Como devem ser os escritores? Lentes de aumento para enxergar
a realidade ou criadores de ilusões?
Um escritor deve ser a soma das suas
vivências, sofrimentos e alegrias, um ser que interage com a realidade que ele
mesmo retrata? Ou deve ser um eremita, desgarrado das suas vivências, alguém
que cria ilusões e as transforma em palavras que possam dar sentido e prazer à
realidade que não consegue tolerar?
Em outras palavras, ele deve filtrar a
sua própria existência, dando significado à realidade, para gratificar, assim,
os seus desejos? Ou deve criar um mundo paralelo, que o permita gratificar-se
com a ilusão?
No meu caso, é a ilusão que me fascina,
o gozo no imaginário, a fuga para o universo das palavras! Mas não posso negar
que a dor e o sofrimento, como pitadas de realidade que dissolvem as ilusões, é
que fazem transbordar as falas presas na garganta.
Para ilustrar o que estou dizendo,
contarei um fato verídico, que me aconteceu no Facebook, algo de que já falei,
mas vale a pena insistir: há mais ou menos um ano e meio, um dos meus leitores
— um projeto inacabado de Don Juan — enviou-me uma mensagem, através do Facebook,
que se revelou, ao menos no início do diálogo, estranha e inusitada: disse-me,
assim, sem qualquer pudor, que usara a ideia de um dos meus contos como “caô”,
mas, segundo confessava, desiludido, só havia seduzido “mulheres fáceis”, a sua
designação para as “periguetes” que se deixam levar pelo chaveiro de um carro
ou por um corpo sarado, com barriga de tanquinho. Ele possuía tais atributos,
mas desejava conquistar algo mais sério! — Fez questão de me dizer.
Nem de longe pensei em cantadas, muito
menos em mulheres de baixa autoestima, quando escrevi o texto citado pelo jovem
desiludido. Tratava-se, afinal, de um conto, obra puramente ficcional, nada
parecido com a sociedade do consumo e da aparência em que vivemos, embora se
possa imaginar a permeabilidade cruzada entre a narrativa ficcional e a
realidade. Na verdade, uma se alimenta da outra, deixando-se penetrar pelos
poros da sensibilidade. Muitas vezes a arte imita a vida, mas conheço alguns
casos em que a vida imitou a arte...
Contudo — dir-se-ia em psicanálise —, a
linguagem tem seus mistérios. Compreendemos a partir das nossas próprias
memórias, experiências e vivências, usando-as, para dar significado aos
diversos significantes que construímos ao longo da vida.
A cognição não nasce por geração
espontânea, nem assim a capacidade de se comunicar. Elas são construídas a
partir da cultura, ou seja, da intervenção do homem na realidade, através
dos conhecimentos acumulados pelas gerações que o precederam, sendo
progressivamente moldadas — a cognição e a linguagem — pelas crenças que
perpassam o tempo, pela arte, pela moral, pelas leis, costumes e
tradições que nos são transmitidos na interação com outros humanos, seja na
família, seja no meio social extrafamiliar, aí incluindo a escola.
Mas não é só através da cultura que a
capacidade cognitiva e a linguagem se formam, enfim, que os significantes e
significados são construídos, reconstruídos, moldados e ressignificados nas
dimensões do espaço e do tempo. Essas capacidades humanas perpassam, também, o
inconsciente coletivo, alcançando, na construção dos significantes e
significados próprios de cada falante, o vasto acervo reprimido no inconsciente
individual. As palavras guardam múltiplos sentidos, escondem ideias que variam
conforme a percepção de cada um, conforme as suas memórias, experiências e
vivências, um conjunto de fatores que servem para subjetivá-las, construindo
significantes e significados permeados pelos afetos, sentimentos e emoções do
indivíduo que as comunica ao mundo.
As leituras de Lacan sempre me inspiram
na abordagem do espelho, o melhor instrumento na jornada para me construir como
totalidade, tecendo os fios da linguagem que me define, o espelho que revela o
“eu” e o distingue do “outro”, (re)conectando-me com o
meu próprio self.
O “eu” só se
constitui, enquanto processo identificatório, a partir dos significantes que
vêm do outro. Em um conhecido texto — “O estádio do espelho como
formador da função do eu”—, Lacan usa o estádio do espelho para explicar
como a criança, ao perceber a sua imagem no espelho, acaba se reconhecendo como
um “outro” imaginário, passando a manter, com essa imagem
refletida, uma relação de identificação narcísica, que ele chama de
identificação inaugural. À medida que evolui, a criança volta seus
investimentos libidinais para outros objetos, libertando-se da alienação
narcísica, para se perceber como aquele “outro” do espelho,
mas sempre mantém, como modelo, essa primeira identificação formadora da função
do “eu”.
Precisamos sempre da confirmação do
outro, para perceber quem somos e o que somos. É como a mãe, diante da criança
que começa a sorrir, ao reconhecer que o "outro" imaginário,
refletido no espelho, é ela mesma. A mãe, ao também sorrir, confirma, mesmo sem
palavras, a descoberta da criança. O sorriso materno diz: — Meu filho,
esse "outro", sorrindo no espelho, é você! Essa
identificação inaugural com o "outro" imaginário, mediada pela mãe,
molda todos os processos identificatórios em nossas vidas. Sempre carecemos da
mãe (o outro), para confirmar o que somos. E, assim, apegados a essa
identificação primitiva, buscamos no “outro” a construção dos
nossos processos identificatórios, significantes e significados.
A linguagem nasce desse processo
inaugural, que forma a tessitura essencial das nossas narrativas, os fios
invisíveis que conectam o “eu” com o mundo, projetando o que somos na interação
com o outro, e dele recebendo as projeções que o constituem.
Surgem, a partir daí, no processo
inverso, as projeções do “eu” real nesse “outro” imaginário, e acabamos vendo as
pessoas como na verdade somos. É a idealização do “outro”, a partir
dos nossos próprios significantes, que gera tantas expectativas e frustrações.
Interesso-me, também— e aqui entra o
bom e velho Carl Jung —, pelo processo que o Mestre chama de individuação, a
caminhada existencial que me revela a minha própria experiência como
totalidade, unindo as diferentes porções da “persona”, notadamente as
antagônicas, para me reconciliar, equilibrando as alegrias e os sofrimentos da
vida, a tristeza e a felicidade, na eterna busca por harmonia. A cada dia que
passa mais me convenço da genialidade de Carl Gustav Jung, pai da psicologia
analítica.
Ultimamente, tenho tido mais cuidado ao
escutar o outro, para que não acabe escutando o eco da minha própria voz, como
sempre fiz ao longo da vida, mergulhado em contemplação narcísica.
“Você pode saber o que disse, mas nunca
o que o outro escutou”, disse Lacan, ao falar da intermediação do inconsciente do
ouvinte na ressignificação do discurso do falante. Por isso, é tão difícil a
arte da escuta: nem sempre conseguimos distinguir a fala do outro do eco da
nossa própria voz.
Para escutar a alteridade, eu preciso
desapegar o significado do significante, desnudar as palavras do outro do
sentido que elas possuem para mim. Só assim, posso capturá-las na dimensão da
fala e dos significantes e significados a ela associados pelo outro, e não por
mim e pelas projeções que lanço sobre ele.
Tenho sempre cuidado com o que falo:
para quem escuta, nem sempre o significado e o significante estão apegados na
forma que indico no meu discurso:
"Não
se sabe o que verdadeiramente uma palavra quer dizer para o outro. Não se sabe
as significações acumuladas na história dele, significações que se
sedimentaram, significações que foram recalcadas." (Jacques-Alain
Miller. Coisas de Fineza em Psicanálise. Lição III: afetos e desapego. p. 32).
Para escutar o outro, sabendo,
verdadeiramente, o que ele fala, devo desprender o significado do significante,
reduzindo este último ao estado de nudez que me permita alcançar os
significados na exata dimensão que eles assumem na fala do outro. Devo, enfim,
despir o discurso do outro dos meus próprios recalques, que contaminam a escuta
com as minhas impurezas e sombras.
Ao ver que os meus textos podem servir
até para conquistas amorosas, ainda que de qualidade duvidosa — o famigerado
"caô" —, percebo os mistérios da linguagem.
Vejo como um mesmo significante pode
assumir roupagens diversas, transmitindo significados que variam conforme o
inconsciente de quem o escuta, recebendo, no processo de apreensão do sentido,
os influxos do receptor, que o modifica e transforma na medida dos seus
próprios desejos, emoções, memórias, sentimentos e experiências.
Entre o que falamos e o que as pessoas
escutam subsiste o nosso próprio mundo interior, a parte do iceberg que
se esconde abaixo da superfície.
Quanta luz podemos lançar sobre nós
próprios, ao analisar os significados diversos que emprestamos aos mesmos
significantes! As palavras dizem mais do que o sentido apenas léxico, porque
sempre as impregnamos com os cheiros e sabores dos nossos próprios afetos,
sentimentos e emoções, que filtram as palavras dos conteúdos que elas assumem
para os outros.
“Cada cabeça uma sentença!” —
Dizia Terêncio.
Quando escrevo, não penso em “caô”, mas
bem que deve servir para conquistadores sem ideias próprias...
Bom escritor não é o que domina a
linguagem e seus meios de difusão, mas o que transmite o discurso com
sensibilidade estética e coração aberto à tolerância. Os sentimentos e emoções
do autor devem brotar das suas palavras, nascendo profundas, quase catárticas,
das suas vivências. Significados e significantes precisam unir-se numa simbiose
que emocione o leitor. No peito de quem escreve é sempre inverno, mesmo quando
as suas palavras aquecem a alma do leitor.
Vivendo e aprendendo! Embora eu não me
apegue a esperanças vãs, talvez um dia eu chegue lá...
Sempre escapa um pouquinho de mim em
cada um dos meus personagens, e isso é inevitável. Como um mosaico de peças
soltas no espaço-tempo, eu vou me dissolvendo nas palavras, vou me (re)conectando
com as moções pulsionais e desejos inconscientes, para tecer esses fios
invisíveis — resquícios do meu self —
nas narrativas que vou construindo. Nada surge do nada! Mas não se iluda com a
primeira impressão: nem tudo que escrevo como realidade pessoal sou eu, e muito
do que você pensa ser ilusão é puramente meu...
Seja você mesmo um pescador de ilusões!
Ao ler o que escrevo, crie a sua própria narrativa, dando às minhas palavras a
dimensão dos seus próprios sonhos. No instante em que as liberto do seu claustro
de sombras, soltando-as nos ermos do tempo, elas passam a ser do mundo, podendo
ser suas, se você as capturar com os olhos da alma...
Jorge Araken Filho,
apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.
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