“O muro de hipocrisia que insiste em nos
rodear”
Essa
clivagem maniqueísta que separa os humanos em guetos e standards ideológicos heteroexcludentes, facilmente perceptíveis e
identificáveis, como os rótulos nas mercadorias de um supermercado, esse reducionismo
simplista e estanque que segrega os humanos em direita, centro e esquerda, em
especial na política brasileira, é apenas uma questão de muro... é isso mesmo,
uma questão de saber de que lado do muro os hipócritas repousam em berço
esplêndido.
À
direita desse muro, vemos os pobres iludidos com a autoimagem de lobos (mais
conhecidos como “pobres de direita”) e os oligarcas, esses, sim, os verdadeiros
lobos da matilha dos neoliberais, uma trupe carniceira que devora pobres
(iludidos ou não) nos seus lautos banquetes...
O
neoliberalismo, por sua desigualdade intrínseca e indissociável, tornou-se a
ideologia da globalização, tecendo os fios invisíveis que conectam liberdade de
iniciativa e não intervenção do Estado na economia (premissa maior) com
inteligência e capacidade pessoal (premissa menor), formando, como resultado
(conclusão), a bem-aventurança e o acesso à riqueza para os mais aptos e mais
fortes. É uma espécie de seleção natural globalizada em que só os privilegiados
sobrevivem. “Welcome to the jungle”!
— Como disse a banda Guns N’ Roses em
seu álbum de estreia (“Appetite for
Destruction”). Tratam esse raciocínio como um silogismo perfeito, e não
como falácia ou sofisma, esquecendo-se de que são falsas as proposições
declarativas que o compõem: nem todos usufruem da livre iniciativa, assim como
a não intervenção do Estado (ou Estado mínimo), ao deixar sem tutela os
excluídos, aprofunda a desigualdade. Coloque o entregador de refrigerantes e a
Coca-Cola numa disputa qualquer, sem a mediação proativa do Estado, e veja se
são iguais.
Só
excluindo, como párias, os desfavorecidos de berço e, por outros motivos, os
dissonantes, loucos de todo gênero e os personagens limítrofes — aos quais,
sistemicamente, se nega acesso à igualdade prevista na Constituição, uma utopia
nessa sociedade competitiva, multiescalonada e cheia de castas em que vivemos
—, só os reduzindo, enfim, à condição de sub-humanos, que esse sistema
oligárquico mantém os seus privilégios. Se a igualdade não se estabelece na
partida, lá na infância — muitos sequer possuem família ou tiveram acesso à
alfabetização! —, não haverá de ser na chegada à idade adulta que ela surgirá
como realidade. Sobram apenas as calçadas para vender balas, quando faltam creches
e bancos de escola...
Fale
de meritocracia e oportunidades iguais em seu discurso hipócrita, mas me diga
como você se sentiria, lá no fundo do coração, se tivesse que fazer o
Vestibular, ENEN ou SISU, depois de ter passado um terço do ano letivo sem
aulas por falta de professores ou porque, lamentavelmente e não por culpa sua,
a Escola pública que você frequenta passou um terço do ano letivo com as portas
fechadas por ordem dos traficantes da “Comunidade” (eufemismo hipócrita para as
favelas)? Como competir com os alunos das Escolas particulares? Mas alguns
conseguem vencer, apesar de tudo! — Você poderá objetar. Essas são pessoas
excepcionalmente dotadas de inteligência e resiliência às dificuldades e ao
preconceito social. Elas vencem porque são muito melhores do que os abastados
e, com força sobre-humana, compensam a desvantagem inicial. Nem a alimentação é
igual! Tire o seu filho da escola particular do seu bairro de classe média e o
transfira para uma Escola pública na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro,
e você saberá do que estou falando. Melhor ainda, mude-se para lá, de mala e
cuia... Depois, suba num caixote, na rua principal do Jacarezinho, e faça um
discurso hipócrita sobre meritocracia e oportunidades iguais!... Eu já andei
por lá muitas vezes, ao contrário de você que fica atrás do computador com o cu
na mão! Quer ir lá? Eu servirei de guia para a sua experiência “heroica” fora
da sua redoma pequeno-burguesa, sentindo o cheiro da miséria. Quando estivermos
lá, não se esqueça de vociferar contra as políticas de ação afirmativa, também
chamadas de compensatórias, incluindo os (paliativos!) sistemas de cotas
“raciais” (nas Universidades e Concursos públicos), de gênero (nas candidaturas
em Partidos Políticos) e socioeconômicas (Isenções diversas, inclusive de taxas
e tributos, para pessoas de baixa renda). Enquanto milhares de crianças passam
a infância nos lixões, catando as sobras da classe média e dos ricos, você vem
com essa hipocrisia de que todos têm as mesmas oportunidades. — Eu venci porque me esforcei! — Você costuma
gritar em modo de defesa, quando percebe que sempre olhou apenas o seu umbigo.
Nesses instantes de epifania — raros! —, a sua consciência social pesa. Diga-me
que esforço ainda maior — para vencer na vida como você — poderia fazer uma
criança que passa o dia num sinal de trânsito, vendendo balas ou catando lixo
para comer. Ele não tem culpa por ter seis ou sete irmãos e, menos ainda, por
não ter um pai conhecido. Que culpa tem ele por ter uma mãe analfabeta e
indigente, não raro viciada em crack, que não pode sacrificar os de mais tenra
idade, — os que ainda não sabem pedir esmola —, impedindo os mais velhos — os
de sete anos ou mais — de ajudar no sustento da família?
Você
já parou para pensar em quantas pessoas no Brasil estudam em escolas de difícil
acesso, perdidas nos rios amazônicos ou em zonas de guerra urbana? Para falar
de igualdade, você precisa saber como é a vida fora da sua redoma de classe “A”
ou “B”. Só na Rocinha, no ano passado, milhares de alunos perderam o Vestibular
da UERJ. Sabe por quê? É claro que não! Duas facções do crime organizado
estavam em guerra e ninguém podia sair de casa... (Leia a notícia no Jornal do
Brasil, no link que indico, e se informe, antes de vomitar hipocrisia
igualitária nas redes sociais: http://www.jb.com.br/comunidade-em-pauta/noticias/2017/09/21/meritocracia-jovens-da-rocinha-perdem-vestibular-e-estao-sem-aula-devido-a-guerra/).
Essa
gente sem rosto e sem nome, que não tem cartão de crédito ou conta no banco,
foi ensinada a ser dócil e subserviente, para receber um prato de comida como
recompensa. São como animais amestrados em um circo de horrores. Uns são alienados
pela falta de instrução básica (os analfabetos funcionais, que nascem, crescem
e morrem na senzala, comendo os farelos dos banquetes das oligarquias); outros são
cooptados pela cobiça e, embevecidos com alguns anéis lançados pelos opressores,
acabam seduzidos pela ilusão de que podem ascender à classe dos lobos,
alimentando-se — eles também! —, de ovelhas. Esses últimos são os mais
imbecilizados do espectro político; eles servem à propaganda enganosa da bem-aventurança
como fruto do trabalho. Continue ralando como um condenado e, um dia, você
ficará rico! Viva a livre iniciativa, o jeitinho “democrático” para os pobres
ascenderem de casta! Você pode! Continue vendendo canetas na esquina e, com
esforço pessoal, você se tornará o Sílvio Santos. Eu pergunto: quantos Sílvio
Santos existem? E garotos que morreram vendendo balas e canetas nas ruas, como
párias dessa sociedade hipócrita e falsamente acolhedora? Quantos você já viu
por aí? Compreendeu, agora, ou terei que desenhar?
Nem
a caridade fingida dos ricos, que serve para salvar os próprios anéis — um
altruísmo hipócrita que surge para exibir falsas virtudes nas redes sociais —,
pode incluir o mendigo da esquina na sociedade dos desiguais.
O
filho do abastado tem família, recebe (ou deveria receber) carinho e educação,
adquire conhecimento nas melhores escolas (às quais vai de carro), aprende,
desde a infância, a ser competitivo, come três refeições por dia (sem contar os
lanches no McDonald’s), possui plano de saúde, roupa de frio, viaja nas férias
e não precisa vender balas no sinal. Não preciso lembrar que ele tem pais com
educação superior e muitas posses, incluindo uma boa herança e um dote para lhe
garantir o casamento, — este, sim, igualitário! — com a cria de uma “boa”
família, de preferência mais rica do que a dele.
Aos
pobres restam as cadeias públicas, penitenciárias e reformatórios, onde eles
são a maioria quase absoluta, tirando uns poucos criminosos do colarinho banco,
que, malgrado o dano infinitamente maior que causam à sociedade, acabam
recebendo tratamento “vip” do Diretor da prisão. Os ricos, mesmo quando são
flagrados com a coisa pública em seus “bunkers”, acabam com tornozeleiras
eletrônicas, para os proteger dos pobres “malcheirosos” que povoam esses
currais de degeneração humana. De vez em quando, eles colocam algemas e
correntes em algum abastado, que lançam aos leões, como faziam com os escravos
na velha Roma, com a sórdida e sub-reptícia intenção de iludir a plateia com
cenas explícitas de caça às bruxas, que nunca são verdadeiramente queimadas.
Tudo encenação, como fazem, ainda hoje, na Cidade de Salem, no Estado americano
de Massachusetts. Os turistas ficam fascinados com o espetáculo de selvageria
disfarçada de história, na verdade uma catarse para gratificar os desejos e
pulsões obscuros de quem assiste extasiado. “Queimem essa bruxa”! — Dizem os
mais coléricos.
Os
instrumentos de autocomposição privada e mediação, invenções do neoliberalismo
conservador, funcionam como os anéis que são entregues com a intenção de
preservar incólumes os dedos gordos do capitalista. Políticas proativas — ao
equilibrarem as disputas entre pobres e ricos, trabalhadores e patrões, agentes
periféricos e centrais — ferem o espírito maligno da globalização neoliberal,
que é e sempre será visceralmente conservadora do status quo. Tais medidas, buscando reduzir o fosso da desigualdade
social, colocam em banquinhos com alturas diferentes e, na medida dessa
desigualdade, os que têm estaturas diferentes, para que todos possam enxergar
em planos iguais. E isso é inaceitável para quem se encastelou no ápice da
pirâmide social, uma zona de conforto sistêmica, de matriz conservadora,
neoliberal e globalizante, que se forma sobre os ombros flexíveis dos
excluídos. Ao menos na aparência, seria “igualitário” dar bancos iguais a um
anão primordial e a um gigante, mas seria justo?... Dizem os neoliberais da
globalização que a igualdade não pode ser absoluta, variando o quinhão de cada
um, nessa “Aldeia Global”, segundo os seus próprios méritos... E quem tem mais
mérito? Quem se alimentou bem desde a infância, fez cursos extracurriculares,
estudou nos melhores colégios e — pertencendo, embora, à classe aristocrática
dos favorecidos pela fortuna e podendo, por isso mesmo, custear a Universidade
— acaba abocanhando de graça, com notas maiores nos exames admissionais, a vaga
do excluído nas Instituições Públicas de Ensino Superior. Por trágica ironia do
destino, o pobre acaba numa Universidade particular, endividando-se através do
crédito educativo...
Essa
cultura liberal conservadora — de viés nitidamente oligárquico — tem como
objetivo declarado “preservar a igualdade”, fazendo crescer o bolo, com o
mínimo de Estado na economia, antes de partilha-lo, mas esconde, de forma
sub-reptícia, a intenção de impedir o acesso das massas ao recheio de morango
com chocolate da Kopenhagen.
Discursam sobre o crescimento prévio do bolo, fazendo-nos acreditar que essa é
única forma de assegurar uma fatia para todos. Primeiro fazemos crescer o bolo,
para depois dividi-lo! Dizem essas elites, ainda, que todos serão aquinhoados
segundo as suas capacidades individuais, o que não passa de engodo nessa selva
capitalista. O bolo, na verdade, acaba sendo partilhado entre poucos, e o
recheio só aparece nas mesas da elite oligárquica. O desejo é atomizar as
massas, para que cada um lute pela sua fatia, combatendo o próximo sem pensar
no coletivo. Pense no garoto do sinal, que não conheceu o pai e teve que
trabalhar desde os sete anos de idade. Os mais cínicos responderão que fulano
venceu na vida e foi engraxate, que beltrano fez Doutorado, apesar das
circunstâncias adversas. Essas exceções, sendo raras e notáveis, dão
visibilidade aos casos não excetuados. Mas é assim que funciona a globalização:
atomiza os fracos e periféricos, diluindo as massas que agem coletivamente,
para dividi-las e manipulá-las, convencendo-as de que são fortes e que, pela
seleção natural, elas mereceram os farelos do bolo, que devem agradecer com
devoção servil. Nessa hora, os cordeiros narcisistas começam a caçar os seus
irmãos cordeiros, imaginando que se tornaram predadores só por comerem na
senzala dos lobos. Ledo engano!
Socializar a senzala e privatizar a Casa Grande, isso é globalização! Nessa “Aldeia Global”, reproduz-se — no microcosmo das inter-relações entre pessoas pobres e ricas, entre excluídos e incluídos — o mesmo modelo macrocósmico das relações entre as Nações: os fluxos de capitais sempre acontecem da periferia para o centro, dos periféricos (pobres) para os centrais (ricos), realimentando-se — através do consumo de bens produzidos, não por acaso, nos países centrais — o círculo vicioso e perverso da pobreza e da exclusão social. Os ricos produzem bens de consumo, frequentemente desconectados das reais necessidades do consumidor (iPhone 10), mas vendem a ideia, sem dúvida sedutora para quem está na base da pirâmide, de que a sua aquisição, do dia para a noite, tornou-se imprescindível à ascensão social. Da propaganda insidiosa, potencializada pelas redes sociais, nasce o desejo do pobre de conquistá-los, mesmo que isso signifique, ao fim e ao cabo, o empobrecimento ainda maior de quem já vive na periferia do mundo capitalista.
No fim das contas, só os que vivem no centro da “Aldeia Global” se beneficiam da “livre” circulação das riquezas. As grandes Corporações, verdadeiras fábricas de ilusões, têm como seu principal produto os próprios consumidores. É exatamente isso: muito mais do que novos gadgets, elas “fabricam” consumidores permanentemente angustiados e insatisfeitos com o que já possuem. E tanto mais ávidos eles serão por novos produtos, quanto mais lançamentos forem feitos. É um círculo vicioso de novos lançamentos que excitam cada vez menos os centros de prazer, trazendo recompensas progressivamente menores a cada novo produto lançado.
E o pior é que os habitantes da periferia do mundo globalizado, navegando na ilusão de que pertencem à casta dos centrais, ainda defendem esse modelo excludente, e o fazem, como regra, destilando ódio nas redes sociais. Idiota é quem não ostenta os seus mimos consumistas no mundo virtual, fazendo-se venturoso por se imaginar incluído na festa da globalização! O pior cordeiro é o que mimetiza e bajula o lobo e seu comportamento predatório, para caçar quem está em posição inferior na cadeia alimentar. Muitos escravos, para merecerem os mimos da Casa Grande, delatavam e açoitavam, com grande prazer e gozo narcísico, os companheiros de senzala... Para muitos escravos, era só lhes dar o chicote, uma recompensa e um lombo carnudo, e eles já se imaginavam senhores... Alguns, depois de alforriados, chegavam à cruel desfatez de ter escravos... O Homo sapiens sapiens — de todas as classes sociais, de todas as cores, de todos os credos religiosos, de todos os lugares e épocas — nunca valeu o que o gato enterra! Essa é a realidade que o nosso ego, com as defesas erguidas e o dedo em riste, prefere negar em sua zona de conforto.
A verdade é que o dinheiro da Casa Grande nunca dorme; só os miseráveis da senzala é que caem nos braços de Morfeu, acalantados pela cantiga de ninar da ascensão social, que lhes cantam, para embalar o sono, as sinhazinhas da Casa Grande. O canto — repetitivo e de poucas notas — é uma narrativa épica e fantasiosa sobre pobres que se tornam ricos pelo trabalho árduo, uma saga de heróis da periferia — engraxates, vendedores de bala nos sinais — que arrostam tempestades e vencem na vida, passando de explorados a exploradores, de instrumentos da riqueza alheia a barões do capital. Os trabalhadores pobres, hipnotizados pelo sentimento religioso, acreditam — porque desejam e precisam acreditar! — que, nalgum ponto das suas existências descartáveis e miseráveis, a exploração do capital sobre eles será recompensada com uma vaga cativa no paraíso. A salvação mística — uma forma de alienação da realidade, explorada, consentida e estimulada pelo Senhor da Casa Grande — é o meio mais fácil e eficaz para convencer o explorado a aceitar, candidamente, a exploração do seu trabalho, a mais-valia do seu suor, em troca de um pote de ouro no arco-íris dos tolos: a salvação depois da morte e, com ela, e para que a mereça, a estoica resignação diante da vida de vassalagem que lhe é exigida como condição para se salvar. Os maus irão para o inferno, dizem os exploradores; você irá para o paraíso, se for uma boa, inocente e comportada ovelha.
Enquanto a senzala se diverte (e se aliena!) com as migalhas emboloradas que sobram do banquete da Casa Grande, os políticos da periferia do mundo globalizado, invariavelmente servis aos interesses estrangeiros, quando lhes convém ao bolso, vendem o discurso hipócrita do empoderamento das classes dominadas e excluídas através da democracia, uma ilusão que dá ao pobre a sensação de que as cordinhas do destino estão em suas mãos, quando, na verdade, ele é apenas a marionete. Na ditadura, o carrasco lhe é imposto pela força bruta; na democracia, ele pode escolher quem irá acoitá-lo. Enquanto existirem humanos, sempre haverá exploração! Um homem suado e maltrapilho sempre haverá de carregar o piano, para que o concertista, trajado de gala, receba os aplausos. Ninguém entrega flores para o carregador do piano...
A
tal ponto chegam os neoliberais da Casa Grande, na defesa dos seus privilégios,
que não se pejam de defender um retrocesso autoritário, quando lhes convém ao
bolso. Como explicar, então, a defesa do autoritarismo de crise entre os
neoliberais? É simples: quando ameaçados de perder os anéis, eles sonham com
uma "ditadurazinha suave e provisória”, que lhes assegure os seus
privilégios, domando a utopia revolucionária dos indigentes da senzala. O
problema é que não existem “ditadurazinhas suaves e provisórias”! Que o diga
Carlos Lacerda, um dos líderes civis do Golpe de 1964, um lambe-botas da
Ditadura que teve os direitos políticos cassados em dezembro de 1968, logo
depois do famigerado AI-5. Ironias da história neoliberal, nessa pátria-mãe tão
distraída. Agarrados aos seus privilégios, eles venderam a alma ao
"diabo", acreditando na sacralidade dos generais e seus mentores do
“Tio Sam”, a quem enxergavam como Vestais do Templo de Minerva... Quem muito
lambe as botas da oligarquia uma hora é pisado...
E
eles — os senhores dos anéis — ainda nos fazem acreditar que a globalização, na
perspectiva dos ricos e segundo o modelo excludente e concentrador em que nos
foi imposta, é democrática e reduz a miséria. É difícil desconstruir a
autoimagem de lobo, depois que o cordeiro se vê caminhando como serviçal da
matilha. Para ele, é preferível servir os lobos, e catar as migalhas do
banquete, a se unir numa massa de cordeiros, e construir novos paradigmas para
essa luta entre espécies. Para evitar a união dos excluídos, os barões dividem
as massas, fazendo com que alguns habitantes da senzala do mundo globalizado,
seduzidos pela cobiça, iludam-se com a possibilidade de habitar a Casa Grande,
vivendo longe dos seus companheiros de chibata e os tratando como se fossem
estranhos ou, ainda pior, escravos. — Essa é a versão “pós-verdadeira” da
fábula de Chapeuzinho Vermelho: o lobo mau se vestiu de vovozinha para seduzir
ovelhas gulosas... Essas ovelhas iludidas ou, melhor dizendo, seduzidas pelo
ouro dos tolos, cobiçam refestelar-se com os oligarcas, embora jamais alcancem
esses status.
— Você não passa de um esquerdopata ressentido com a pobreza! Mas você não é miserável por minha culpa. O que o excluiu das riquezas, que eu conquistei com o meu suor, foi a sua própria incapacidade de vencer na vida, como eu venci.
— É a sua desculpa autoindulgente, o jeitinho hipócrita que você encontrou para justificar a sua própria riqueza em detrimento dos pobres e, de resto, a desigualdade intrínseca ao capitalismo.
Para
expor o sangue da periferia do mundo globalizado, cito, por todos, o grande
Eduardo Galeano e as “Veias abertas da
América Latina”:
“No marco (...) de um capitalismo mundial integrado em torno
das grandes corporações norte-americanas, a industrialização da América Latina
se identifica cada vez menos com o progresso e com a libertação nacional. O
talismã foi despojado de poderes nas decisivas derrotas do século passado,
quando os portos triunfaram sobre os países e a liberdade de comércio arrasou a
indústria nacional recém-nascida. O século XX não engendrou uma burguesia
industrial forte e criadora que fosse capaz de retomar a tarefa e levá-la até
as últimas consequências. Todas as tentativas ficaram na metade do caminho.
Aconteceu com a burguesia industrial da América Latina o mesmo que acontece com
os anões: chegou à decrepitude sem ter crescido. Nossos burgueses, hoje em dia,
são comissionistas ou funcionários das corporações estrangeiras todo-poderosas.
Em honra da verdade, nunca acumularam méritos para ter melhor destino.” (GALEANO, Eduardo. Veias abertas da
América Latina. Tradução de Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM Editores. p.
198).
Os
nossos políticos, como os vendilhões do Templo de Jerusalém, comercializam a
alma por alguns dólares, fazendo-se de mercadores das nossas riquezas, que se transferem
em transações espúrias e privatizações na calada da noite.
Servis
aos interesses dos países centrais, que lhes pagam um dízimo em contas secretas
no exterior, eles se tornam capatazes das grandes corporações estrangeiras,
chicoteando os indesejáveis da periferia do mundo globalizado. O açoite moderno
é a desconstrução das leis que protegem o trabalhador e, nos últimos dias, a
permissividade criminosa com o trabalho em condições análogas à escravidão.
A
quem interessa esse tipo de política econômica? Não precisa ser esperto para
perceber que o rio da periferia corre para o mar dos países centrais...
Remessas de lucros progressivamente maiores, para honra e glória dos poderosos
de Wall Street... A verdade é que o
dinheiro nunca dorme; só os alienados...
Mas
assim são os políticos da periferia do mundo globalizado: invariavelmente
servis aos interesses estrangeiros, quando lhes convém ao bolso.
Disse
Nietzsche, com a sua língua ferina, que
"Um político divide os homens em duas espécies: em primeiro
lugar os instrumentos, em seguida os inimigos. Assim, para ele, só há
propriamente uma única espécie de homens: os inimigos." (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos
sobre política. Organização, tradução, apresentação e notas por Noéli Correia
de Mello Sobrinho. — Rio de janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Edições
Loyola, 2007. V. II. Aforismo n. 398. p. 53).
Depois
de ler e reler essa frase, eu percebi que o texto — escrito, embora, no século
XIX — reflete um sentimento mais profundo e permanente, quase um arquétipo
humano, algo que costumo repetir há muitos anos, mesmo sem eco na consciência
dos amigos, sobretudo dos políticos, que não percebem (ou fingem não perceber)
as pulsões primitivas — ligadas à projeção narcísica do próprio ego — que são geradas pelo desejo
obsessivo do poder.
O
que se quer, sob o disfarce de nobreza dessa participação política, vendida
como autodoação puritana em favor do bem comum — na verdade uma hipocrisia — é
dominar a matilha, obter o reconhecimento de todos para a superioridade de quem
o exerce, não raro em benefício próprio. Em outras palavras, tudo não passa de
uma guerra, mais ou menos suja, pelo domínio e controle das ovelhas. Os lobos,
vencedores ou vencidos, são farinhas do mesmo moinho. Dê-lhes o poder de
tosquiar as ovelhas, e eles o farão de bom grado, partilhando com os
amigos/aliados os frutos da caçada e alijando os inimigos/adversários no
inferno de Dante. Aos que perdem as eleições — que passam a ser tratados como
inimigos até que seja conveniente uma aliança estratégica — só resta a fome e o
banimento da cena política, com a consequente inveja e cobiça do poder
concedido ao lobo alfa.
Mas
nada é definitivo nos esgotos da cidadela! Os ratos se transformam em gatos na
calada da noite... E vice-versa... Nada que um bunker com 51 milhões não
resolva! As execrações na Imprensa de aluguel — guinchos distantes, quase
inaudíveis! — partem dos ratos descontentes, que não receberam a sua cota de
queijo nessa festa podre. Não se iluda! O queijo metafórico somos nós, se você
ainda não percebeu. É só repartir a carniça, que os ratos começam a siesta...
O
coronelismo, o mandonismo e o clientelismo das oligarquias da Primeira
República continuam nos assombrando... E não pense que no Brasil Imperial era
diferente ou que, depois dos Golpes de 1930 e 1964, a política se tornou
asséptica como se vende por aí... De fato, nada mudou até hoje, e seria ilusão
— muito mais que utopia — imaginar que, algum dia, isso haverá de mudar! Trocar
favores é atávico numa política inevitavelmente feita por humanos. Mudaram os
atores das nossas elites oligárquicas (antes agrárias, depois industriais e
financeiras e, agora, genuinamente mafiosas), mas o enredo da Ópera bufa
permanece o mesmo: o coronelismo oligárquico! Sobretudo no Brasil, as oligarquias
do espírito se aliaram às oligarquias políticas na busca pelo capital, e o meio
de difusão dessas ideias hegemônicas é a internet, em especial as redes
sociais. Os excluídos são apenas ovelhas a serem manipuladas com pós-verdades,
para que caminhem altivas em direção à tosquia.
Na
América hispânica e no sul do Brasil, o fenômeno se multiplicou com outro nome:
o caudilhismo. Na verdade, o Coronel e o Caudilho integravam — e ainda integram
—, as elites regionais, fazendo das suas riquezas pessoais um instrumento para
controlar o jogo econômico-oligárquico e, por consequência, o poder político.
Dos seus feudos locais, eles multiplicam alianças e coalizões clientelísticas
que, pela troca de favores em escalas crescentes de influência, chegam ao poder
central. A forma de dissuasão é bem simples e eficaz: eles seduzem o eleitor
com benefícios pessoais nada republicanos, recebendo, em troca, a fidelidade do
voto para os seus apadrinhados. Manipulam o povo de forma subliminar, usando
como arma a ganância de cada um na hora de escolher o candidato. Uns querem
dentaduras, sementes para o plantio, outros cargos e, a maior parte, uma
vantagem qualquer do Estado, mesmo que isso custe o bem comum. Nessa lista de
benesses privadas — usadas como moedas de troca —, podemos encontrar desde
demandas corporativistas a sinecuras, de benefícios fiscais a interesses
egoístas em favor de parentes e amigos. O Coronel e o Caudilho representam, em
última medida, a projeção da parcela de poder que o próprio eleitor deseja ostentar,
mas não é capaz de fazê-lo pessoalmente, senão através do seu tiranete
disfarçado de sinhozinho do bem. O pior é que esses Caudilhos e Coronéis,
usando a ingenuidade dos seus rebanhos de eleitores, ainda os convencem —
talvez por sugestão hipnótica — de que a captura do Estado, para realizar os
interesses privados da elite dominante, é uma forma republicana de se fermentar
o bolo a ser distribuído depois com o povo. Esses sempre dormem à direita do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear.
Em
cima desse muro, encontramos a pior espécie de gente, os hipócritas com
Doutorado na Sorbonne, os endinheirados e vendilhões do Templo, seres ardilosos
que habitam o centro do poder. Esses vendem até a mãe, quando se trata de ganho
fácil. São lisos como vaselina, quando se trata de firmar compromissos.
Interpretam os seus enredos de falsidade e mentira com a argúcia dos grandes
atores shakespearianos. Chegam a fazer promessas opostas, no mesmo dia, a
pessoas diferentes, tudo para não largar os testículos do poderoso da vez. Dão tapinhas nas costas de inimigos entre si,
prometendo ajudar um e outro na luta política contra o adversário. Tenho
certeza de que você conhece um trapaceiro, mentiroso e dissimulado desse tipo
aí mesmo no seu Estado! Tem o... você sabe quem... Tem também o... Pois é, meu
amigo, ele mesmo... Os embusteiros desse tipo são mestres em safadeza e
ladroagem, em hipocrisia e trapaça. Enganadores, eles têm a carinha lisa de um
anjo; mudam de lado conforme os ventos do capital. Uma hora pendem para a
esquerda; em outra, para a direita, flertando com os dois lados ao mesmo tempo.
Eu os chamo de agentes duplos da concupiscência e da safadeza. Eles são mestres
consagrados em sopas de letrinhas, misturando o alfabeto para formar partidos políticos
de aluguel. Tenho certeza de que você
pode apontar, sem que eu mencione, uma enxurrada não só de partidos, mas de
agentes políticos dessa espécie capciosa. Eles são ardilosos e esquivos: quando
um lado se dá mal, eles correm para o outro... O mais irônico, nesse balouçar
hipócrita e astucioso, nessa dissonância cognitiva, é que eles não perdem o
sorrisinho sarcástico no rosto, nem mesmo quando são confrontados com
fotografias ou com antigos discursos em que teciam loas aos antigos aliados e,
agora, adversários em que metem o pau. Sabe aquele tipo que lava o rosto com
óleo de peroba e faz dancinha? Pois é... Esse é o típico embusteiro cara de pau,
um ser abjeto e sem escrúpulos cuja ideologia é dinheiro e poder.
À
esquerda do nosso muro de hipocrisia, encontramos os festivos e exploradores da
miséria, aquele povinho hipócrita, cheio de razões e certezas, que passa o dia
discursando em nome dos pobres, mas mora no Leblon ou em Ipanema, faz compras nos
melhores Shoppings Centers (sempre em
lojas de marca), anda com tênis Nike, mas tem gozo narcísico ao arrotar que
sabe tudo o que o pobre sofre. Ele decora os manuais de “sofrência” popular e
sobe no palco, fazendo drama e encenando os milagres que haverá de operar na
vida dos miseráveis, com a intercessão divina, é claro. Deus, nessas horas, tem
o papel de avalista e cheque caução. Ele sobe uma favela pela manhã, faz
algumas selfies ao lado de algum
garotinho remelento e descalço, dá um real e faz pose de solidário, apontando o
dedo indicador para a criança... Depois de postar a fotografia nas redes
sociais, o nosso solidário filantropo se sente com o dever cumprido e, contagiado
pela fome alheia, vai encher o rabo de bacalhau no Antiquarius. Com um bom vinho português, é claro! Esse personagem
foi muito bem estudado em nossa literatura.
Para quem
não está familiarizado com o universo de Nélson Rodrigues, a “aluna da
PUC” — personagem-tipo frequente nas Crônicas do "Anjo
Pornográfico" — não é uma mulher específica, com nome e CPF; tampouco é,
necessariamente, aluna daquela Universidade da burguesia carioca. De fato, e
para fazer justiça, a PUC do Rio é, sem favor, uma das melhores e mais
conceituadas Instituições de Ensino e pesquisa do país, já o era naquele tempo
e continua sendo até hoje. Não vai, nesse personagem, qualquer deslustro à PUC
e aos seus alunos e alunas, de ontem e de hoje. É só um arquétipo humano, bem
específico e característico, que tem aquela grande Universidade como refúgio
intelectual. E ele não a escolheu por acaso, mas pelo perfil socioeconômico dos
seus alunos, em sua esmagadora maioria oriundos das classes mais abastadas. Bem
poderia tratar-se de outra Universidade, como outras tantas, igualmente
frequentadas pelos filhos da elite carioca, a “esquerda festiva”,
que entornava litros de uísque no Antonio’s, como o Nélson, jocosamente,
costumava dizer. Usando a PUC como cenário, ele criou uma personagem bem
conhecida em suas crônicas. Leia "A Cabra Vadia" e “O
Óbvio Ululante”, obras lançadas pela Companhia das Letras, que
selecionam muitas das crônicas que Nelson Rodrigues escreveu para a sua coluna
diária no jornal "O Globo". Logo nas primeiras páginas,
você saberá do que estou falando!...
A “aluna
da PUC” aparece, por exemplo, na Crônica “Saúde Dentária”,
publicada em 09 de outubro de 1968, que ele inicia com essas palavras: “Cada
um de nós é um subdesenvolvido furioso contra o subdesenvolvimento.” (RODRIGUES,
Nelson. A cabra vadia; seleção Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 305).
Ela
também surge nos textos “O Verdadeiro Cristo é Marx!”, de 16 de
abril de 1968, e “Ator em Busca de Plateia”, de 26 de abril de 1968
(RODRIGUES, Nelson. O óbvio Ululante: primeiras confissões. Seleção das
Crônicas por Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 194 e 212).
Na
verdade, essa garota — esqueçamos, daqui por diante, a PUC, que nada tem a ver
com isso — é um tipo bem característico das obras do Nélson, o arquétipo da
militante engajada, a jovem da alta sociedade carioca que encontrou abrigo na
esquerda, um ser contraditório e, não raro, hipócrita, que faz discursos
trotskistas, marxista-leninistas ou maoístas, sempre falando em nome dos
excluídos, mesmo sendo, ela própria, uma filha mimada da burguesia da zona sul
da “Cidade Maravilhosa”. Ela defende, com unhas e dentes, o Che Guevara, não
nas selvas de Cuba ou da Bolívia, mas nos bares do baixo-Gávea, há menos de mil
metros da sua Universidade. Com especial deleite, Nélson a chamava de “amante
do Che Guevara”. O velho Nélson e suas provocações...
Eu
mesmo — um provocador barato e sem compromisso com as suas verdades e pudores —
também darei os meus pitacos na composição dessa personagem, que, doravante,
passarei a chamar de “burguesinha de esquerda” ou, alternativamente,
“vermelhinha caviar”.
Ela
tem empregados, para lavar a sua roupa e limpar, assepticamente, a sua mansão
no Cosme Velho ou no Jardim Botânico; na cozinha, com um avental branco, está
uma senhora, normalmente negra, que acorda às 3 da madrugada, pega dois ônibus,
trem e metrô, para chegar antes das seis na casa da sinhazinha, a tempo de
fazer o seu café da manhã com “Sucrilhos” e “Iogurte
Activia”. Você não faz ideia de como é preguiçoso o seu intestino de
riquinha mimada que come merda o dia todo!... Ah, esqueci-me do queijo “Pérladon”,
da região de Languedoc, com “Prosciutto di
Parma” e “Jamón de Bellota Ibérico de
Reserva Montanera”. Afinal, a nossa “vermelhinha caviar”, sempre tão
ativa e engajada, precisa comer bem... Não pense que é fácil engajar-se na
militância política, atividade cansativa e desgastante para essa alma
“desafortunada”, que acorda falando horrores dos riquinhos, seres como ela, e —
hipocrisia pouca é bobagem! — tecendo loas aos pobres e miseráveis, como a sua
empregada negra, convenientemente confinada na senzala moderna, a cozinha da
sinhá-moça...
A
nossa “burguesinha de esquerda” também é mulher — não exatamente como a sua
“mucama” moderna —; é invariavelmente jovem e, ao menos uma vez na vida, faz o
"Caminho de Santiago” dos militantes de esquerda no Rio de Janeiro.
Inebriada pela “cannabis”, para ver com lentes cor de rosa a
desgraça alheia, ela sobe o elevador da Favela do Cantagalo, em Ipanema, ou
percorre, distraída, as vielas estreitas da Favela do Vidigal, para “chapar um
beck” e se impregnar com o cheiro dos pobres. Já com o odor da miséria alheia
em suas roupas de marca, ela retorna ao asfalto, para exalar compaixão
narcísica nos bares da Rua Vinícius de Moraes. A sua finalidade? Ser cortejada
pelos companheiros de berço esplêndido, que se fantasiam de proletários nos
finais de semana em que não se bandeiam para Búzios ou Angra dos Reis.
Ela
é um personagem contraditório, para não dizer hipócrita, o verdadeiro Tartufo,
de Molière, alguém que faz discurso engajado nas festas da Universidade, fuma
um beck ou dois, faz planos para a
revolução proletária, brada em favor dos excluídos, venera Che Guevara, mas
termina a noite no Esch Café, do Leblon, fumando charuto cubano e comendo
caviar russo...
É,
enfim, a filhinha ou filhinho de papai, aluna ou aluno de boas universidades
cariocas que nasceu em berço nobre, mas faz digressões filosóficas sobre a
pobreza, apenas porque subiu — uma ou duas vezes — a favela do Vidigal. É a
Rosa Luxemburgo do posto nove em Ipanema, revolucionária cuja missão
existencial é viver uma fantasia de engajamento progressista e de solidariedade
aparente com o pobre ou com o trabalhador favelado, que nunca foi e, tampouco,
deseja ser.
Ao
contrário do grande Che Guevara, a quem tanto ama, ela não faz nada de concreto
para enfrentar o seu berço burguês. Você jamais a verá nas selvas da Sierra
Maestra, no sudoeste de Cuba, no Congo ou na Aldeia de La Higuera, no
Departamento de Santa Cruz, na Bolívia. O seu maior ato revolucionário é beijar
uma fotografia do velho Che, este, sim, o verdadeiro inconformado com a
desfaçatez burguesa. Do seu rostinho, com maquiagem Chanel ou L'Oreal de Paris, escorre uma lágrima furtiva diante da fotografia do grande Ernesto Guevara de
La Serna, na mesa de um necrotério boliviano, com os olhos semiabertos. E
só!... A sua revolução se encerra num gole de uísque...
Ela
observa os pobres e miseráveis de longe, acusando os amigos da Vinícius de
Moraes de serem alienados, justamente aqueles amigos — como ela própria! — a
quem o berço foi pródigo e generoso.
O
seu engajamento político é uma forma de apagar a sua chaga de nascimento, o seu
“pecado original”, a mácula inata que a faz "culpada" de ser da mesma
classe social dos que oprimem e exploram os seres humanos do Cantagalo e do
Vidigal, para ela estranhamente malcheirosos, já que não usam as melhores
fragrâncias de Paris. Mas nada como um banho de sais e boas essências, na
banheira de hidromassagem, depois da peregrinação ao reino dos pobres e
proletários...
Como
revolucionária de araque, a nossa “burguesinha de esquerda” tenta expiar o
"pecado original” — eu diria edipiano — de haver mamado no seio da mãe
burguesa. Para isso, faz uma imersão, breve e superficial, no mundo dos pobres,
quase uma autoimolação em busca da sua Rosa Luxemburgo interior. Esse universo
de exclusão social, para ela, é um parque de diversões, tão surreal quanto o
seu delírio de mudar o Homo sapiens sapiens ou de se livrar da burguesinha altiva e cheia de
palavras vãs, que ela sempre volta a ser, quando a porta do seu prédio se fecha
por trás do seu lindo corpo burguês, ciosamente trabalhado numa boa e cara academia
com personal trainer.
Para
se perdoar do “pecado original”, ela sobe o elevador do Cantagalo como uma
espécie de penitência, que paga ao menos uma vez na vida. Só assim, depurada
pelo Caminho de Santiago dos engajados da esquerda festiva, ela retorna ao seu
mundinho de classe média alta, mas, agora, já disfarçada com o cheiro dos
pobres e miseráveis, de quem se diz porta-voz no seu universo de ricos e
bem-aventurados. E haja assunto nas aulas de história da Universidade...
Acabar
com a pobreza seria o fim do seu mundo cor de rosa, para a nossa “burguesinha
de esquerda”. Aliás, seria mesmo impensável, para ela, ficar sem a mucama do
quarto de empregada, o nome da senzala moderna, depois que se disfarçou de
ascensão social igualitária, pleno emprego e livre iniciativa.
Imagine
um mundo sem lacaios e trabalhadores explorados, sem os jovens do gueto, que
acordam entre tiroteios e escolas sucateadas, mas precisam concorrer, em
“igualdade” de condições, com o riquinho da casta superior e suas escolas bem
pagas!...
Para
a nossa jovem ama, acabar com a pobreza jamais será uma escolha livre. Os
miseráveis, usando o seu próprio sangue e por sua conta e risco, que se
libertem da opressão capitalista e a obriguem, pela transformação
revolucionária, a renunciar aos seus privilégios de sinhá-moça. Ela nada fará
de revolucionário, além de discursos etílicos no baixo-Gávea, para uma plateia
de hipócritas, que, como ela própria, também não vive sem as suas mucamas.
Depois
de explorar, como um circo de horrores ou como um zoológico, o Vidigal e o
Cantagalo, ela se autointitula doutora em pobreza, sabendo tudo sobre a
exploração dos miseráveis pelos seus próprios pais, amigos e irmãos de berço.
Já
descrente na salvação do Homo sapiens e acreditando que só uma
extinção em massa salvaria o Planetinha azul, eu ouso afirmar, sem qualquer
pretensão de estar certo, que a distância entre esquerda, centro e direita está
apenas na hipocrisia dos que cospem dignidade a partir dos seus valores
narcísicos, recusando como indignos todos os que não cabem no seu espelho. Feio
é tudo que não me reflete!
Ninguém
pode fugir da própria sombra, nem mesmo o homem que busca seguir os caminhos da
fé num Deus onipotente ou na infalibilidade dos seus próprios dogmas políticos:
até o maior dos revolucionários precisa conviver em sociedade; precisa
perceber, enfim, que a sua visão de mundo não pode ser excludente e egocêntrica:
nem sempre estamos certos, nem quando fazemos revoluções.
De
fato, se não deseja enfrentar moinhos de vento, até o mais inconformado dos
seres humanos precisa encarar o seu lado negro e sombrio; precisa aceitar que a
realidade é — sempre e necessariamente! — multifacetada, e a verdade, relativa.
A razão, muitas vezes, está com o outro, e admitir isso não o diminui, nem o
faz um “fascitoide ensandecido”, nem um “esquerdopata doentio”. Falar assim,
não raro, é preconceito e intolerância à alteridade. Nada mais!
Revolucionário
não é quem se ilude com a ideia de mudar tudo, com a fantasia de monopolizar a
verdade ou de reescrever a história humana, de negar por completo as ideias de
todos que o precederam, como se estivessem todos errados e apenas ele, o dono
da verdade, estivesse certo; verdadeiro revolucionário é quem faz do improvável
a matéria prima da mudança, sem perder de vista a realidade e sem se deixar
iludir pela certeza da sua própria bondade e sabedoria.
Muitos
revolucionários, depois de colher os louros da vitória, acabam se tornando
exatamente aquilo contra o que lutavam: conservadores e preconceituosos,
aristocratas fantasiados de rebeldia — ainda piores, muitas vezes, do que os
que foram vencidos —, seres onipotentes que vivem encastelados numa visão
monolítica da realidade, que tem como pressuposto a perfeição quase divina dos
que pensam como eles.
Lidar
com o caos, com o imponderável e imprevisto, isso, sim, é revolucionário! Desde
que nasceu o primeiro dos Homo sapiens sapiens, só sobrevive quem
melhor se adapta às circunstâncias que ainda não podem ser modificadas, enfim,
quem cede, aparentemente, à tentação de caminhar nas trilhas já conhecidas, mas
não abre mão da esperança de encontrar o caminho da transformação.
Se
o primeiro a acender o fogo houvesse desistido ao queimar os dedos, a
humanidade estaria extinta. Nem por isso, porém, devemos mudar tudo que existe
ou tocar fogo no mundo.
A
verdade é só uma questão de perspectiva: quem está no trem, conversando com um
amigo, percebe-o parado diante de si; quem está do lado de fora do mesmo trem,
e o vê passando, percebe que os dois amigos, vistos rapidamente através da
janela, estão se deslocando em alta velocidade, exatamente a mesma do trem.
Isso é a relatividade geral do bom e velho Einstein. Aprenda com ele e acabe
com as suas certezas!
Você
é muito menos revolucionário do que imagina! Essa obsessão de refazer os
caminhos da humanidade é só a velha arrogância dos que imaginam saber mais do
que todo mundo, dos que se iludem com o monopólio da verdade. Quem disse que os
seus caminhos são os melhores ou que os seus valores me representam?
O
maior dilema do revolucionário é acabar reproduzindo os mesmos comportamentos
que ele estava combatendo. Napoleão Bonaparte, Robespierre, Danton e Marat
acabaram mais aristocratas e tirânicos do que os nobres inúteis e despóticos
que foram decapitados durante a revolução francesa...
Por
isso, devagar com o andor que o santo é de barro! A sua representação da
realidade nem sempre corresponde ao que é de fato real, nem ao que é desejável
para todos.
Essa
clivagem maniqueísta entre certo e errado, entre bons e maus, entre o que é
desejável para a humanidade e o que constitui o seu próprio projeto político ou
ideológico — esse mesmo que você tenta impor a todos — explica a sua fantasia
megalomaníaca de mudar tudo com o que não concorda. Mas essa mudança, você não
a deseja, necessariamente, para criar um mundo novo, melhor e mais justo para
todos, mas para criar um mundo à sua imagem e semelhança, que satisfaça os seus
próprios desejos, que faça da empregada da sinhá-moça a sua própria mucama.
Você ainda não fez a revolução, e já está brincando de Deus com as cordinhas do
destino alheio! O que você deseja, lá no inconsciente, como impulso obscuro
do id, devidamente recalcado pelo ego, é participar
dessa festa pobre que os homens armaram...
Não
se faz revolução mergulhando no próprio umbigo! Isso é narcisismo, minha amiga
rebelde sem causa.
A
linha que separa uma rebelde incompreendida — a visionária que caminha adiante
do seu tempo — da idiota sem causa — uma narcisista mimada que não sabe escutar
um não, que deseja impor os seus próprios caprichos e desejos, que não sabe
lidar com a frustração e com a alteridade — é muito tênue e delicada!
Aprenda,
de uma vez por todas: quando você se acha melhor do que o outro, na verdade
está projetando nele as suas sombras e fracassos, para assumir a fantasia
de onipotência narcísica que criou para substituir a triste
realidade do seu ego.
O
personagem do Nélson Rodrigues, essa burguesinha universitária, é você mesma —
menina hipócrita! — que aponta o dedo para me rotular como “direitista
alienado”. Ao lançar sobre mim os seus próprios dejetos, você se redime da sua
vidinha fútil de pessoa abastada. Eu conheço as suas fantasias sexuais com o
Che Guevara... Sei que o seu namorado tem orgasmos revolucionários, quando você
lhe fala do seu tesão pelo velho Che...
—
Com quem você acha que está falando?
—
É com você mesma que estou falando, burguesinha disfarçada de excluída! Olhe-me
nos olhos!
—
Quem é você, escritorzinho de merda que ousa dirigir-me as suas palavras rotas?
Eu o conheço?
—
Felizmente, não!... Eu apenas tenho lido — com certa repulsa — as suas
postagens de amor aos excluídos, o seu olhar de piedade com os deserdados da
fortuna, com os mendigos das esquinas. Você arrota dignidade e compaixão, fala
de ricos exploradores e pobres espoliados... Fala com tanta emoção, que as
lágrimas quase escapam do claustro de insensibilidade em que me aprisionei. Só
que você, nas horas de descanso, pode desanuviar a mente em Machu Picchu, no
Peru, nos pampas argentinos ou em Valparaíso, no Chile. O miserável que você
finge representar, em cujo nome você se expressa, quando muito, consegue fazer
uma roda de samba na laje, com espetinho de gato e cerveja barata, comprada, no
ano passado, na liquidação de aniversário dos Supermercados Guanabara... Sempre
haverá dominantes e dominados, presas e caçadores, nas sociedades humanas.
Somos animais, apenas isso...
—
Animais racionais!...
—
A nossa racionalidade é apenas uma utopia. No início, bem lá atrás, os nossos
tiranetes eram os homens mais fortes e hábeis das cavernas em que vivíamos
abrigados das intempéries, talvez o marido da Lucy, o Australopithecus
afarensis que viveu há 3,2 milhões de anos. Um pouco mais tarde, esses
tiranetes passaram a ser os homens mais fortes e hábeis das sociedades
primitivas, supostamente mais sábios e, naturalmente, mais hábeis e criativos
no exercício do poder sobre o gado humano. Não se esqueça de que entre os povos
antigos era comum o sacrifício de humanos em oferenda aos deuses. Quer um meio
mais fácil para modular comportamentos desviantes do que a espada de Dâmocles
do sacrifício? Quem ousaria desafiar um soberano maia ou asteca, se a punição
fosse a morte ritual? Quando já imaginávamos superada, com civilidade, essa
fase de “barbárie”, vieram, não necessariamente nessa ordem, os senhores
feudais, os nobres, os burgueses, os burocratas do Partido Comunista, os
senhores de engenho, os fazendeiros, os capitães da indústria e, agora, os
donos das startups... Quando faremos algo verdadeiramente
revolucionário? Quando sobrevier a próxima extinção em massa e desaparecer o
último dos seres humanos! Essa será a grande revolução do gênero Homo.
O Planeta, enfim, estará salvo da nossa “bondade”!
—
Se você se tornou insensível aos que sofrem nesse mundo de excluídos, o
problema é seu. Eu ainda acredito na revolução. O proletariado unir-se-á um
dia!
—
E se tornará o novo opressor desse período revolucionário, assumindo o lugar do
capitalista que o explora hoje. É ilusão fazer omelete gourmet com
ovos podres... E os ovos podres somos nós, seres humanos!
—
Eu tenho consciência do meu papel na transformação dessa sociedade injusta.
—
Você enche essa boca cheia de dentes e aparelhos, para arrotar o seu papel
revolucionário na nova ordem global? Não me faça rir! Perdoe-me a indagação,
mas você o exercerá antes ou depois de se trancar no seu quarto em Ipanema,
escutando Spotify com uma latinha de Coca-Cola e um Big Mac ao
lado do iPhone 10? Você acha mesmo que sou assim, tão idiota? Pensa
que não sei que você é a “aluna da PUC” (grande Nélson
Rodrigues!), a garota mimada que sabe tudo sobre ser miserável, mas que nunca
foi nem deseja ser miserável, a fera do histrionismo ressentido que
brada contra os ricos e poderosos, mas flerta com a nobreza nos bares de
Ipanema. Uma figurinha fácil do baronato urbano que brada contra a pobreza, mas
não abre mão da empregada doméstica enclausurada em sua cozinha burguesa. O
fogão se tornou o tronco, e a carteira de trabalho, o açoite...
—
Você deturpa a história!
—
As suas aulas de história deveriam ter servido para alguma coisa: você já
deveria saber que o ser humano nunca foi melhor do que isso. Se puder levar
vantagem, ele sempre desejará levar! O ombro alheio é apenas um degrau a mais no
seu arrivismo. Se puder agradar a si próprio e às suas crias, mesmo que em
detrimento do outro, ele certamente o fará. Ou você já passou num concurso e
lamentou aquele alguém que perdeu a vaga porque você acertou uma pergunta a
mais e o excluiu do emprego?
—
Mas eu estudei mais do que ele e mereci a vaga!
—
É essa a sua forma de lidar com a culpa? E se eu disser que ele precisava muito
mais do que você e só não acertou aquela questão porque não teve acesso às
mesmas escolas que você? Sabe por quê? Porque ele estava vendendo balinhas no
sinal aos dez anos... A sua mãe? Presa no Complexo de Gericinó... O pai? Apenas
um traço na Certidão de Nascimento...
—
Você falou em culpa, mas eu realmente não tenho culpa!
—
Só pergunto se você o notou, quando ele vendia balas na esquina? É claro que
não! Você estava muito ocupada, preparando-se para vencer concursos públicos...
O menino invisível — esse mesmo que você finge não ver nas calçadas, que
chafurda no lixo, sem lar nem parentes, esse que nunca teve um computador,
nem smartphone ou internet — é o avesso do
seu desejo de bem-aventurança, é a face oculta da perversidade humana, é o
contrário da humanidade que você invoca para si mesma, quando se sente
espoliada pelo seu próprio chefe.
—
Não posso fazer nada por essa gente miserável.
—
Foi o que disse Pôncio Pilatos, depois de lavar as mãos: “Innocens ego
sum a sanguine iusti huius” (“Sou inocente deste sangue, isso é lá
convosco.”) (In: Mateus 27: 24).
—
Seja como for, as oportunidades eram iguais!
—
Para quem mesmo? Que bonito, hein?!... Falar dos miseráveis com uma
latinha de Red Bull nas mãos, olhando o smartphone cheio
de redes sociais... Com essa bunda caucasiana nas cadeiras da Faculdade ou no
barzinho da moda é fácil ser bondosa e solidária... Você não é a mulher negra e
pobre do gueto... Apenas finge saber o que se passa na vida dela, para passar
recibo de boa moça e ganhar admiradores e curtidas...
—
E você não faz a mesma coisa, ao destilar tanta hipocrisia no seu discurso
alienado?
—
A diferença é que eu digo, sem hipocrisia libertária, o que penso sobre o
miserável das esquinas. Não me importo mais com ele. Eu simplesmente embruteci
o espírito! Ele sempre esteve lá, e sempre estará em todos os tempos e lugares.
Esse é muito mais do que um traço evolucionário, é um jeito de ser e agir
do Homo sapiens sapiens, é a perversidade atávica do gênero Homo que
se entranhou no inconsciente coletivo, forjando esse arquétipo da miséria
humana, esse desgarrado que perambula nos esgotos para fazê-la nobre. É por
esse olhar altivo, de compaixão e clemência, que você se sente angelical e
superior. Enxergando do seu banquinho acadêmico o esgoto dos miseráveis,
capturando o andar claudicante desses farrapos humanos pelas lentes da sua
indulgência festiva de aluna de história, você se faz notar, como piedosa e
compassiva, na sociedade dos incluídos, a alma boa que resgata os humildes, mas
vive no castelo dos poderosos ou, na pior das hipóteses, entrincheirada na
coxia das redes sociais, tentando se misturar com os nobres, de forma
sorrateira e mendicante, para também se refestelar do banquete dos glutões do
capital. Você precisa do miserável para se sentir um pouco menos miserável! Não
importa o que aconteça, sempre haverá miseráveis, para que as alunas da
Universidade, burguesinhas como você, assim como os intelectuais dos bares e
restaurantes da moda possam vomitar a sua solidariedade hipócrita. Se os
verdadeiramente excluídos desparecessem, subitamente, todos ficariam sem
discurso...
—
Se eu ficasse sem palavras, adotaria o seu discurso de negatividade ressentida,
essa fala conservadora que nega a qualquer mudança a possibilidade de ser boa.
É o velho discurso de Edward Murphy: nada está tão ruim que não possa piorar.
Por isso, que tudo permaneça como está. Para os direitistas empedernidos, nada
deve mudar, porque o novo será sempre pior do que o status quo.
— Há pouco eu fui chamado de esquerdopata ressentido com a minha própria miséria... Quer saber de uma coisa? Você não sabe o que é ser miserável; tampouco eu o sei,
antes que me acuse da mesma hipocrisia. Você olha de longe, por uma lente
de compassividade crítica, os pobres coitados que dormem ao relento,
temendo ser um deles. É bonito ser solidária e piedosa, mesmo que a compaixão
tenha cheiro e sabor de hipocrisia.
—
Melhor hipócrita com sentimento do que sincero insensível...
—
Sempre que você entoa discursos de amor aos miseráveis das ruas, eu os vejo
esbarrando no seu muro de hipocrisia... Na verdade, você os ama
compassivamente, como o seu próprio Deus também os ama: de longe e sem fazer
nada por eles! Ou você pensa que eu não vejo a sua cara de asco, quando entra
no Banco e sente, na porta, o cheiro de podridão dos miseráveis que dormiram em
velhos colchões na marquise do prédio? Nessa hora, você lembra que tem um
chuveiro, e ele não... Mesmo assim, você sabe tudo sobre a miséria, conhece as
suas causas, domina todos os caminhos que levaram aquele indigente aos guetos
da cidadela. E sai do Banco, compassiva, mas distraída, com o extrato bancário
nas mãos...
—
Distribuir o meu dinheiro não adiantará nada, enquanto existirem pessoas
indiferentes como você, que dizem ser impossível mudar porque não querem
mudança alguma.
—
Agora que provoquei o seu ego, instilando o veneno do ressentimento
contra mim, só desejo lhe fazer uma pergunta: você se inclui em alguma das
causas da miséria? Ou, nas suas aulas de história (nas Universidades da elite
desse mundo hipócrita), só lhe ensinaram a terceirizar a culpa, a demonizar
pessoas que se vestem com roupas caras como você, que andam na sua companhia,
que cheiram a perfume francês como você, que se refestelam com chope nos mesmos
bares e restaurantes de Ipanema e do Leblon que você costuma frequentar? Mas
que, misteriosamente, não são você?...
—
Não sou uma riquinha inconsequente e insensível! Carrego a culpa de haver
nascido em berço esplêndido, mas não sou como os meus pais, que levam o
cachorro ao psicólogo. Tenho empatia pelos que sofrem. Sou bem melhor do que
você e seu ressentimento passivo-agressivo!
—
Que tédio, hein? Só você é santa nesse Planeta azul?!... Só você enxerga os
miseráveis das esquinas?!... Só você sofre por eles com a sua garrafinha
de Stella Artois nas mãos, apontando os culpados pela miséria,
colando o rótulo de alienado nos seus colegas de bebedeira?!... Você já ouviu
falar de solidariedade festiva? Pois é, pois é... — Diria o filósofo
Chaves, o mesmo que acabou em Acapulco.
—
Você é completamente alienado!
—
Que mundo é esse? Parecemos politicamente corretos, solidários e compassivos
com o sofrimento dos miseráveis, não porque nos identifiquemos com eles, nem
porque desejemos resolver os dilemas e desafios da humanidade, mas para lidar
com a nossa própria culpa de não sermos, também, miseráveis. Por isso, com desfaçatez
e cara de santo, mostramos ao mundo essa máscara de candura que vestimos nas
interações sociais.
Burguesinha
da elite universitária, de boas intenções o inferno está cheio! Aliás, depois
de ver tanta gente bem-intencionada, nas redes sociais e na política, eu
comecei a ter pena não foi do diabo, mas desse Deus de que falam por aí.
Se existisse inferno, os políticos certamente
estariam no céu. O capeta não quer nem conversa com eles! O único político que
foi para o inferno foi o próprio Lúcifer, quando armou um golpe de estado
contra Deus e se deu mal.
Sabe
quando você sente que está represando um oceano, mas não tem forças para
proteger a barragem da sua própria sanidade? Aquele momento em que a realidade
se dissipa nas tensões represadas no inconsciente? O instante em que você
começa a ver o mundo com uma névoa densa e pesada, que esconde o sol e traz a
atmosfera das noites escuras e eternas?
—
Você não passa de um conservador envelhecido, um tiranete que, ao negar a
política como forma de transformação, só deseja manter tudo como tem sido até
aqui, para, assim, sem desconstruir a ordem das coisas, conservar os seus
próprios privilégios. Se não for pela transformação pacífica, usando-se como
instrumento da mudança, as estruturas de poder existentes, que se desconstrua
tudo que existe, fazendo-se a transformação revolucionária pelo enfrentamento.
—
Desça desse palanque, beba um gole da sua Stella, antes de falar em
nome dos descamisados!
—
Sou, sim, consciente da dor do outro; sou, sim, solidária aos que não têm um
prato de comida, nem abrigo para passar as noites de frio. A sua ironia não me
fere!
—
Então, por que você se defende?
—
Porque sou humana, ora bolas!
—
Humana? Já é um sinal de cura dos seus delírios narcísicos de transformação do
mundo. Você não tem a importância que se arroga, nessa máquina de moer
dignidades e de fabricar miseráveis, essa droga alucinógena que chamamos de
política, a forma mais perfeita que se inventou de iludir seres humanos. O que
é a democracia senão a forma perfeita de ilusão? Os excluídos vivem, pelo voto
popular, a fantasia de que são os construtores da sociedade, quando, na
verdade, são os tijolos no muro da dominação. Escolhem, não raro, entre o lobo
e o leão, sem perceber que as presas serão sempre eles. Democracia é o direito
que se dá ao pobre de escolher o seu próprio carrasco!
—
Lá vem você com o seu discurso de tolo manipulado! Você vive assim, em
permanente negação do futuro de mudança, porque se vendeu aos poderosos,
deixando-se levar pelo ódio à política, sem perceber que esse alheamento à
alteridade, essa recusa à participação política já constitui, por si só, uma
forma de ação política, a mais alienada e cruel de todas, porque se faz lavando
as mãos, como o Pilatos do seu discurso passivo-agressivo.
—
Não é justo dizer que eu não acredito, apenas, na política, na sociedade ou nas
estruturas de poder que nós, humanos, concebemos para lidar com a maldade
atávica do gênero Homo e domar as feras que recalcamos no
inconsciente. A minha paranoia é bem mais grave e profunda: eu não acredito é
no Homo sapiens sapiens! O resto é consequência dessa incredulidade
inicial. Direita, centro e esquerda, olhando do esgoto em que sobrevivo, são
apenas rótulos que nós, seres humanos, criamos para alimentar o desejo
narcísico de que merecemos dominar o Planeta.
—
Diante disso, prefiro deixá-lo falando sozinho! Eu ainda acredito na
humanidade, ao contrário de você, que caminhou da espontaneidade revolucionária
da juventude à indiferença metafísica, quase estoica, de um ser desumanizado,
que fala do outro sem sentimentos ou emoção. A sua passividade agressiva serve
aos desígnios da mídia manipuladora e serviçal, que o transformou em escravo a
ser explorado pelo senhor da Casa Grande.
—
Desate o nó da esperança, burguesinha dos pobres! A sua revolta metafísica, com
as minhas palavras amargas, é
“. . . é apenas
a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la.” (CAMUS, Albert. O mito de Sísifo:
ensaio sobre o absurdo. Exilado dos Livros. s/d. p. 35).
—
E você se aprisionou na senzala, louco de inveja porque não consegue habitar a
Casa Grande.
—
E a sua própria senzala? Você já se deu conta de que estamos aprisionados ao
tronco, sendo açoitados com a mesma chibata? Ou você tem a ilusão de ser livre?
—
Eu, pelo menos, ainda tento quebrar os grilhões que me aprisionam ao rochedo da
Cítia... Você, como Prometeu, vocifera contra tudo e contra todos, mas não faz
absolutamente nada. Esse vórtice caótico em que você nos coloca, ao considerar
todos os seres humanos como irremediavelmente perdidos e abomináveis, só
interessa a quem está com o pescoço acima do furacão. E essa pessoa não sou eu.
Alienados, como você se tornou, só colaboram para a manutenção dos privilégios
da classe dominante.
—
Diante dos seres humanos e suas máscaras ideológicas, que caem e são trocadas a
cada cena dessa Ópera Bufa chamada política, eu tenho a honra de ser alienado.
A minha descrença é universal, incluindo toda e qualquer ideologia concebida
por humanos, até mesmo a que defende a desconstrução das estruturas de poder.
Não estou de lado algum nesse mundo civilizado. Não acredito na esquerda e,
ainda menos, na direita. Conservar o quê? se nada do que está aí serve a outro
desígnio que o da exploração do homem pelo homem? Mas, então, é preciso
desconstruir tudo que existe? Mas nós vamos romper com o status quo,
fazer a tal revolução, desconstruir tudo que existe, para criar outro monstro
igual, com pessoas diferentes, tão enraizadas na certeza narcísica da
infalibilidade quanto as que apeamos do poder? Os do centro, os que temem
desagradar a gregos e troianos, eu os considero hipócritas e aproveitadores,
seres insidiosos que vagam ao sabor das ondas que trazem a fortuna. Conheço
alguns Partidos — incluindo o do atual Presidente — que habitam o poder há mais
de três décadas... Eles se aproveitam de um lado e de outro, mordendo e
assoprando as feridas narcísicas de conservadores e progressistas, no desígnio
mesquinho de se manterem na sombra dos carvalhos mais frondosos. Nos últimos
tempos, eu defendo a extinção em massa do Homo sapiens sapiens! Um
asteroide ou um cometa já serviriam aos meus propósitos... Os dinossauros
dominaram a Terra durante 135 milhões de anos e, mesmo assim, acabaram
extintos. O Homo sapiens sapiens caminha neste Planeta há
menos de 200 mil anos... Ainda há esperança, portanto... Não existem os
“criacionistas”? Pois e me tornei um “extincionista” — se você me permite o
neologismo.
Antes
que me pergunte, eu não acredito em Deus nem no Diabo e, muito menos, no outro,
incluindo você, aluna da Universidade dos ricos. Não tenho religião nem
partido, não sigo tendências, modas nem pessoas; aliás, não confio nem na minha
sombra, que costuma mudar de lado, quando eu menos espero...
Para
falar a verdade, eu só confio na minha neurose, mesmo assim, esperando, com fervor,
que ela, algum dia, se torne a psicose incurável que me permitirá falar sozinho
pelas calçadas desse mundo hipócrita, sem dar a mínima para os humanos
civilizados que, dos bares da Cidade, falam sobre a miséria alienada em que eu
vivo. Quando, entre copos de chope e uísque com Red Bull, entre Stellas e Prosciuttos di
Parma, eles disserem conhecer o meu mundo, quando falarem em solidariedade
e luta por direitos civis e sociais, quando desfiarem o rosário de bondades das
suas vidas de engajamento fingido, nem um sorriso de agradecimento haverão de
receber do meu rosto impassível. Para regozijo dos que fazem propaganda pessoal
com a miséria alheia, pacificando a própria consciência e expiando as culpas
atávicas do Homo sapiens sapiens com um discurso de hipocrisia
social, o meu semblante já estará crispado pelos sulcos da fome e da apatia.
Nessa hora, nada me importará, nem o olhar de comiseração com os pobres que
você encena no Facebook. Permitirei até uma selfie ao
meu lado, para que os seus amigos virtuais, fingindo admiração, invejem o ser
humano “bondoso” que você se tornou. Serei o mendigo com o semblante de
pedra... O sorriso no seu rostinho burguês, contrastando com os sulcos na minha
pele enrugada, será um poema de morte e vida para o seu mundo de hipócritas...
No
subsolo fétido da minha psique, destilo o mal-estar que a civilização me impõe
na forma de renúncias pulsionais e desejos enclausurados. Não me convide para
nada que inclua seres humanos! É verdade — confesso —, sou um homem doente,
como o personagem de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski.
Estou
consciente da minha negatividade diante da existência, desse niilismo que
corrói as entranhas do meu ser decadente:
“Juro-vos,
senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica,
completa.
(...)
...não só uma
dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência é uma doença.
Insisto nisso.” (DOSTOIÉVSKI,
Fiódor Mikhailovitch. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris
Schnaiderman — São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 18).
Assim
fala o narrador-personagem, nas suas “Memórias do Subsolo”, uma
densa jornada em direção a si mesmo, a introspecção de um depressivo em seu
mergulho existencial, um anti-herói, confessadamente sem caráter, que contempla
no espelho os traços mais negativos da sua personalidade.
Creio-me
bem parecido com o personagem de Dostoiévski e, a cada dia, mais próximo da
loucura. Talvez eu tenha me tornado masoquista, alguém que passa a gilete nos
pulsos emocionais. Descobri que a verdade talvez não seja tão sublime quanto os
meus sonhos de infância.
A
minha existência pode até enfadá-la, causar-lhe alguma irritação ou antipatia,
cara “burguesinha de esquerda”, mas — asseguro-lhe — não preciso da
sua aprovação para as veredas tortuosas que resolvi seguir. Sou um homem
doente! — Já o disse outras vezes e continuarei a dizê-lo. Se essa afirmação a
assusta, poupe-se de escutar o que falo e experimente ceder ao desejo
irresistível de fazer outra coisa, quem sabe ler algum texto idílico do Paulo
Coelho, que a ajude a ver o mundo cor de rosa. As redes sociais estão cheias de
pessoas bem-intencionadas... Escolha uma delas e me despreze com todo o amargor
da sua bile, porque as minhas intenções são completamente obscuras e
nefastas...
Quanto
maior é a consciência que adquiro sobre o meu papel secundário nesse mundo de
homens de razão e saber — o mundo perfeito e idílico dos bem-aventurados —,
tanto maior é o prazer que sinto em ser um ponto fora da curva. Sou apenas um
ser ignóbil que se afoga no lodo da sua própria ignomínia!
Com
passos largos e resolutos, caminho para a inconsciência do belo e do sublime.
Dizia Immanuel Kant que a experiência de prazer — que o belo evoca — não está
nas coisas, mas no olhar do sujeito e na sua própria imaginação. Seria,
portanto, um processo de subjetivação.
Com
o meu olhar niilista, é natural que as experiências de prazer acabem sendo
encobertas por uma névoa espessa e amarga, que embaça o colorido das coisas.
Tornei-me demasiado consciente da maldade que fervilha nas camadas mais
profundas do meu ser, e já não me sinto capaz de experimentar o prazer com o
belo, de acreditar na beleza que subjaz nos abismos mais profundos da
humanidade. É tudo hipocrisia!
Creio
que alcancei o estágio de consciência em que o homem se nutre da sua própria iniquidade
e degradação! Só consigo ver o caos, e isso a assusta. Começo a imaginar que as
extinções em massa — que ocorrem de tempos em tempos no Planetinha azul — são a
forma suprema da seleção natural, o meio perfeito para que o Planeta sobreviva.
Do caos nascem as estrelas e renascem os planetas. Extinguem-se os homens,
sobrevive o habitat, para que outras espécies surjam das cinzas. Já
deu para o Homo sapiens sapiens!...
Enquanto
isso não acontece, eu fico de longe, contemplando a festa dos ratos que se
imaginam gatos, dos moralistas que destilam hipocrisia, dos sábios que arrotam
certezas absolutas num mundo de relatividades. Esquerda, centro e direita,
nesse mundo de subalternidades, podem ser apenas espécies diferentes de ratos.
Como
diz a inscrição no Portal do Inferno, de Dante Alighieri:
“Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” (“Deixai
toda esperança, ó vós que entrais!”). (ALIGHIERI, Dante. Commedia.
Mondadori, Milano, 1966-7.Inferno, Canto III, Verso 9).
Com
os meus textos de autodesconstrução, eu desejo destilar veneno, cultivar o
feio, refestelar-me com os seres sombrios, flertar com o anti-herói e dançar
nas convenções dessa sociedade apodrecida e hipócrita.
Por
isso, a minha indagação final é bem direta e objetiva: em que lado desse muro
de hipocrisia você está? Não banque a santinha bondosa comigo, porque eu sou
ateu e não cultuo santo de espécie alguma, nem morto e, muito menos vivo!
Calma,
que eu vou responder à sua indagação defensiva: em que parte desse muro eu me
situo? Minha cara leitora, eu quero é destruir o muro de hipocrisia, não
metaforicamente, mas extinguindo a espécie humana. Só teremos a distribuição
igualitária dos recursos quando apenas um ser humano restar na face da Terra,
não porque ele se tornará subitamente bondoso, mas porque, afinal, será tudo
dele.
Jorge Araken Filho,
apenas um ser humano que se perdeu das palavras e as reencontrou, solitárias,
nos ermos do tempo.
Post scriptum:
carapuças seriam bem-vindas, para ilustrar o ensaio, se você ao menos lesse
algo além de memes e “textículos” com
menos de 140 caracteres...