inconsciente, enganamo-nos a nós próprios, este, sim, o
pior dos enganos.
A mentira que inventamos para nós
mesmos é, de fato, a mais singular de todas: não a percebemos, mas os outros,
muitas vezes, sim...
“Mentir para si mesmo é sempre a pior
mentira..." — já dizia o grande Renato Russo.
Na verdade, saber iludir é um dom! Poucos
o dominam e, para os que desejam tornar-se “artistas do embuste”, eu darei dois
conselhos:
1º) Uma vez ou outra, diz verdades que
pareçam mentiras, provando que são reais, mesmo sendo inverossímeis, e todos
acreditarão quando tu disseres mentiras que caminhem próximas da verdade.
2º) Recheia com algumas verdades as
tuas mentiras mais cabeludas, e jamais saberão distinguir umas das outras.
Meias mentiras e verdades mascaradas de mentiras, quando espargidas com argúcia
durante determinado tempo, iludirão a mais perspicaz das criaturas, quando uma
mentira inteira for contada.
Muito difícil para os teus neurônios
peregrinos e solitários? Então, fala a verdade e desiste de mentir! Se não
suportarem a realidade, o problema não será teu...
Para trazer ainda mais desconforto à
tua mente iludida, eu lanço duas perguntas meramente retóricas (Traduzindo, eu
não tenho a menor curiosidade de saber a tua resposta!):
Tu te sentes confortável ao ser
confrontada com a verdade, mesmo que ela contrarie as tuas expectativas e
certezas, ou só a desejas escutar se tu mesma estiveres certa? Na hipótese de
estares errada, tu preferes uma mentira bem contada?...
Mas não te iludas! Nenhuma mentira é
inocente. Todas têm um preço e muitas consequências, reais ou ilusórias.
Seja qual for a tua intenção, porém,
segue o conselho de Millôr Fernandes e “jamais diga uma mentira que não
possa provar.”
Acima de tudo, sê humilde nas tuas
mentiras, porque, para cada arrogante que pensa que engana todo mundo, existe
outro mentiroso que finge que acredita.
Queres um conselho? Não? Mas eu o darei
assim mesmo. Começa a falar a verdade! É bem mais simples.
A falsidade é um pesado fardo para ti,
pobre alma que te alimentas da infelicidade alheia! A mentira exige
dissimulação, boa memória e capacidade de criar ilusões. E tu, vulto sem cor e
luz, tu mal começaste a viver a vida... Se nem sabes dizer a verdade, por que
te imaginas sabendo iludir?
Mentir é para poucos! Uma simples
mentira exige dez outras para confirmá-la. E tu não tens esse dom, criatura
inútil! Se nem sabes repetir a verdade, como pretendes dominar a arte dos
embustes?
Queres fazer uma revolução na tua vida
inútil? Acorda as verdades adormecidas no inconsciente, que sonham com os teus
lábios, para despertar! Há muitas verdades que permanecem mudas à espera da tua
voz!
Ainda pior do que as tuas mentiras é a
ilusão em que vives, ao imaginar que eu, mesmo tolo, não percebo os teus
embustes. Finjo-me de iludido, disfarço-me com o véu do fascínio, para
alimentar o teu tolo engano. Quando perceberes, desiludida, que só tu
acreditavas nas tuas mentiras, quando a verdade toda se revelar a ti mesma,
será tarde demais para curar as feridas do teu Narciso.
Mas continua assim, embotando a verdade
nos teus disfarces, que eu te concedo o meu olhar mais piedoso, o derradeiro
sorriso que antecede o desprezo.
Do teu coração de gelo, farei meu
último drink, que repousará nos meus lábios sem lamento e sem
tristeza.
Jorge Araken Filho,
apenas um farsante do mundo virtual, alguém que veste a persona de escritor para desconstruir pós-verdades.
Post scriptum: flexiono o estrangeirismo "fake news" no singular, mantendo-me fiel ao original em inglês, onde o substantivo "news", apesar do "s" final, é singular e incontável (incountable noum), significando, portanto, "notícia", e não "notícias". Se houvesse escolhido a expressão equivalente, em língua portuguesa (evitando, assim, o estrangeirismo), flexioná-la-ia no plural e no feminino, escrevendo "notícias falsas", ao invés de "fake news". Considerando, porém que optei pelo estrangeirismo "fake news", mantenho-me fiel à flexão original, no singular, que é a única correta, no idioma de Shakespeare.
Post scriptum: flexiono o estrangeirismo "fake news" no singular, mantendo-me fiel ao original em inglês, onde o substantivo "news", apesar do "s" final, é singular e incontável (incountable noum), significando, portanto, "notícia", e não "notícias". Se houvesse escolhido a expressão equivalente, em língua portuguesa (evitando, assim, o estrangeirismo), flexioná-la-ia no plural e no feminino, escrevendo "notícias falsas", ao invés de "fake news". Considerando, porém que optei pelo estrangeirismo "fake news", mantenho-me fiel à flexão original, no singular, que é a única correta, no idioma de Shakespeare.
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