terça-feira, 30 de janeiro de 2018

"A Megera Domada", de William Shakespeare: pequeno estudo crítico (2ª edição revista)

"A Megera Domada", de William Shakespeare:  pequeno estudo crítico (2ª edição revista)

Para quem não leu “A Megera Domada” (“The Taming of the Shrew”), uma das primeiras comédias de William Shakespeare, essas são as palavras de Petruchio, um nobre falido de Verona, a Baptista Minola, pai de Katherina, no Ato II, Cena 1, quando este lhe fala do temperamento indomável da filha, com quem o jovem desejava casar-se, para receber o seu valioso dote:


“...quando dois fogos violentos se encontram, consomem logo o objeto que lhes alimenta a fúria. Embora um fogo brando se torne forte com um vento fraco, um furacão, entretanto, o apaga rapidamente. (“where two raging fires meet together, they do consume the thing that feeds their fury. Though little fire grows great with little wind, yet extreme gusts will blow out fire and all.”) (Manterei, ao longo do texto, a minha pobre tradução e o original, em inglês, para que os leitores possam conferir, na língua de Shakespeare, a sonoridade das palavras na forma em que concebidas pelo “Bardo do Avon”).

Lembro-me, ainda, das palavras que Petruchio dirigiu a Katherina e aos convidados, no Ato III, Cena 2, logo depois da cerimônia de casamento, quando ela pretende participar do banquete e ele, ávido por sexo, só deseja consumá-lo:

“Obedecei à noiva, todos vós que fostes por ela convidados. Festejai! Bebei, em orgia sem limites, pela virgindade dela! Mostrai-vos loucos e alegres, ou ide enforcar-vos! Quanto à minha boa Kate, deve seguir-me. Não, não é preciso abrir tanto os olhos, nem bater com os pés no chão, nem se admirar, nem se irritar. Serei o dono daquilo que me pertence. Ela faz parte de meus bens, meus bens móveis; ela é minha casa, meu mobiliário, meu campo, meu celeiro, meu cavalo, meu boi, meu burro, meu tudo. Aqui está ela, cuidado quem ouse tocar-lhe! Mostrarei quem sou a quem, atrevidamente, me detenha em meu caminho de Pádua. Grumio, desembainha tua espada! Estamos cercados de ladrões! Salva tua patroa, se és homem! Não tenhas medo, doce jovem; ninguém te tocará, Kate. Serei teu escudo contra um milhão de inimigos.” (“Obey the bride, you that attend on her; go to the feast, revel and domineer, carouse full measure to her maidenhead; be mad and merry, or go hang yourselves. But for my bonny Kate, she must with me. Nay, look not big, nor stamp, nor stare, nor fret; I will be master of what is mine own: she is my goods, my chattels; she is my house, my household stuff, my field, my barn, my horse, my ox, my ass, my any thing; and here she stands, touch her whoever dare; I’ll bring mine action on the proudest he that stops my way in Padua. Grumio, Draw forth thy weapon; we are beset with thieves; Rescue thy mistress, if thou be a man. Fear not, sweet wench; they shall not touch thee, Kate; I'll buckler thee against a million.”). 

Na sequência do Ato III, Cena 2, depois que saem Petruchio, Katherina e Grumio, inicia-se um diálogo entre Baptista Minola, pai da noiva, e alguns convidados:

“BAPTISTA MINOLA — Vamos, deixai partir este casal pacífico!
GREMIO — Se não tivessem partido depressa, teria morrido de tanto rir.
TRANIO — Entre todas as uniões malucas, esta não tem par.
LUCENTIO — Senhora, qual é vossa opinião sobre vossa irmã?
BIANCA — É uma louca unida a um louco.
GREMIO — Garanto-vos que Petruchio está ‘enkaterinado’.
BAPTISTA — Vizinhos e amigos, se a noiva e o noivo se encontram ausentes, não faltarão, para preenchê-los, gulodices na mesa. Lucêncio, vós ocupareis o lugar do marido e Bianca, o da irmã.”
(“BAPTISTA MINOLA. Nay, let them go, a couple of quiet ones.
GREMIO. Went they not quickly, I should die with laughing.
TRANIO. Of all mad matches, never was the like.
LUCENTIO. Mistress, what's your opinion of your sister?
BIANCA. That, being mad herself, she's madly mated.
GREMIO. I warrant him, Petruchio is ‘Kated’.
BAPTISTA MINOLA. Neighbours and friends, though bride and bridegroom wants For to supply the places at the table, you know there wants no junkets at the feast. Lucentio, you shall supply the bridegroom's place; and let Bianca take her sister's room.”).

Não vou mencionar as privações de comida a que Petruchio submeteu Katherina, nem do afastamento da sua família e dos abusos psicológicos e humilhações que perpetrou para “domá-la” como a uma égua, porque isso, na verdade, é o que acontece em muitas famílias modernas, onde maridos abusivos ainda submetem suas esposas à degradação, não para receberem o seu amor, mas para terem a sua obediência servil. É a ilusão do controle...

Ilusão, aliás, que foi enunciada por William Shakespeare no argumento sobre o sol e a lua, no Ato IV, Cena V, quando, depois de “domá-la”, Petruchio leva Kate de volta a Pádua, Cidade natal da esposa:

“PETRUCHIO — Vamos, em nome de Deus! Coloquemo-nos novamente a caminho da casa de nosso pai... Bom Deus! Como a lua brilha clara e serena!
KATHERINA — A lua! É o sol. Não há luar agora.
PETRUCHIO — Estou dizendo que é a lua que está brilhando tão claro.
KATHERINA — Eu sei que é o sol que está brilhando tão claro.
PETRUCHIO — Ah! Pelo filho de minha mãe, ou seja, eu mesmo, será a lua ou uma estrela ou o que eu resolver, antes que continue minha viagem para casa de vosso pai. Vamos! Levem nossos cavalos de volta! Sempre contradizendo e contradizendo! Não faz outra coisa senão contradizer!
HORTENSIO — Dizei o que ele diz, ou nunca sairemos daqui.
KATHERINA — Prossigamos nosso caminho, por favor, já que viemos de tão longe. Que seja a lua ou o sol, ou o que desejardes. Se quiserdes chamar uma lamparina de sol, juro que não será outra coisa para mim.
PETRUCHIO — Estou dizendo que é a lua.
KATHERINA — Reconheço que seja a lua.
PETRUCHIO — Então, estais mentindo! É o sol bendito!
KATHERINA — Então, bendito seja Deus! É o bendito sol! E não será o sol se disserdes que não seja, e a lua mudará ao sabor de vossa vontade. É, portanto, o que quiserdes que seja, assim será para Katherina.
HORTENSIO — Petruchio, segue teu caminho. Conquistaste o campo de batalha.”
(“PETRUCHIO. Come on, a God's name; once more toward our father's. Good Lord, how bright and goodly shines the moon!
KATHERINA. The moon? The sun! It is not moonlight now.
PETRUCHIO. I say it is the moon that shines so bright.
KATHERINA. I know it is the sun that shines so bright.
PETRUCHIO. Now by my mother's son, and that's myself, it shall be moon, or star, or what I list, or ere I journey to your father's house. Go on and fetch our horses back again. Evermore cross'd and cross'd; nothing but cross'd!
HORTENSIO. Say as he says, or we shall never go.
KATHERINA. Forward, I pray, since we have come so far, and be it moon, or sun, or what you please; and if you please to call it a rush-candle, henceforth I vow it shall be so for me.
PETRUCHIO. I say it is the moon.
KATHERINA. I know it is the moon.
PETRUCHIO. Nay, then you lie; it is the blessed sun.
KATHERINA. Then, God be bless'd, it is the blessed sun; but sun it is not, when you say it is not; and the moon changes even as your mind. What you will have it nam'd, even that it is, and so it shall be so for Katherine.
HORTENSIO. Petruchio, go thy ways, the field is won.”).

Será mesmo que Petruchio conquistou o campo de batalha? Ou essa é a ilusão de poder que Katherina deseja vender-lhe? Creio que ela, ao lhe ceder temporariamente o sol, para aceitar a lua de Petruchio, começou a entender o seu jogo de poder. E ele acaba persuadido de que era o sol, como dissera Kate inicialmente. Quem será que ganhou a batalha? Para mim, ela o tem nas mãos, embora o deixe fantasiar que é o contrário. Como bom macho alfa, ele deixou que Kate corresse até ele; fustigou-a com o seu insensível e brutal jogo de poder, na ilusão de lhe domar o temperamento irascível, mas não percebeu que foi ela, ao fim e ao cabo, que o laçou.

Para os que apreciam esse texto de Shakespeare, cuja tessitura narrativa é essencialmente cômica, com toques burlescos na caracterização dos personagens, algumas pitadas de fina ironia, gotas de maniqueísmo e cenas de humor ferino — quase sempre mordaz, inquietante e verdadeiramente cáustico —, trago à colação, por último, o diálogo do Ato V, Cena II, encenado depois que a “megera” teria sido, enfim, “domada” por Petruchio, que ganhara a aposta com os amigos em torno da esposa mais obediente:

“PETRUCHIO — Katherina, ordeno-te de dizer a estas mulheres cabeçudas quais são os deveres a que estão obrigadas em relação a seus senhores e maridos.
VIÚVA — Vamos, vamos, estais caçoando. Não queremos lição.
PETRUCHIO — Fala, estou mandando, e começa primeiro por ela.
VIÚVA — Não o fará.
PETRUCHIO — Digo que o fará! Começa primeiro por ela.
KATHERINA — Que vergonha! Que vergonha! Desarma essa fronte ameaçadora e feroz e não lance esses olhares desdenhosos, como se quisesses atravessar teu senhor, teu rei e teu governante. Isso empana tua formosura, como as geadas cortam as campinas; destrói tua reputação, como os furacões agitam os lindos botões e não é prudente nem amável. Uma mulher irritada é como uma fonte agitada, turva, desagradável e sem encanto. E enquanto assim permanecer, ninguém haverá, por mais sedento ou alterado que esteja, que se digne acercar dela seus lábios ou beber uma só gota. Teu marido é teu senhor, tua vida, teu guardião, tua cabeça, teu soberano; é quem cuida de ti, quem se ocupa de teu bem-estar. É ele quem submete seu corpo aos trabalhos rudes, tanto na terra como no mar. De noite, vela no meio da tempestade; de dia, no meio do frio, enquanto tu dormes calidamente em casa, segura e salva. Só implora de ti o tributo do amor, da doce e fiel obediência: paga bem pequena para tão grande dívida. A mulher tem as mesmas obrigações em relação ao marido do que um súdito em relação ao príncipe. E mostrando-se indomável, mal-humorada, intratável, desaforada e desobediente às suas legítimas ordens, não passa de urna rebelde, uma vil litigante, culpada do delito de traição para com seu senhor bem-amado. Causa-me vergonha ver as mulheres declararem, ingênuas, a guerra, quando deveriam implorar a paz; pretenderem o mando, a supremacia e o domínio estando destinadas a servir, amar e obedecer. Por que nossos corpos são tão delicados, frágeis e tenros, impróprios para as fadigas e agitações do mundo, a não ser porque a qualidade gentil de nosso espírito, de nossos corações, deve achar-se em harmonia com nosso exterior? Vamos, vamos, vermes impotentes e indóceis! Eu também tive um gênio tão difícil quanto os vossos, um coração tão altaneiro e, talvez, maiores motivos para opor uma palavra a outra palavra e mau humor por mau humor. Mas, agora compreendo que nossas lanças não passam de frágeis caniços; nossa força, fraqueza, uma enorme fraqueza que, aparentando que somos os mais, provamos que somos os menos. Não vos mostreis, pois, orgulhosas, que de nada serviria e ponde vossas mãos aos pés de vossos esposos em sinal de obediência. Se o meu mandar, minha mão está pronta, se isso causar-lhe prazer.
PETRUCHIO — Bravo! Isto é o que se chama uma dama! Vem aqui e beija-me, Kate!”
(“PETRUCHIO. Katherine, I charge thee, tell these headstrong women what duty they do owe their lords and husbands.
WIDOW. Come, come, you're mocking; we will have no telling.
PETRUCHIO. Come on, I say; and first begin with her.
WIDOW. She shall not.
PETRUCHIO. I say she shall. And first begin with her.
KATHERINA. Fie, fie! Unknit that threatening unkind brow, and dart not scornful glances from those eyes to wound thy lord, thy king, thy governor. It blots thy beauty as frosts do bite the meads, confounds thy fame as whirlwinds shake fair buds, and in no sense is meet or amiable. A woman mov'd is like a fountain troubled-Muddy, ill-seeming, thick, bereft of beauty; and while it is so, none so dry or thirsty will deign to sip or touch one drop of it. Thy husband is thy lord, thy life, thy keeper, thy head, thy sovereign; one that cares for thee, and for thy maintenance commits his body to painful labour both by sea and land, to watch the night in storms, the day in cold, whilst thou liest warm at home, secure and safe;
And craves no other tribute at thy hands but love, fair looks, and true obedience too little payment for so great a debt. Such duty as the subject owes the prince, even such a woman oweth to her husband; and when she is froward, peevish, sullen, sour,  and not obedient to his honest will, what is she but a foul contending rebel and graceless traitor to her loving lord? I am asham'd that women are so simple to offer war where they should kneel for peace; or seek for rule, supremacy, and sway, When they are bound to serve, love, and obey. Why are our bodies soft and weak and smooth, unapt to toil and trouble in the world, but that our soft conditions and our hearts should well agree with our external parts? Come, come, you forward and unable worms! My mind hath been as big as one of yours, my heart as great, my reason haply more, to bandy word for word and frown for frown; but now I see our lances are but straws, our strength as weak, our weakness past compare, that seeming to be most which we indeed least are. Then vail your stomachs, for it is no boot, and place your hands below your husband's foot; in token of which duty, if he please, my hand is ready, may it do him ease.
PETRUCHIO. Why, there's a wench! Come on, and kiss me, Kate.”).

Todo esse machismo o incomoda, deixa-o desconfortável? Que bom! Esse foi o objetivo de Shakespeare: irritar a mansidão das suas certezas, para fazer surgir o seu verdadeiro eu, o troglodita que se esconde sob o manto da negação religiosa ou da moralidade condescendente. Achou sexista? Jamais!!! Você apenas não leu a Peça ou, se a leu, não compreendeu a ironia de Skakespeare e seu libelo contra os valores da sociedade elisabetana, essencialmente aferrada ao puritanismo burguês e ao catolicismo daquele tempo, que via a mulher como apêndice do homem, apenas uma costela qualquer no peito varonil.

Mas será que muita coisa mudou de Petruchio para cá? Ou você é tão sexista quanto ele, ao defender, com a Bíblia nas mãos, a sua moral sexual pretensamente civilizada, essa mesma que lhe foi projetada desde a infância, centrada na família mononuclear burguesa, especialmente castradora dos comportamentos desviantes, sobretudo os libertários?

A rebeldia de Katherina contra o mundo era o seu repto de liberdade, e não uma guerra contra Petruchio!

Só lamento que tantos assistam ao “Big Brother”, mas tão poucos tenham lido “A Megera Domada”, uma das maiores comédias que já se escreveu, o clássico dos clássicos, a eterna guerra dos sexos, o conflito entre uma mulher independente — eu diria libertária — e um homem que só desejava domá-la, por um bom dote, mas, nesse processo, encontra o amor.

Katherina parece a voz do feminismo presciente, a exposição nua e crua do universo da mulher submissa, obediente e servil, uma realidade infelizmente ainda não sepultada, por mais que nos consideremos civilizados. Prova disso é que ainda precisamos de uma Lei Maria da Penha em pleno Século XXI! E alguns hipócritas revoltam-se com Shakespeare... Ele não é o algoz; mas, sim, quem denuncia o carrasco.

Creio que essa Kate domada, a “megera” que encontrou o seu amo, na verdade, era tudo que Shakespeare, despertando, através da ironia, a nossa repulsa ou até capturando a nossa indulgência com a personagem, desejava mostrar, uma mulher que perdeu o seu encanto e se tornou tediosa e sem sal, ao se dobrar diante de Petruchio. Esse gosto amargo de indignação é o sabor que fica depois que desce o pano. Ninguém deseja ser a Kate domada por Petruchio, e isso me parece promissor... Mas não me animo tanto assim: ainda existem muitos Petruchios nesse mundo!

Há algo perigosamente atraente, infinitamente humano nas mulheres de fases, essas que caminham na corda bamba, complicadas e imperfeitas, mas intensas e verdadeiras em seus afetos.

Quer um conselho? Se ela lhe parecer certinha demais, abra os olhos: é ilusão!

Quando a resignação nos aprisiona em suas garras, no instante em que tudo parece perdido, quando os caminhos chegam ao abismo insondável da desesperança, surge uma pessoa especial, alma de luz e sentimento, alguém que se veste de rubro no mar de neve do nosso coração.
                                                                   
É aquele ser humano único, quase divino, que nos deixa sem fala, um vulto na multidão dos insensatos, que percebemos com cores distintas, traços que despertam os feromônios da nossa sexualidade sublimada.

É um ser de luz, humano e contingente, como todos nós, mas que, em meio às suas próprias angústias, recolhe a nossa alma triste e desiludida; alguém que não receia os nossos temores, pessoa destinada a nos tirar do prumo, a abolir as nossas certezas, desfazer as nossas crenças; alguém que sonha resgatar o nosso insensato coração.

Pessoas assim, que capturam o nosso olhar perdido, semeiam a melhor porção do que somos, fazendo-nos ir além dos traços esmaecidos que escrevemos no destino; são seres que iluminam as nossas sombras, revelando o que somos, enfim, resgatando em nós mesmos o restinho de humanidade que percebemos no olhar sobre o outro, onde nos vemos refletidos.

Esse olhar lançado sobre a alteridade, de dentro para fora, muitas vezes, é o único caminho para nos reconectarmos com o nosso self, vendo os conteúdos que jazem insepultos abaixo da repressão do ego. A perspectiva do olhar é outra, quando passamos a ver, nas pessoas que amamos ou desprezamos, o reflexo do que somos e os desejos que sublimamos.

São seres inteiros e libertários, caminhantes sem paradigmas, que tocam as nossas vidas com a suavidade das tormentas, sepultando a nossa autopiedade, quando já desistimos de tudo.

Seres que desafiam os seus e os nossos limites, contrariando as ilusões que alimentamos sobre nós próprios; pessoas que desfazem a teia da solidão em que nos prendemos, quando simplesmente pensamos nelas.

Seres que mostram outros caminhos, revelam desvios, que até nos irritam, não porque desejem espezinhar as nossas dores, mas porque tocam os pontos sensíveis, ainda doloridos, que precisamos, mas não temos coragem de cicatrizar, retirando a sujeira que encobre a ferida.

Apesar do negrume das suas almas inquietas, esses seres de luz e calor, estrelas no firmamento das nossas renúncias, iluminam as sombras que escondemos no lado obscuro da alma, revelando o ser humano que sobrevive, oculto, sob as camadas de tinta esmaecida que o tempo se encarregou de sobrepor.

A ideia que sempre me vem à mente — depois de ler e reler tantas vezes “A Megera Domada” — é a de que, ao encontrar uma Kate no mundo real, ao contrário de Petruchio, eu deveria beijá-la com todas as forças, na esperança de que ela nunca se deixasse domar. Domada e servil, ela não me desafiaria a ser inteiro, a me experimentar como totalidade; não me ajudaria nesse processo de individuação, o esforço que faço para unir as diferentes "personas" e facetas da minha personalidade, notadamente as antagônicas, para me reconciliar, equilibrando as alegrias e os sofrimentos da vida, a tristeza e a felicidade, na eterna busca por harmonia. Adestrada na adulação, ele me aceitaria como sendo a parte ínfima de mim mesmo que eu revelo ao mundo. Mulheres subservientes não cutucam feridas narcísicas, e é disso que eu preciso para deixar a zona de conforto da minha ilha e navegar os mares bravios da incerteza e do imponderável.

É uma pena que poucos conheçam a verdadeira ironia e, ainda menos, o “Bardo do Avon”, nesses tempos de “Big Brother” e redes sociais!

Alguém lembrou Søren Kierkegaard e seu “conceito de ironia”? Desse nem vou falar, para não assustar os inocentes.

Viva as mulheres indomáveis!

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.



“O muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”

“O muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”

Essa clivagem maniqueísta que separa os humanos em guetos e standards ideológicos heteroexcludentes, facilmente perceptíveis e identificáveis, como os rótulos nas mercadorias de um supermercado, esse reducionismo simplista e estanque que segrega os humanos em direita, centro e esquerda, em especial na política brasileira, é apenas uma questão de muro... é isso mesmo, uma questão de saber de que lado do muro os hipócritas repousam em berço esplêndido.

À direita desse muro, vemos os pobres iludidos com a autoimagem de lobos (mais conhecidos como “pobres de direita”) e os oligarcas, esses, sim, os verdadeiros lobos da matilha dos neoliberais, uma trupe carniceira que devora pobres (iludidos ou não) nos seus lautos banquetes...

O neoliberalismo, por sua desigualdade intrínseca e indissociável, tornou-se a ideologia da globalização, tecendo os fios invisíveis que conectam liberdade de iniciativa e não intervenção do Estado na economia (premissa maior) com inteligência e capacidade pessoal (premissa menor), formando, como resultado (conclusão), a bem-aventurança e o acesso à riqueza para os mais aptos e mais fortes. É uma espécie de seleção natural globalizada em que só os privilegiados sobrevivem. “Welcome to the jungle”! — Como disse a banda Guns N’ Roses em seu álbum de estreia (“Appetite for Destruction”). Tratam esse raciocínio como um silogismo perfeito, e não como falácia ou sofisma, esquecendo-se de que são falsas as proposições declarativas que o compõem: nem todos usufruem da livre iniciativa, assim como a não intervenção do Estado (ou Estado mínimo), ao deixar sem tutela os excluídos, aprofunda a desigualdade. Coloque o entregador de refrigerantes e a Coca-Cola numa disputa qualquer, sem a mediação proativa do Estado, e veja se são iguais.

Só excluindo, como párias, os desfavorecidos de berço e, por outros motivos, os dissonantes, loucos de todo gênero e os personagens limítrofes — aos quais, sistemicamente, se nega acesso à igualdade prevista na Constituição, uma utopia nessa sociedade competitiva, multiescalonada e cheia de castas em que vivemos —, só os reduzindo, enfim, à condição de sub-humanos, que esse sistema oligárquico mantém os seus privilégios. Se a igualdade não se estabelece na partida, lá na infância — muitos sequer possuem família ou tiveram acesso à alfabetização! —, não haverá de ser na chegada à idade adulta que ela surgirá como realidade. Sobram apenas as calçadas para vender balas, quando faltam creches e bancos de escola...

Fale de meritocracia e oportunidades iguais em seu discurso hipócrita, mas me diga como você se sentiria, lá no fundo do coração, se tivesse que fazer o Vestibular, ENEN ou SISU, depois de ter passado um terço do ano letivo sem aulas por falta de professores ou porque, lamentavelmente e não por culpa sua, a Escola pública que você frequenta passou um terço do ano letivo com as portas fechadas por ordem dos traficantes da “Comunidade” (eufemismo hipócrita para as favelas)? Como competir com os alunos das Escolas particulares? Mas alguns conseguem vencer, apesar de tudo! — Você poderá objetar. Essas são pessoas excepcionalmente dotadas de inteligência e resiliência às dificuldades e ao preconceito social. Elas vencem porque são muito melhores do que os abastados e, com força sobre-humana, compensam a desvantagem inicial. Nem a alimentação é igual! Tire o seu filho da escola particular do seu bairro de classe média e o transfira para uma Escola pública na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e você saberá do que estou falando. Melhor ainda, mude-se para lá, de mala e cuia... Depois, suba num caixote, na rua principal do Jacarezinho, e faça um discurso hipócrita sobre meritocracia e oportunidades iguais!... Eu já andei por lá muitas vezes, ao contrário de você que fica atrás do computador com o cu na mão! Quer ir lá? Eu servirei de guia para a sua experiência “heroica” fora da sua redoma pequeno-burguesa, sentindo o cheiro da miséria. Quando estivermos lá, não se esqueça de vociferar contra as políticas de ação afirmativa, também chamadas de compensatórias, incluindo os (paliativos!) sistemas de cotas “raciais” (nas Universidades e Concursos públicos), de gênero (nas candidaturas em Partidos Políticos) e socioeconômicas (Isenções diversas, inclusive de taxas e tributos, para pessoas de baixa renda). Enquanto milhares de crianças passam a infância nos lixões, catando as sobras da classe média e dos ricos, você vem com essa hipocrisia de que todos têm as mesmas oportunidades.  — Eu venci porque me esforcei! — Você costuma gritar em modo de defesa, quando percebe que sempre olhou apenas o seu umbigo. Nesses instantes de epifania — raros! —, a sua consciência social pesa. Diga-me que esforço ainda maior — para vencer na vida como você — poderia fazer uma criança que passa o dia num sinal de trânsito, vendendo balas ou catando lixo para comer. Ele não tem culpa por ter seis ou sete irmãos e, menos ainda, por não ter um pai conhecido. Que culpa tem ele por ter uma mãe analfabeta e indigente, não raro viciada em crack, que não pode sacrificar os de mais tenra idade, — os que ainda não sabem pedir esmola —, impedindo os mais velhos — os de sete anos ou mais — de ajudar no sustento da família?

Você já parou para pensar em quantas pessoas no Brasil estudam em escolas de difícil acesso, perdidas nos rios amazônicos ou em zonas de guerra urbana? Para falar de igualdade, você precisa saber como é a vida fora da sua redoma de classe “A” ou “B”. Só na Rocinha, no ano passado, milhares de alunos perderam o Vestibular da UERJ. Sabe por quê? É claro que não! Duas facções do crime organizado estavam em guerra e ninguém podia sair de casa... (Leia a notícia no Jornal do Brasil, no link que indico, e se informe, antes de vomitar hipocrisia igualitária nas redes sociais: http://www.jb.com.br/comunidade-em-pauta/noticias/2017/09/21/meritocracia-jovens-da-rocinha-perdem-vestibular-e-estao-sem-aula-devido-a-guerra/).

Essa gente sem rosto e sem nome, que não tem cartão de crédito ou conta no banco, foi ensinada a ser dócil e subserviente, para receber um prato de comida como recompensa. São como animais amestrados em um circo de horrores. Uns são alienados pela falta de instrução básica (os analfabetos funcionais, que nascem, crescem e morrem na senzala, comendo os farelos dos banquetes das oligarquias); outros são cooptados pela cobiça e, embevecidos com alguns anéis lançados pelos opressores, acabam seduzidos pela ilusão de que podem ascender à classe dos lobos, alimentando-se — eles também! —, de ovelhas. Esses últimos são os mais imbecilizados do espectro político; eles servem à propaganda enganosa da bem-aventurança como fruto do trabalho. Continue ralando como um condenado e, um dia, você ficará rico! Viva a livre iniciativa, o jeitinho “democrático” para os pobres ascenderem de casta! Você pode! Continue vendendo canetas na esquina e, com esforço pessoal, você se tornará o Sílvio Santos. Eu pergunto: quantos Sílvio Santos existem? E garotos que morreram vendendo balas e canetas nas ruas, como párias dessa sociedade hipócrita e falsamente acolhedora? Quantos você já viu por aí? Compreendeu, agora, ou terei que desenhar?

Nem a caridade fingida dos ricos, que serve para salvar os próprios anéis — um altruísmo hipócrita que surge para exibir falsas virtudes nas redes sociais —, pode incluir o mendigo da esquina na sociedade dos desiguais.

O filho do abastado tem família, recebe (ou deveria receber) carinho e educação, adquire conhecimento nas melhores escolas (às quais vai de carro), aprende, desde a infância, a ser competitivo, come três refeições por dia (sem contar os lanches no McDonald’s), possui plano de saúde, roupa de frio, viaja nas férias e não precisa vender balas no sinal. Não preciso lembrar que ele tem pais com educação superior e muitas posses, incluindo uma boa herança e um dote para lhe garantir o casamento, — este, sim, igualitário! — com a cria de uma “boa” família, de preferência mais rica do que a dele.

Aos pobres restam as cadeias públicas, penitenciárias e reformatórios, onde eles são a maioria quase absoluta, tirando uns poucos criminosos do colarinho banco, que, malgrado o dano infinitamente maior que causam à sociedade, acabam recebendo tratamento “vip” do Diretor da prisão. Os ricos, mesmo quando são flagrados com a coisa pública em seus “bunkers”, acabam com tornozeleiras eletrônicas, para os proteger dos pobres “malcheirosos” que povoam esses currais de degeneração humana. De vez em quando, eles colocam algemas e correntes em algum abastado, que lançam aos leões, como faziam com os escravos na velha Roma, com a sórdida e sub-reptícia intenção de iludir a plateia com cenas explícitas de caça às bruxas, que nunca são verdadeiramente queimadas. Tudo encenação, como fazem, ainda hoje, na Cidade de Salem, no Estado americano de Massachusetts. Os turistas ficam fascinados com o espetáculo de selvageria disfarçada de história, na verdade uma catarse para gratificar os desejos e pulsões obscuros de quem assiste extasiado. “Queimem essa bruxa”! — Dizem os mais coléricos.

Os instrumentos de autocomposição privada e mediação, invenções do neoliberalismo conservador, funcionam como os anéis que são entregues com a intenção de preservar incólumes os dedos gordos do capitalista. Políticas proativas — ao equilibrarem as disputas entre pobres e ricos, trabalhadores e patrões, agentes periféricos e centrais — ferem o espírito maligno da globalização neoliberal, que é e sempre será visceralmente conservadora do status quo. Tais medidas, buscando reduzir o fosso da desigualdade social, colocam em banquinhos com alturas diferentes e, na medida dessa desigualdade, os que têm estaturas diferentes, para que todos possam enxergar em planos iguais. E isso é inaceitável para quem se encastelou no ápice da pirâmide social, uma zona de conforto sistêmica, de matriz conservadora, neoliberal e globalizante, que se forma sobre os ombros flexíveis dos excluídos. Ao menos na aparência, seria “igualitário” dar bancos iguais a um anão primordial e a um gigante, mas seria justo?... Dizem os neoliberais da globalização que a igualdade não pode ser absoluta, variando o quinhão de cada um, nessa “Aldeia Global”, segundo os seus próprios méritos... E quem tem mais mérito? Quem se alimentou bem desde a infância, fez cursos extracurriculares, estudou nos melhores colégios e — pertencendo, embora, à classe aristocrática dos favorecidos pela fortuna e podendo, por isso mesmo, custear a Universidade — acaba abocanhando de graça, com notas maiores nos exames admissionais, a vaga do excluído nas Instituições Públicas de Ensino Superior. Por trágica ironia do destino, o pobre acaba numa Universidade particular, endividando-se através do crédito educativo...

Essa cultura liberal conservadora — de viés nitidamente oligárquico — tem como objetivo declarado “preservar a igualdade”, fazendo crescer o bolo, com o mínimo de Estado na economia, antes de partilha-lo, mas esconde, de forma sub-reptícia, a intenção de impedir o acesso das massas ao recheio de morango com chocolate da Kopenhagen. Discursam sobre o crescimento prévio do bolo, fazendo-nos acreditar que essa é única forma de assegurar uma fatia para todos. Primeiro fazemos crescer o bolo, para depois dividi-lo! Dizem essas elites, ainda, que todos serão aquinhoados segundo as suas capacidades individuais, o que não passa de engodo nessa selva capitalista. O bolo, na verdade, acaba sendo partilhado entre poucos, e o recheio só aparece nas mesas da elite oligárquica. O desejo é atomizar as massas, para que cada um lute pela sua fatia, combatendo o próximo sem pensar no coletivo. Pense no garoto do sinal, que não conheceu o pai e teve que trabalhar desde os sete anos de idade. Os mais cínicos responderão que fulano venceu na vida e foi engraxate, que beltrano fez Doutorado, apesar das circunstâncias adversas. Essas exceções, sendo raras e notáveis, dão visibilidade aos casos não excetuados. Mas é assim que funciona a globalização: atomiza os fracos e periféricos, diluindo as massas que agem coletivamente, para dividi-las e manipulá-las, convencendo-as de que são fortes e que, pela seleção natural, elas mereceram os farelos do bolo, que devem agradecer com devoção servil. Nessa hora, os cordeiros narcisistas começam a caçar os seus irmãos cordeiros, imaginando que se tornaram predadores só por comerem na senzala dos lobos. Ledo engano!

Socializar a senzala e privatizar a Casa Grande, isso é globalização! Nessa “Aldeia Global”, reproduz-se — no microcosmo das inter-relações entre pessoas pobres e ricas, entre excluídos e incluídos — o mesmo modelo macrocósmico das relações entre as Nações: os fluxos de capitais sempre acontecem da periferia para o centro, dos periféricos (pobres) para os centrais (ricos), realimentando-se — através do consumo de bens produzidos, não por acaso, nos países centrais — o círculo vicioso e perverso da pobreza e da exclusão social. Os ricos produzem bens de consumo, frequentemente desconectados das reais necessidades do consumidor (iPhone 10), mas vendem a ideia, sem dúvida sedutora para quem está na base da pirâmide, de que a sua aquisição, do dia para a noite, tornou-se imprescindível à ascensão social. Da propaganda insidiosa, potencializada pelas redes sociais, nasce o desejo do pobre de conquistá-los, mesmo que isso signifique, ao fim e ao cabo, o empobrecimento ainda maior de quem já vive na periferia do mundo capitalista.


No fim das contas, só os que vivem no centro da “Aldeia Global” se beneficiam da “livre” circulação das riquezas. As grandes Corporações, verdadeiras fábricas de ilusões, têm como seu principal produto os próprios consumidores. É exatamente isso: muito mais do que novos gadgets, elas “fabricam” consumidores permanentemente angustiados e insatisfeitos com o que já possuem. E tanto mais ávidos eles serão por novos produtos, quanto mais lançamentos forem feitos. É um círculo vicioso de novos lançamentos que excitam cada vez menos os centros de prazer, trazendo recompensas progressivamente menores a cada novo produto lançado.

E o pior é que os habitantes da periferia do mundo globalizado, navegando na ilusão de que pertencem à casta dos centrais, ainda defendem esse modelo excludente, e o fazem, como regra, destilando ódio nas redes sociais. Idiota é quem não ostenta os seus mimos consumistas no mundo virtual, fazendo-se venturoso por se imaginar incluído na festa da globalização! O pior cordeiro é o que mimetiza e bajula o lobo e seu comportamento predatório, para caçar quem está em posição inferior na cadeia alimentar. Muitos escravos, para merecerem os mimos da Casa Grande, delatavam e açoitavam, com grande prazer e gozo narcísico, os companheiros de senzala... Para muitos escravos, era só lhes dar o chicote, uma recompensa e um lombo carnudo, e eles já se imaginavam senhores... Alguns, depois de alforriados, chegavam à cruel desfatez de ter escravos... O Homo sapiens sapiens — de todas as classes sociais, de todas as cores, de todos os credos religiosos, de todos os lugares e épocas —  nunca valeu o que o gato enterra! Essa é a realidade que o nosso ego, com as defesas erguidas e o dedo em riste, prefere negar em sua zona de conforto.

A verdade é que o dinheiro da Casa Grande nunca dorme; só os miseráveis da senzala é que caem nos braços de Morfeu, acalantados pela cantiga de ninar da ascensão social, que lhes cantam, para embalar o sono, as sinhazinhas da Casa Grande. O canto — repetitivo e de poucas notas — é uma narrativa épica e fantasiosa sobre pobres que se tornam ricos pelo trabalho árduo, uma saga de heróis da periferia — engraxates, vendedores de bala nos sinais — que arrostam tempestades e vencem na vida, passando de explorados a exploradores, de instrumentos da riqueza alheia a barões do capital. Os trabalhadores pobres, hipnotizados pelo sentimento religioso, acreditam — porque desejam e precisam acreditar! — que, nalgum ponto das suas existências descartáveis e miseráveis, a exploração do capital sobre eles será recompensada com uma vaga cativa no paraíso. A salvação mística — uma forma de alienação da realidade, explorada, consentida e estimulada pelo Senhor da Casa Grande — é o meio mais fácil e eficaz para convencer o explorado a aceitar, candidamente, a exploração do seu trabalho, a mais-valia do seu suor, em troca de um pote de ouro no arco-íris dos tolos: a salvação depois da morte e, com ela, e para que a mereça, a estoica resignação diante da vida de vassalagem que lhe é exigida como condição para se salvar. Os maus irão para o inferno, dizem os exploradores; você irá para o paraíso, se for uma boa, inocente e comportada ovelha. 

Enquanto a senzala se diverte (e se aliena!) com as migalhas emboloradas que sobram do banquete da Casa Grande, os políticos da periferia do mundo globalizado, invariavelmente servis aos interesses estrangeiros, quando lhes convém ao bolso, vendem o discurso hipócrita do empoderamento das classes dominadas e excluídas através da democracia, uma ilusão que dá ao pobre a sensação de que as cordinhas do destino estão em suas mãos, quando, na verdade, ele é apenas a marionete. Na ditadura, o carrasco lhe é imposto pela força bruta; na democracia, ele pode escolher quem irá acoitá-lo. Enquanto existirem humanos, sempre haverá exploração! Um homem suado e maltrapilho sempre haverá de carregar o piano, para que o concertista, trajado de gala, receba os aplausos. Ninguém entrega flores para o carregador do piano... 

A tal ponto chegam os neoliberais da Casa Grande, na defesa dos seus privilégios, que não se pejam de defender um retrocesso autoritário, quando lhes convém ao bolso. Como explicar, então, a defesa do autoritarismo de crise entre os neoliberais? É simples: quando ameaçados de perder os anéis, eles sonham com uma "ditadurazinha suave e provisória”, que lhes assegure os seus privilégios, domando a utopia revolucionária dos indigentes da senzala. O problema é que não existem “ditadurazinhas suaves e provisórias”! Que o diga Carlos Lacerda, um dos líderes civis do Golpe de 1964, um lambe-botas da Ditadura que teve os direitos políticos cassados em dezembro de 1968, logo depois do famigerado AI-5. Ironias da história neoliberal, nessa pátria-mãe tão distraída. Agarrados aos seus privilégios, eles venderam a alma ao "diabo", acreditando na sacralidade dos generais e seus mentores do “Tio Sam”, a quem enxergavam como Vestais do Templo de Minerva... Quem muito lambe as botas da oligarquia uma hora é pisado...

E eles — os senhores dos anéis — ainda nos fazem acreditar que a globalização, na perspectiva dos ricos e segundo o modelo excludente e concentrador em que nos foi imposta, é democrática e reduz a miséria. É difícil desconstruir a autoimagem de lobo, depois que o cordeiro se vê caminhando como serviçal da matilha. Para ele, é preferível servir os lobos, e catar as migalhas do banquete, a se unir numa massa de cordeiros, e construir novos paradigmas para essa luta entre espécies. Para evitar a união dos excluídos, os barões dividem as massas, fazendo com que alguns habitantes da senzala do mundo globalizado, seduzidos pela cobiça, iludam-se com a possibilidade de habitar a Casa Grande, vivendo longe dos seus companheiros de chibata e os tratando como se fossem estranhos ou, ainda pior, escravos. — Essa é a versão “pós-verdadeira” da fábula de Chapeuzinho Vermelho: o lobo mau se vestiu de vovozinha para seduzir ovelhas gulosas... Essas ovelhas iludidas ou, melhor dizendo, seduzidas pelo ouro dos tolos, cobiçam refestelar-se com os oligarcas, embora jamais alcancem esses status.

— Você não passa de um esquerdopata ressentido com a pobreza! Mas você não é miserável por minha culpa. O que o excluiu das riquezas, que eu conquistei com o meu suor, foi a sua própria incapacidade de vencer na vida, como eu venci.

— É a sua desculpa autoindulgente, o jeitinho hipócrita que você encontrou para justificar a sua própria riqueza em detrimento dos pobres e, de resto, a desigualdade intrínseca ao capitalismo.

Para expor o sangue da periferia do mundo globalizado, cito, por todos, o grande Eduardo Galeano e as “Veias abertas da América Latina”:

“No marco (...) de um capitalismo mundial integrado em torno das grandes corporações norte-americanas, a industrialização da América Latina se identifica cada vez menos com o progresso e com a libertação nacional. O talismã foi despojado de poderes nas decisivas derrotas do século passado, quando os portos triunfaram sobre os países e a liberdade de comércio arrasou a indústria nacional recém-nascida. O século XX não engendrou uma burguesia industrial forte e criadora que fosse capaz de retomar a tarefa e levá-la até as últimas consequências. Todas as tentativas ficaram na metade do caminho. Aconteceu com a burguesia industrial da América Latina o mesmo que acontece com os anões: chegou à decrepitude sem ter crescido. Nossos burgueses, hoje em dia, são comissionistas ou funcionários das corporações estrangeiras todo-poderosas. Em honra da verdade, nunca acumularam méritos para ter melhor destino.” (GALEANO, Eduardo. Veias abertas da América Latina. Tradução de Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM Editores. p. 198).

Os nossos políticos, como os vendilhões do Templo de Jerusalém, comercializam a alma por alguns dólares, fazendo-se de mercadores das nossas riquezas, que se transferem em transações espúrias e privatizações na calada da noite.

Servis aos interesses dos países centrais, que lhes pagam um dízimo em contas secretas no exterior, eles se tornam capatazes das grandes corporações estrangeiras, chicoteando os indesejáveis da periferia do mundo globalizado. O açoite moderno é a desconstrução das leis que protegem o trabalhador e, nos últimos dias, a permissividade criminosa com o trabalho em condições análogas à escravidão.

A quem interessa esse tipo de política econômica? Não precisa ser esperto para perceber que o rio da periferia corre para o mar dos países centrais... Remessas de lucros progressivamente maiores, para honra e glória dos poderosos de Wall Street...  A verdade é que o dinheiro nunca dorme; só os alienados...

Mas assim são os políticos da periferia do mundo globalizado: invariavelmente servis aos interesses estrangeiros, quando lhes convém ao bolso.

Disse Nietzsche, com a sua língua ferina, que

"Um político divide os homens em duas espécies: em primeiro lugar os instrumentos, em seguida os inimigos. Assim, para ele, só há propriamente uma única espécie de homens: os inimigos." (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre política. Organização, tradução, apresentação e notas por Noéli Correia de Mello Sobrinho. — Rio de janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Edições Loyola, 2007. V. II. Aforismo n. 398. p. 53).

Depois de ler e reler essa frase, eu percebi que o texto — escrito, embora, no século XIX — reflete um sentimento mais profundo e permanente, quase um arquétipo humano, algo que costumo repetir há muitos anos, mesmo sem eco na consciência dos amigos, sobretudo dos políticos, que não percebem (ou fingem não perceber) as pulsões primitivas — ligadas à projeção narcísica do próprio ego — que são geradas pelo desejo obsessivo do poder.

O que se quer, sob o disfarce de nobreza dessa participação política, vendida como autodoação puritana em favor do bem comum — na verdade uma hipocrisia — é dominar a matilha, obter o reconhecimento de todos para a superioridade de quem o exerce, não raro em benefício próprio. Em outras palavras, tudo não passa de uma guerra, mais ou menos suja, pelo domínio e controle das ovelhas. Os lobos, vencedores ou vencidos, são farinhas do mesmo moinho. Dê-lhes o poder de tosquiar as ovelhas, e eles o farão de bom grado, partilhando com os amigos/aliados os frutos da caçada e alijando os inimigos/adversários no inferno de Dante. Aos que perdem as eleições — que passam a ser tratados como inimigos até que seja conveniente uma aliança estratégica — só resta a fome e o banimento da cena política, com a consequente inveja e cobiça do poder concedido ao lobo alfa.

Mas nada é definitivo nos esgotos da cidadela! Os ratos se transformam em gatos na calada da noite... E vice-versa... Nada que um bunker com 51 milhões não resolva! As execrações na Imprensa de aluguel — guinchos distantes, quase inaudíveis! — partem dos ratos descontentes, que não receberam a sua cota de queijo nessa festa podre. Não se iluda! O queijo metafórico somos nós, se você ainda não percebeu. É só repartir a carniça, que os ratos começam a siesta...

O coronelismo, o mandonismo e o clientelismo das oligarquias da Primeira República continuam nos assombrando... E não pense que no Brasil Imperial era diferente ou que, depois dos Golpes de 1930 e 1964, a política se tornou asséptica como se vende por aí... De fato, nada mudou até hoje, e seria ilusão — muito mais que utopia — imaginar que, algum dia, isso haverá de mudar! Trocar favores é atávico numa política inevitavelmente feita por humanos. Mudaram os atores das nossas elites oligárquicas (antes agrárias, depois industriais e financeiras e, agora, genuinamente mafiosas), mas o enredo da Ópera bufa permanece o mesmo: o coronelismo oligárquico! Sobretudo no Brasil, as oligarquias do espírito se aliaram às oligarquias políticas na busca pelo capital, e o meio de difusão dessas ideias hegemônicas é a internet, em especial as redes sociais. Os excluídos são apenas ovelhas a serem manipuladas com pós-verdades, para que caminhem altivas em direção à tosquia.

Na América hispânica e no sul do Brasil, o fenômeno se multiplicou com outro nome: o caudilhismo. Na verdade, o Coronel e o Caudilho integravam — e ainda integram —, as elites regionais, fazendo das suas riquezas pessoais um instrumento para controlar o jogo econômico-oligárquico e, por consequência, o poder político. Dos seus feudos locais, eles multiplicam alianças e coalizões clientelísticas que, pela troca de favores em escalas crescentes de influência, chegam ao poder central. A forma de dissuasão é bem simples e eficaz: eles seduzem o eleitor com benefícios pessoais nada republicanos, recebendo, em troca, a fidelidade do voto para os seus apadrinhados. Manipulam o povo de forma subliminar, usando como arma a ganância de cada um na hora de escolher o candidato. Uns querem dentaduras, sementes para o plantio, outros cargos e, a maior parte, uma vantagem qualquer do Estado, mesmo que isso custe o bem comum. Nessa lista de benesses privadas — usadas como moedas de troca —, podemos encontrar desde demandas corporativistas a sinecuras, de benefícios fiscais a interesses egoístas em favor de parentes e amigos. O Coronel e o Caudilho representam, em última medida, a projeção da parcela de poder que o próprio eleitor deseja ostentar, mas não é capaz de fazê-lo pessoalmente, senão através do seu tiranete disfarçado de sinhozinho do bem. O pior é que esses Caudilhos e Coronéis, usando a ingenuidade dos seus rebanhos de eleitores, ainda os convencem — talvez por sugestão hipnótica — de que a captura do Estado, para realizar os interesses privados da elite dominante, é uma forma republicana de se fermentar o bolo a ser distribuído depois com o povo. Esses sempre dormem à direita do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear.

Em cima desse muro, encontramos a pior espécie de gente, os hipócritas com Doutorado na Sorbonne, os endinheirados e vendilhões do Templo, seres ardilosos que habitam o centro do poder. Esses vendem até a mãe, quando se trata de ganho fácil. São lisos como vaselina, quando se trata de firmar compromissos. Interpretam os seus enredos de falsidade e mentira com a argúcia dos grandes atores shakespearianos. Chegam a fazer promessas opostas, no mesmo dia, a pessoas diferentes, tudo para não largar os testículos do poderoso da vez.  Dão tapinhas nas costas de inimigos entre si, prometendo ajudar um e outro na luta política contra o adversário. Tenho certeza de que você conhece um trapaceiro, mentiroso e dissimulado desse tipo aí mesmo no seu Estado! Tem o... você sabe quem... Tem também o... Pois é, meu amigo, ele mesmo... Os embusteiros desse tipo são mestres em safadeza e ladroagem, em hipocrisia e trapaça. Enganadores, eles têm a carinha lisa de um anjo; mudam de lado conforme os ventos do capital. Uma hora pendem para a esquerda; em outra, para a direita, flertando com os dois lados ao mesmo tempo. Eu os chamo de agentes duplos da concupiscência e da safadeza. Eles são mestres consagrados em sopas de letrinhas, misturando o alfabeto para formar partidos políticos de aluguel.  Tenho certeza de que você pode apontar, sem que eu mencione, uma enxurrada não só de partidos, mas de agentes políticos dessa espécie capciosa. Eles são ardilosos e esquivos: quando um lado se dá mal, eles correm para o outro... O mais irônico, nesse balouçar hipócrita e astucioso, nessa dissonância cognitiva, é que eles não perdem o sorrisinho sarcástico no rosto, nem mesmo quando são confrontados com fotografias ou com antigos discursos em que teciam loas aos antigos aliados e, agora, adversários em que metem o pau. Sabe aquele tipo que lava o rosto com óleo de peroba e faz dancinha? Pois é... Esse é o típico embusteiro cara de pau, um ser abjeto e sem escrúpulos cuja ideologia é dinheiro e poder.

À esquerda do nosso muro de hipocrisia, encontramos os festivos e exploradores da miséria, aquele povinho hipócrita, cheio de razões e certezas, que passa o dia discursando em nome dos pobres, mas mora no Leblon ou em Ipanema, faz compras nos melhores Shoppings Centers (sempre em lojas de marca), anda com tênis Nike, mas tem gozo narcísico ao arrotar que sabe tudo o que o pobre sofre. Ele decora os manuais de “sofrência” popular e sobe no palco, fazendo drama e encenando os milagres que haverá de operar na vida dos miseráveis, com a intercessão divina, é claro. Deus, nessas horas, tem o papel de avalista e cheque caução. Ele sobe uma favela pela manhã, faz algumas selfies ao lado de algum garotinho remelento e descalço, dá um real e faz pose de solidário, apontando o dedo indicador para a criança... Depois de postar a fotografia nas redes sociais, o nosso solidário filantropo se sente com o dever cumprido e, contagiado pela fome alheia, vai encher o rabo de bacalhau no Antiquarius. Com um bom vinho português, é claro! Esse personagem foi muito bem estudado em nossa literatura.

Para quem não está familiarizado com o universo de Nélson Rodrigues, a “aluna da PUC” — personagem-tipo frequente nas Crônicas do "Anjo Pornográfico" — não é uma mulher específica, com nome e CPF; tampouco é, necessariamente, aluna daquela Universidade da burguesia carioca. De fato, e para fazer justiça, a PUC do Rio é, sem favor, uma das melhores e mais conceituadas Instituições de Ensino e pesquisa do país, já o era naquele tempo e continua sendo até hoje. Não vai, nesse personagem, qualquer deslustro à PUC e aos seus alunos e alunas, de ontem e de hoje. É só um arquétipo humano, bem específico e característico, que tem aquela grande Universidade como refúgio intelectual. E ele não a escolheu por acaso, mas pelo perfil socioeconômico dos seus alunos, em sua esmagadora maioria oriundos das classes mais abastadas. Bem poderia tratar-se de outra Universidade, como outras tantas, igualmente frequentadas pelos filhos da elite carioca, a “esquerda festiva”, que entornava litros de uísque no Antonio’s, como o Nélson, jocosamente, costumava dizer. Usando a PUC como cenário, ele criou uma personagem bem conhecida em suas crônicas. Leia "A Cabra Vadia" e “O Óbvio Ululante”, obras lançadas pela Companhia das Letras, que selecionam muitas das crônicas que Nelson Rodrigues escreveu para a sua coluna diária no jornal "O Globo". Logo nas primeiras páginas, você saberá do que estou falando!...

“aluna da PUC” aparece, por exemplo, na Crônica “Saúde Dentária”, publicada em 09 de outubro de 1968, que ele inicia com essas palavras: “Cada um de nós é um subdesenvolvido furioso contra o subdesenvolvimento.” (RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia; seleção Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 305).

Ela também surge nos textos “O Verdadeiro Cristo é Marx!”, de 16 de abril de 1968, e “Ator em Busca de Plateia”, de 26 de abril de 1968 (RODRIGUES, Nelson. O óbvio Ululante: primeiras confissões. Seleção das Crônicas por Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 194 e 212).

Na verdade, essa garota — esqueçamos, daqui por diante, a PUC, que nada tem a ver com isso — é um tipo bem característico das obras do Nélson, o arquétipo da militante engajada, a jovem da alta sociedade carioca que encontrou abrigo na esquerda, um ser contraditório e, não raro, hipócrita, que faz discursos trotskistas, marxista-leninistas ou maoístas, sempre falando em nome dos excluídos, mesmo sendo, ela própria, uma filha mimada da burguesia da zona sul da “Cidade Maravilhosa”. Ela defende, com unhas e dentes, o Che Guevara, não nas selvas de Cuba ou da Bolívia, mas nos bares do baixo-Gávea, há menos de mil metros da sua Universidade. Com especial deleite, Nélson a chamava de “amante do Che Guevara”. O velho Nélson e suas provocações...

Eu mesmo — um provocador barato e sem compromisso com as suas verdades e pudores — também darei os meus pitacos na composição dessa personagem, que, doravante, passarei a chamar de “burguesinha de esquerda” ou, alternativamente, “vermelhinha caviar”.

Ela tem empregados, para lavar a sua roupa e limpar, assepticamente, a sua mansão no Cosme Velho ou no Jardim Botânico; na cozinha, com um avental branco, está uma senhora, normalmente negra, que acorda às 3 da madrugada, pega dois ônibus, trem e metrô, para chegar antes das seis na casa da sinhazinha, a tempo de fazer o seu café da manhã com “Sucrilhos” e “Iogurte Activia”. Você não faz ideia de como é preguiçoso o seu intestino de riquinha mimada que come merda o dia todo!... Ah, esqueci-me do queijo “Pérladon”, da região de Languedoc, com “Prosciutto di Parma” e “Jamón de Bellota Ibérico de Reserva Montanera”. Afinal, a nossa “vermelhinha caviar”, sempre tão ativa e engajada, precisa comer bem... Não pense que é fácil engajar-se na militância política, atividade cansativa e desgastante para essa alma “desafortunada”, que acorda falando horrores dos riquinhos, seres como ela, e — hipocrisia pouca é bobagem! — tecendo loas aos pobres e miseráveis, como a sua empregada negra, convenientemente confinada na senzala moderna, a cozinha da sinhá-moça...

A nossa “burguesinha de esquerda” também é mulher — não exatamente como a sua “mucama” moderna —; é invariavelmente jovem e, ao menos uma vez na vida, faz o "Caminho de Santiago” dos militantes de esquerda no Rio de Janeiro. Inebriada pela “cannabis”, para ver com lentes cor de rosa a desgraça alheia, ela sobe o elevador da Favela do Cantagalo, em Ipanema, ou percorre, distraída, as vielas estreitas da Favela do Vidigal, para “chapar um beck” e se impregnar com o cheiro dos pobres. Já com o odor da miséria alheia em suas roupas de marca, ela retorna ao asfalto, para exalar compaixão narcísica nos bares da Rua Vinícius de Moraes. A sua finalidade? Ser cortejada pelos companheiros de berço esplêndido, que se fantasiam de proletários nos finais de semana em que não se bandeiam para Búzios ou Angra dos Reis.

Ela é um personagem contraditório, para não dizer hipócrita, o verdadeiro Tartufo, de Molière, alguém que faz discurso engajado nas festas da Universidade, fuma um beck ou dois, faz planos para a revolução proletária, brada em favor dos excluídos, venera Che Guevara, mas termina a noite no Esch Café, do Leblon, fumando charuto cubano e comendo caviar russo...

É, enfim, a filhinha ou filhinho de papai, aluna ou aluno de boas universidades cariocas que nasceu em berço nobre, mas faz digressões filosóficas sobre a pobreza, apenas porque subiu — uma ou duas vezes — a favela do Vidigal. É a Rosa Luxemburgo do posto nove em Ipanema, revolucionária cuja missão existencial é viver uma fantasia de engajamento progressista e de solidariedade aparente com o pobre ou com o trabalhador favelado, que nunca foi e, tampouco, deseja ser.

Ao contrário do grande Che Guevara, a quem tanto ama, ela não faz nada de concreto para enfrentar o seu berço burguês. Você jamais a verá nas selvas da Sierra Maestra, no sudoeste de Cuba, no Congo ou na Aldeia de La Higuera, no Departamento de Santa Cruz, na Bolívia. O seu maior ato revolucionário é beijar uma fotografia do velho Che, este, sim, o verdadeiro inconformado com a desfaçatez burguesa. Do seu rostinho, com maquiagem Chanel ou L'Oreal de Paris, escorre uma lágrima furtiva diante da fotografia do grande Ernesto Guevara de La Serna, na mesa de um necrotério boliviano, com os olhos semiabertos. E só!... A sua revolução se encerra num gole de uísque...

Ela observa os pobres e miseráveis de longe, acusando os amigos da Vinícius de Moraes de serem alienados, justamente aqueles amigos — como ela própria! — a quem o berço foi pródigo e generoso.

O seu engajamento político é uma forma de apagar a sua chaga de nascimento, o seu “pecado original”, a mácula inata que a faz "culpada" de ser da mesma classe social dos que oprimem e exploram os seres humanos do Cantagalo e do Vidigal, para ela estranhamente malcheirosos, já que não usam as melhores fragrâncias de Paris. Mas nada como um banho de sais e boas essências, na banheira de hidromassagem, depois da peregrinação ao reino dos pobres e proletários...

Como revolucionária de araque, a nossa “burguesinha de esquerda” tenta expiar o "pecado original” — eu diria edipiano — de haver mamado no seio da mãe burguesa. Para isso, faz uma imersão, breve e superficial, no mundo dos pobres, quase uma autoimolação em busca da sua Rosa Luxemburgo interior. Esse universo de exclusão social, para ela, é um parque de diversões, tão surreal quanto o seu delírio de mudar o Homo sapiens sapiens ou de se livrar da burguesinha altiva e cheia de palavras vãs, que ela sempre volta a ser, quando a porta do seu prédio se fecha por trás do seu lindo corpo burguês, ciosamente trabalhado numa boa e cara academia com personal trainer.

Para se perdoar do “pecado original”, ela sobe o elevador do Cantagalo como uma espécie de penitência, que paga ao menos uma vez na vida. Só assim, depurada pelo Caminho de Santiago dos engajados da esquerda festiva, ela retorna ao seu mundinho de classe média alta, mas, agora, já disfarçada com o cheiro dos pobres e miseráveis, de quem se diz porta-voz no seu universo de ricos e bem-aventurados. E haja assunto nas aulas de história da Universidade...

Acabar com a pobreza seria o fim do seu mundo cor de rosa, para a nossa “burguesinha de esquerda”. Aliás, seria mesmo impensável, para ela, ficar sem a mucama do quarto de empregada, o nome da senzala moderna, depois que se disfarçou de ascensão social igualitária, pleno emprego e livre iniciativa.

Imagine um mundo sem lacaios e trabalhadores explorados, sem os jovens do gueto, que acordam entre tiroteios e escolas sucateadas, mas precisam concorrer, em “igualdade” de condições, com o riquinho da casta superior e suas escolas bem pagas!...

Para a nossa jovem ama, acabar com a pobreza jamais será uma escolha livre. Os miseráveis, usando o seu próprio sangue e por sua conta e risco, que se libertem da opressão capitalista e a obriguem, pela transformação revolucionária, a renunciar aos seus privilégios de sinhá-moça. Ela nada fará de revolucionário, além de discursos etílicos no baixo-Gávea, para uma plateia de hipócritas, que, como ela própria, também não vive sem as suas mucamas.

Depois de explorar, como um circo de horrores ou como um zoológico, o Vidigal e o Cantagalo, ela se autointitula doutora em pobreza, sabendo tudo sobre a exploração dos miseráveis pelos seus próprios pais, amigos e irmãos de berço.

Já descrente na salvação do Homo sapiens e acreditando que só uma extinção em massa salvaria o Planetinha azul, eu ouso afirmar, sem qualquer pretensão de estar certo, que a distância entre esquerda, centro e direita está apenas na hipocrisia dos que cospem dignidade a partir dos seus valores narcísicos, recusando como indignos todos os que não cabem no seu espelho. Feio é tudo que não me reflete!

Ninguém pode fugir da própria sombra, nem mesmo o homem que busca seguir os caminhos da fé num Deus onipotente ou na infalibilidade dos seus próprios dogmas políticos: até o maior dos revolucionários precisa conviver em sociedade; precisa perceber, enfim, que a sua visão de mundo não pode ser excludente e egocêntrica: nem sempre estamos certos, nem quando fazemos revoluções.

De fato, se não deseja enfrentar moinhos de vento, até o mais inconformado dos seres humanos precisa encarar o seu lado negro e sombrio; precisa aceitar que a realidade é — sempre e necessariamente! — multifacetada, e a verdade, relativa. A razão, muitas vezes, está com o outro, e admitir isso não o diminui, nem o faz um “fascitoide ensandecido”, nem um “esquerdopata doentio”. Falar assim, não raro, é preconceito e intolerância à alteridade. Nada mais!

Revolucionário não é quem se ilude com a ideia de mudar tudo, com a fantasia de monopolizar a verdade ou de reescrever a história humana, de negar por completo as ideias de todos que o precederam, como se estivessem todos errados e apenas ele, o dono da verdade, estivesse certo; verdadeiro revolucionário é quem faz do improvável a matéria prima da mudança, sem perder de vista a realidade e sem se deixar iludir pela certeza da sua própria bondade e sabedoria.

Muitos revolucionários, depois de colher os louros da vitória, acabam se tornando exatamente aquilo contra o que lutavam: conservadores e preconceituosos, aristocratas fantasiados de rebeldia — ainda piores, muitas vezes, do que os que foram vencidos —, seres onipotentes que vivem encastelados numa visão monolítica da realidade, que tem como pressuposto a perfeição quase divina dos que pensam como eles.

Lidar com o caos, com o imponderável e imprevisto, isso, sim, é revolucionário! Desde que nasceu o primeiro dos Homo sapiens sapiens, só sobrevive quem melhor se adapta às circunstâncias que ainda não podem ser modificadas, enfim, quem cede, aparentemente, à tentação de caminhar nas trilhas já conhecidas, mas não abre mão da esperança de encontrar o caminho da transformação.

Se o primeiro a acender o fogo houvesse desistido ao queimar os dedos, a humanidade estaria extinta. Nem por isso, porém, devemos mudar tudo que existe ou tocar fogo no mundo.

A verdade é só uma questão de perspectiva: quem está no trem, conversando com um amigo, percebe-o parado diante de si; quem está do lado de fora do mesmo trem, e o vê passando, percebe que os dois amigos, vistos rapidamente através da janela, estão se deslocando em alta velocidade, exatamente a mesma do trem. Isso é a relatividade geral do bom e velho Einstein. Aprenda com ele e acabe com as suas certezas!

Você é muito menos revolucionário do que imagina! Essa obsessão de refazer os caminhos da humanidade é só a velha arrogância dos que imaginam saber mais do que todo mundo, dos que se iludem com o monopólio da verdade. Quem disse que os seus caminhos são os melhores ou que os seus valores me representam?

O maior dilema do revolucionário é acabar reproduzindo os mesmos comportamentos que ele estava combatendo. Napoleão Bonaparte, Robespierre, Danton e Marat acabaram mais aristocratas e tirânicos do que os nobres inúteis e despóticos que foram decapitados durante a revolução francesa...

Por isso, devagar com o andor que o santo é de barro! A sua representação da realidade nem sempre corresponde ao que é de fato real, nem ao que é desejável para todos.

Essa clivagem maniqueísta entre certo e errado, entre bons e maus, entre o que é desejável para a humanidade e o que constitui o seu próprio projeto político ou ideológico — esse mesmo que você tenta impor a todos — explica a sua fantasia megalomaníaca de mudar tudo com o que não concorda. Mas essa mudança, você não a deseja, necessariamente, para criar um mundo novo, melhor e mais justo para todos, mas para criar um mundo à sua imagem e semelhança, que satisfaça os seus próprios desejos, que faça da empregada da sinhá-moça a sua própria mucama. Você ainda não fez a revolução, e já está brincando de Deus com as cordinhas do destino alheio! O que você deseja, lá no inconsciente, como impulso obscuro do id, devidamente recalcado pelo ego, é participar dessa festa pobre que os homens armaram...

Não se faz revolução mergulhando no próprio umbigo! Isso é narcisismo, minha amiga rebelde sem causa.

A linha que separa uma rebelde incompreendida — a visionária que caminha adiante do seu tempo — da idiota sem causa — uma narcisista mimada que não sabe escutar um não, que deseja impor os seus próprios caprichos e desejos, que não sabe lidar com a frustração e com a alteridade — é muito tênue e delicada!

Aprenda, de uma vez por todas: quando você se acha melhor do que o outro, na verdade está projetando nele as suas sombras e fracassos, para assumir a fantasia de onipotência narcísica que criou para substituir a triste realidade do seu ego.

O personagem do Nélson Rodrigues, essa burguesinha universitária, é você mesma — menina hipócrita! — que aponta o dedo para me rotular como “direitista alienado”. Ao lançar sobre mim os seus próprios dejetos, você se redime da sua vidinha fútil de pessoa abastada. Eu conheço as suas fantasias sexuais com o Che Guevara... Sei que o seu namorado tem orgasmos revolucionários, quando você lhe fala do seu tesão pelo velho Che...

— Com quem você acha que está falando?

— É com você mesma que estou falando, burguesinha disfarçada de excluída! Olhe-me nos olhos!

— Quem é você, escritorzinho de merda que ousa dirigir-me as suas palavras rotas? Eu o conheço?

— Felizmente, não!... Eu apenas tenho lido — com certa repulsa — as suas postagens de amor aos excluídos, o seu olhar de piedade com os deserdados da fortuna, com os mendigos das esquinas. Você arrota dignidade e compaixão, fala de ricos exploradores e pobres espoliados... Fala com tanta emoção, que as lágrimas quase escapam do claustro de insensibilidade em que me aprisionei. Só que você, nas horas de descanso, pode desanuviar a mente em Machu Picchu, no Peru, nos pampas argentinos ou em Valparaíso, no Chile. O miserável que você finge representar, em cujo nome você se expressa, quando muito, consegue fazer uma roda de samba na laje, com espetinho de gato e cerveja barata, comprada, no ano passado, na liquidação de aniversário dos Supermercados Guanabara... Sempre haverá dominantes e dominados, presas e caçadores, nas sociedades humanas. Somos animais, apenas isso...

— Animais racionais!...

— A nossa racionalidade é apenas uma utopia. No início, bem lá atrás, os nossos tiranetes eram os homens mais fortes e hábeis das cavernas em que vivíamos abrigados das intempéries, talvez o marido da Lucy, o  Australopithecus afarensis que viveu há 3,2 milhões de anos. Um pouco mais tarde, esses tiranetes passaram a ser os homens mais fortes e hábeis das sociedades primitivas, supostamente mais sábios e, naturalmente, mais hábeis e criativos no exercício do poder sobre o gado humano. Não se esqueça de que entre os povos antigos era comum o sacrifício de humanos em oferenda aos deuses. Quer um meio mais fácil para modular comportamentos desviantes do que a espada de Dâmocles do sacrifício? Quem ousaria desafiar um soberano maia ou asteca, se a punição fosse a morte ritual? Quando já imaginávamos superada, com civilidade, essa fase de “barbárie”, vieram, não necessariamente nessa ordem, os senhores feudais, os nobres, os burgueses, os burocratas do Partido Comunista, os senhores de engenho, os fazendeiros, os capitães da indústria e, agora, os donos das startups... Quando faremos algo verdadeiramente revolucionário? Quando sobrevier a próxima extinção em massa e desaparecer o último dos seres humanos! Essa será a grande revolução do gênero Homo. O Planeta, enfim, estará salvo da nossa “bondade”!

— Se você se tornou insensível aos que sofrem nesse mundo de excluídos, o problema é seu. Eu ainda acredito na revolução. O proletariado unir-se-á um dia!

— E se tornará o novo opressor desse período revolucionário, assumindo o lugar do capitalista que o explora hoje. É ilusão fazer omelete gourmet com ovos podres... E os ovos podres somos nós, seres humanos!

— Eu tenho consciência do meu papel na transformação dessa sociedade injusta.

— Você enche essa boca cheia de dentes e aparelhos, para arrotar o seu papel revolucionário na nova ordem global? Não me faça rir! Perdoe-me a indagação, mas você o exercerá antes ou depois de se trancar no seu quarto em Ipanema, escutando Spotify com uma latinha de Coca-Cola e um Big Mac ao lado do iPhone 10? Você acha mesmo que sou assim, tão idiota? Pensa que não sei que você é a “aluna da PUC” (grande Nélson Rodrigues!), a garota mimada que sabe tudo sobre ser miserável, mas que nunca foi nem deseja ser miserável, a fera do histrionismo ressentido que brada contra os ricos e poderosos, mas flerta com a nobreza nos bares de Ipanema. Uma figurinha fácil do baronato urbano que brada contra a pobreza, mas não abre mão da empregada doméstica enclausurada em sua cozinha burguesa. O fogão se tornou o tronco, e a carteira de trabalho, o açoite...

— Você deturpa a história!

— As suas aulas de história deveriam ter servido para alguma coisa: você já deveria saber que o ser humano nunca foi melhor do que isso. Se puder levar vantagem, ele sempre desejará levar! O ombro alheio é apenas um degrau a mais no seu arrivismo. Se puder agradar a si próprio e às suas crias, mesmo que em detrimento do outro, ele certamente o fará. Ou você já passou num concurso e lamentou aquele alguém que perdeu a vaga porque você acertou uma pergunta a mais e o excluiu do emprego?

— Mas eu estudei mais do que ele e mereci a vaga!

— É essa a sua forma de lidar com a culpa? E se eu disser que ele precisava muito mais do que você e só não acertou aquela questão porque não teve acesso às mesmas escolas que você? Sabe por quê? Porque ele estava vendendo balinhas no sinal aos dez anos... A sua mãe? Presa no Complexo de Gericinó... O pai? Apenas um traço na Certidão de Nascimento...

— Você falou em culpa, mas eu realmente não tenho culpa!

— Só pergunto se você o notou, quando ele vendia balas na esquina? É claro que não! Você estava muito ocupada, preparando-se para vencer concursos públicos... O menino invisível — esse mesmo que você finge não ver nas calçadas, que chafurda no lixo, sem lar nem parentes, esse que nunca teve um computador, nem smartphone ou internet — é o avesso do seu desejo de bem-aventurança, é a face oculta da perversidade humana, é o contrário da humanidade que você invoca para si mesma, quando se sente espoliada pelo seu próprio chefe.

— Não posso fazer nada por essa gente miserável.

— Foi o que disse Pôncio Pilatos, depois de lavar as mãos: “Innocens ego sum a sanguine iusti huius” (“Sou inocente deste sangue, isso é lá convosco.”) (In: Mateus 27: 24).

— Seja como for, as oportunidades eram iguais!

— Para quem mesmo? Que bonito, hein?!... Falar dos miseráveis com uma latinha de Red Bull nas mãos, olhando o smartphone cheio de redes sociais... Com essa bunda caucasiana nas cadeiras da Faculdade ou no barzinho da moda é fácil ser bondosa e solidária... Você não é a mulher negra e pobre do gueto... Apenas finge saber o que se passa na vida dela, para passar recibo de boa moça e ganhar admiradores e curtidas...

— E você não faz a mesma coisa, ao destilar tanta hipocrisia no seu discurso alienado?

— A diferença é que eu digo, sem hipocrisia libertária, o que penso sobre o miserável das esquinas. Não me importo mais com ele. Eu simplesmente embruteci o espírito! Ele sempre esteve lá, e sempre estará em todos os tempos e lugares. Esse é muito mais do que um traço evolucionário, é um jeito de ser e agir do Homo sapiens sapiens, é a perversidade atávica do gênero Homo que se entranhou no inconsciente coletivo, forjando esse arquétipo da miséria humana, esse desgarrado que perambula nos esgotos para fazê-la nobre. É por esse olhar altivo, de compaixão e clemência, que você se sente angelical e superior. Enxergando do seu banquinho acadêmico o esgoto dos miseráveis, capturando o andar claudicante desses farrapos humanos pelas lentes da sua indulgência festiva de aluna de história, você se faz notar, como piedosa e compassiva, na sociedade dos incluídos, a alma boa que resgata os humildes, mas vive no castelo dos poderosos ou, na pior das hipóteses, entrincheirada na coxia das redes sociais, tentando se misturar com os nobres, de forma sorrateira e mendicante, para também se refestelar do banquete dos glutões do capital. Você precisa do miserável para se sentir um pouco menos miserável! Não importa o que aconteça, sempre haverá miseráveis, para que as alunas da Universidade, burguesinhas como você, assim como os intelectuais dos bares e restaurantes da moda possam vomitar a sua solidariedade hipócrita. Se os verdadeiramente excluídos desparecessem, subitamente, todos ficariam sem discurso...

— Se eu ficasse sem palavras, adotaria o seu discurso de negatividade ressentida, essa fala conservadora que nega a qualquer mudança a possibilidade de ser boa. É o velho discurso de Edward Murphy: nada está tão ruim que não possa piorar. Por isso, que tudo permaneça como está. Para os direitistas empedernidos, nada deve mudar, porque o novo será sempre pior do que o status quo.

— Há pouco eu fui chamado de esquerdopata ressentido com a minha própria miséria... Quer saber de uma coisa? Você não sabe o que é ser miserável; tampouco eu o sei, antes que me acuse da mesma hipocrisia. Você olha de longe, por uma lente de compassividade crítica, os pobres coitados que dormem ao relento, temendo ser um deles. É bonito ser solidária e piedosa, mesmo que a compaixão tenha cheiro e sabor de hipocrisia.

— Melhor hipócrita com sentimento do que sincero insensível...

— Sempre que você entoa discursos de amor aos miseráveis das ruas, eu os vejo esbarrando no seu muro de hipocrisia... Na verdade, você os ama compassivamente, como o seu próprio Deus também os ama: de longe e sem fazer nada por eles! Ou você pensa que eu não vejo a sua cara de asco, quando entra no Banco e sente, na porta, o cheiro de podridão dos miseráveis que dormiram em velhos colchões na marquise do prédio? Nessa hora, você lembra que tem um chuveiro, e ele não... Mesmo assim, você sabe tudo sobre a miséria, conhece as suas causas, domina todos os caminhos que levaram aquele indigente aos guetos da cidadela. E sai do Banco, compassiva, mas distraída, com o extrato bancário nas mãos...

— Distribuir o meu dinheiro não adiantará nada, enquanto existirem pessoas indiferentes como você, que dizem ser impossível mudar porque não querem mudança alguma.

— Agora que provoquei o seu ego, instilando o veneno do ressentimento contra mim, só desejo lhe fazer uma pergunta: você se inclui em alguma das causas da miséria? Ou, nas suas aulas de história (nas Universidades da elite desse mundo hipócrita), só lhe ensinaram a terceirizar a culpa, a demonizar pessoas que se vestem com roupas caras como você, que andam na sua companhia, que cheiram a perfume francês como você, que se refestelam com chope nos mesmos bares e restaurantes de Ipanema e do Leblon que você costuma frequentar? Mas que, misteriosamente, não são você?...

— Não sou uma riquinha inconsequente e insensível! Carrego a culpa de haver nascido em berço esplêndido, mas não sou como os meus pais, que levam o cachorro ao psicólogo. Tenho empatia pelos que sofrem. Sou bem melhor do que você e seu ressentimento passivo-agressivo!

— Que tédio, hein? Só você é santa nesse Planeta azul?!... Só você enxerga os miseráveis das esquinas?!... Só você sofre por eles com a sua garrafinha de Stella Artois nas mãos, apontando os culpados pela miséria, colando o rótulo de alienado nos seus colegas de bebedeira?!... Você já ouviu falar de solidariedade festiva? Pois é, pois é...  — Diria o filósofo Chaves, o mesmo que acabou em Acapulco.

— Você é completamente alienado!

— Que mundo é esse? Parecemos politicamente corretos, solidários e compassivos com o sofrimento dos miseráveis, não porque nos identifiquemos com eles, nem porque desejemos resolver os dilemas e desafios da humanidade, mas para lidar com a nossa própria culpa de não sermos, também, miseráveis. Por isso, com desfaçatez e cara de santo, mostramos ao mundo essa máscara de candura que vestimos nas interações sociais.

Burguesinha da elite universitária, de boas intenções o inferno está cheio! Aliás, depois de ver tanta gente bem-intencionada, nas redes sociais e na política, eu comecei a ter pena não foi do diabo, mas desse Deus de que falam por aí. Se existisse inferno, os políticos certamente estariam no céu. O capeta não quer nem conversa com eles! O único político que foi para o inferno foi o próprio Lúcifer, quando armou um golpe de estado contra Deus e se deu mal.

Sabe quando você sente que está represando um oceano, mas não tem forças para proteger a barragem da sua própria sanidade? Aquele momento em que a realidade se dissipa nas tensões represadas no inconsciente? O instante em que você começa a ver o mundo com uma névoa densa e pesada, que esconde o sol e traz a atmosfera das noites escuras e eternas?

— Você não passa de um conservador envelhecido, um tiranete que, ao negar a política como forma de transformação, só deseja manter tudo como tem sido até aqui, para, assim, sem desconstruir a ordem das coisas, conservar os seus próprios privilégios. Se não for pela transformação pacífica, usando-se como instrumento da mudança, as estruturas de poder existentes, que se desconstrua tudo que existe, fazendo-se a transformação revolucionária pelo enfrentamento.

— Desça desse palanque, beba um gole da sua Stella, antes de falar em nome dos descamisados!

— Sou, sim, consciente da dor do outro; sou, sim, solidária aos que não têm um prato de comida, nem abrigo para passar as noites de frio. A sua ironia não me fere!

— Então, por que você se defende?

— Porque sou humana, ora bolas!

— Humana? Já é um sinal de cura dos seus delírios narcísicos de transformação do mundo. Você não tem a importância que se arroga, nessa máquina de moer dignidades e de fabricar miseráveis, essa droga alucinógena que chamamos de política, a forma mais perfeita que se inventou de iludir seres humanos. O que é a democracia senão a forma perfeita de ilusão? Os excluídos vivem, pelo voto popular, a fantasia de que são os construtores da sociedade, quando, na verdade, são os tijolos no muro da dominação. Escolhem, não raro, entre o lobo e o leão, sem perceber que as presas serão sempre eles. Democracia é o direito que se dá ao pobre de escolher o seu próprio carrasco!

— Lá vem você com o seu discurso de tolo manipulado! Você vive assim, em permanente negação do futuro de mudança, porque se vendeu aos poderosos, deixando-se levar pelo ódio à política, sem perceber que esse alheamento à alteridade, essa recusa à participação política já constitui, por si só, uma forma de ação política, a mais alienada e cruel de todas, porque se faz lavando as mãos, como o Pilatos do seu discurso passivo-agressivo.

— Não é justo dizer que eu não acredito, apenas, na política, na sociedade ou nas estruturas de poder que nós, humanos, concebemos para lidar com a maldade atávica do gênero Homo e domar as feras que recalcamos no inconsciente. A minha paranoia é bem mais grave e profunda: eu não acredito é no Homo sapiens sapiens! O resto é consequência dessa incredulidade inicial. Direita, centro e esquerda, olhando do esgoto em que sobrevivo, são apenas rótulos que nós, seres humanos, criamos para alimentar o desejo narcísico de que merecemos dominar o Planeta.

— Diante disso, prefiro deixá-lo falando sozinho! Eu ainda acredito na humanidade, ao contrário de você, que caminhou da espontaneidade revolucionária da juventude à indiferença metafísica, quase estoica, de um ser desumanizado, que fala do outro sem sentimentos ou emoção. A sua passividade agressiva serve aos desígnios da mídia manipuladora e serviçal, que o transformou em escravo a ser explorado pelo senhor da Casa Grande.

— Desate o nó da esperança, burguesinha dos pobres! A sua revolta metafísica, com as minhas palavras amargas, é

“. . . é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la.” (CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Exilado dos Livros. s/d. p. 35).

— E você se aprisionou na senzala, louco de inveja porque não consegue habitar a Casa Grande.

— E a sua própria senzala? Você já se deu conta de que estamos aprisionados ao tronco, sendo açoitados com a mesma chibata? Ou você tem a ilusão de ser livre?

— Eu, pelo menos, ainda tento quebrar os grilhões que me aprisionam ao rochedo da Cítia... Você, como Prometeu, vocifera contra tudo e contra todos, mas não faz absolutamente nada. Esse vórtice caótico em que você nos coloca, ao considerar todos os seres humanos como irremediavelmente perdidos e abomináveis, só interessa a quem está com o pescoço acima do furacão. E essa pessoa não sou eu. Alienados, como você se tornou, só colaboram para a manutenção dos privilégios da classe dominante.

— Diante dos seres humanos e suas máscaras ideológicas, que caem e são trocadas a cada cena dessa Ópera Bufa chamada política, eu tenho a honra de ser alienado. A minha descrença é universal, incluindo toda e qualquer ideologia concebida por humanos, até mesmo a que defende a desconstrução das estruturas de poder. Não estou de lado algum nesse mundo civilizado. Não acredito na esquerda e, ainda menos, na direita. Conservar o quê? se nada do que está aí serve a outro desígnio que o da exploração do homem pelo homem? Mas, então, é preciso desconstruir tudo que existe? Mas nós vamos romper com o status quo, fazer a tal revolução, desconstruir tudo que existe, para criar outro monstro igual, com pessoas diferentes, tão enraizadas na certeza narcísica da infalibilidade quanto as que apeamos do poder? Os do centro, os que temem desagradar a gregos e troianos, eu os considero hipócritas e aproveitadores, seres insidiosos que vagam ao sabor das ondas que trazem a fortuna. Conheço alguns Partidos — incluindo o do atual Presidente — que habitam o poder há mais de três décadas... Eles se aproveitam de um lado e de outro, mordendo e assoprando as feridas narcísicas de conservadores e progressistas, no desígnio mesquinho de se manterem na sombra dos carvalhos mais frondosos. Nos últimos tempos, eu defendo a extinção em massa do Homo sapiens sapiens! Um asteroide ou um cometa já serviriam aos meus propósitos... Os dinossauros dominaram a Terra durante 135 milhões de anos e, mesmo assim, acabaram extintos. O Homo sapiens sapiens caminha neste Planeta há menos de 200 mil anos... Ainda há esperança, portanto... Não existem os “criacionistas”? Pois e me tornei um “extincionista” — se você me permite o neologismo.

Antes que me pergunte, eu não acredito em Deus nem no Diabo e, muito menos, no outro, incluindo você, aluna da Universidade dos ricos. Não tenho religião nem partido, não sigo tendências, modas nem pessoas; aliás, não confio nem na minha sombra, que costuma mudar de lado, quando eu menos espero...

Para falar a verdade, eu só confio na minha neurose, mesmo assim, esperando, com fervor, que ela, algum dia, se torne a psicose incurável que me permitirá falar sozinho pelas calçadas desse mundo hipócrita, sem dar a mínima para os humanos civilizados que, dos bares da Cidade, falam sobre a miséria alienada em que eu vivo. Quando, entre copos de chope e uísque com Red Bull, entre Stellas e Prosciuttos di Parma, eles disserem conhecer o meu mundo, quando falarem em solidariedade e luta por direitos civis e sociais, quando desfiarem o rosário de bondades das suas vidas de engajamento fingido, nem um sorriso de agradecimento haverão de receber do meu rosto impassível. Para regozijo dos que fazem propaganda pessoal com a miséria alheia, pacificando a própria consciência e expiando as culpas atávicas do Homo sapiens sapiens com um discurso de hipocrisia social, o meu semblante já estará crispado pelos sulcos da fome e da apatia. Nessa hora, nada me importará, nem o olhar de comiseração com os pobres que você encena no Facebook. Permitirei até uma selfie ao meu lado, para que os seus amigos virtuais, fingindo admiração, invejem o ser humano “bondoso” que você se tornou. Serei o mendigo com o semblante de pedra... O sorriso no seu rostinho burguês, contrastando com os sulcos na minha pele enrugada, será um poema de morte e vida para o seu mundo de hipócritas...

No subsolo fétido da minha psique, destilo o mal-estar que a civilização me impõe na forma de renúncias pulsionais e desejos enclausurados. Não me convide para nada que inclua seres humanos! É verdade — confesso —, sou um homem doente, como o personagem de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski.

Estou consciente da minha negatividade diante da existência, desse niilismo que corrói as entranhas do meu ser decadente:

“Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.
(...)
...não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência é uma doença. Insisto nisso.” (DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman — São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 18).

Assim fala o narrador-personagem, nas suas “Memórias do Subsolo”, uma densa jornada em direção a si mesmo, a introspecção de um depressivo em seu mergulho existencial, um anti-herói, confessadamente sem caráter, que contempla no espelho os traços mais negativos da sua personalidade.

Creio-me bem parecido com o personagem de Dostoiévski e, a cada dia, mais próximo da loucura. Talvez eu tenha me tornado masoquista, alguém que passa a gilete nos pulsos emocionais. Descobri que a verdade talvez não seja tão sublime quanto os meus sonhos de infância.

A minha existência pode até enfadá-la, causar-lhe alguma irritação ou antipatia, cara “burguesinha de esquerda”, mas — asseguro-lhe — não preciso da sua aprovação para as veredas tortuosas que resolvi seguir. Sou um homem doente! — Já o disse outras vezes e continuarei a dizê-lo. Se essa afirmação a assusta, poupe-se de escutar o que falo e experimente ceder ao desejo irresistível de fazer outra coisa, quem sabe ler algum texto idílico do Paulo Coelho, que a ajude a ver o mundo cor de rosa. As redes sociais estão cheias de pessoas bem-intencionadas... Escolha uma delas e me despreze com todo o amargor da sua bile, porque as minhas intenções são completamente obscuras e nefastas...

Quanto maior é a consciência que adquiro sobre o meu papel secundário nesse mundo de homens de razão e saber — o mundo perfeito e idílico dos bem-aventurados —, tanto maior é o prazer que sinto em ser um ponto fora da curva. Sou apenas um ser ignóbil que se afoga no lodo da sua própria ignomínia!

Com passos largos e resolutos, caminho para a inconsciência do belo e do sublime. Dizia Immanuel Kant que a experiência de prazer — que o belo evoca — não está nas coisas, mas no olhar do sujeito e na sua própria imaginação. Seria, portanto, um processo de subjetivação.

Com o meu olhar niilista, é natural que as experiências de prazer acabem sendo encobertas por uma névoa espessa e amarga, que embaça o colorido das coisas. Tornei-me demasiado consciente da maldade que fervilha nas camadas mais profundas do meu ser, e já não me sinto capaz de experimentar o prazer com o belo, de acreditar na beleza que subjaz nos abismos mais profundos da humanidade. É tudo hipocrisia!

Creio que alcancei o estágio de consciência em que o homem se nutre da sua própria iniquidade e degradação! Só consigo ver o caos, e isso a assusta. Começo a imaginar que as extinções em massa — que ocorrem de tempos em tempos no Planetinha azul — são a forma suprema da seleção natural, o meio perfeito para que o Planeta sobreviva. Do caos nascem as estrelas e renascem os planetas. Extinguem-se os homens, sobrevive o habitat, para que outras espécies surjam das cinzas. Já deu para o Homo sapiens sapiens!...

Enquanto isso não acontece, eu fico de longe, contemplando a festa dos ratos que se imaginam gatos, dos moralistas que destilam hipocrisia, dos sábios que arrotam certezas absolutas num mundo de relatividades. Esquerda, centro e direita, nesse mundo de subalternidades, podem ser apenas espécies diferentes de ratos.

Como diz a inscrição no Portal do Inferno, de Dante Alighieri:

“Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” (“Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”). (ALIGHIERI, Dante. Commedia. Mondadori, Milano, 1966-7.Inferno, Canto III, Verso 9).

Com os meus textos de autodesconstrução, eu desejo destilar veneno, cultivar o feio, refestelar-me com os seres sombrios, flertar com o anti-herói e dançar nas convenções dessa sociedade apodrecida e hipócrita.

Por isso, a minha indagação final é bem direta e objetiva: em que lado desse muro de hipocrisia você está? Não banque a santinha bondosa comigo, porque eu sou ateu e não cultuo santo de espécie alguma, nem morto e, muito menos vivo!

Calma, que eu vou responder à sua indagação defensiva: em que parte desse muro eu me situo? Minha cara leitora, eu quero é destruir o muro de hipocrisia, não metaforicamente, mas extinguindo a espécie humana. Só teremos a distribuição igualitária dos recursos quando apenas um ser humano restar na face da Terra, não porque ele se tornará subitamente bondoso, mas porque, afinal, será tudo dele.

Jorge Araken Filho, apenas um ser humano que se perdeu das palavras e as reencontrou, solitárias, nos ermos do tempo.

Post scriptum: carapuças seriam bem-vindas, para ilustrar o ensaio, se você ao menos lesse algo além de memes e “textículos” com menos de 140 caracteres...