segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Como devem ser os escritores? Lentes de aumento para enxergar a realidade ou criadores de ilusões?

Como devem ser os escritores? Lentes de aumento para enxergar a realidade ou criadores de ilusões?

Um escritor deve ser a soma das suas vivências, sofrimentos e alegrias, um ser que interage com a realidade que ele mesmo retrata? Ou deve ser um eremita, desgarrado das suas vivências, alguém que cria ilusões e as transforma em palavras que possam dar sentido e prazer à realidade que não consegue tolerar?

Em outras palavras, ele deve filtrar a sua própria existência, dando significado à realidade, para gratificar, assim, os seus desejos? Ou deve criar um mundo paralelo, que o permita gratificar-se com a ilusão?

No meu caso, é a ilusão que me fascina, o gozo no imaginário, a fuga para o universo das palavras! Mas não posso negar que a dor e o sofrimento, como pitadas de realidade que dissolvem as ilusões, é que fazem transbordar as falas presas na garganta.

Para ilustrar o que estou dizendo, contarei um fato verídico, que me aconteceu no Facebook, algo de que já falei, mas vale a pena insistir: há mais ou menos um ano e meio, um dos meus leitores — um projeto inacabado de Don Juan — enviou-me uma mensagem, através do Facebook, que se revelou, ao menos no início do diálogo, estranha e inusitada: disse-me, assim, sem qualquer pudor, que usara a ideia de um dos meus contos como “caô”, mas, segundo confessava, desiludido, só havia seduzido “mulheres fáceis”, a sua designação para as “periguetes” que se deixam levar pelo chaveiro de um carro ou por um corpo sarado, com barriga de tanquinho. Ele possuía tais atributos, mas desejava conquistar algo mais sério! — Fez questão de me dizer.

Nem de longe pensei em cantadas, muito menos em mulheres de baixa autoestima, quando escrevi o texto citado pelo jovem desiludido. Tratava-se, afinal, de um conto, obra puramente ficcional, nada parecido com a sociedade do consumo e da aparência em que vivemos, embora se possa imaginar a permeabilidade cruzada entre a narrativa ficcional e a realidade. Na verdade, uma se alimenta da outra, deixando-se penetrar pelos poros da sensibilidade. Muitas vezes a arte imita a vida, mas conheço alguns casos em que a vida imitou a arte...

Contudo — dir-se-ia em psicanálise —, a linguagem tem seus mistérios. Compreendemos a partir das nossas próprias memórias, experiências e vivências, usando-as, para dar significado aos diversos significantes que construímos ao longo da vida.

 A cognição não nasce por geração espontânea, nem assim a capacidade de se comunicar. Elas são construídas a partir da cultura, ou seja, da intervenção do homem na realidade, através dos conhecimentos acumulados pelas gerações que o precederam, sendo progressivamente moldadas — a cognição e a linguagem — pelas crenças que perpassam o tempo, pela arte, pela moral, pelas leis, costumes e tradições que nos são transmitidos na interação com outros humanos, seja na família, seja no meio social extrafamiliar, aí incluindo a escola.

Mas não é só através da cultura que a capacidade cognitiva e a linguagem se formam, enfim, que os significantes e significados são construídos, reconstruídos, moldados e ressignificados nas dimensões do espaço e do tempo. Essas capacidades humanas perpassam, também, o inconsciente coletivo, alcançando, na construção dos significantes e significados próprios de cada falante, o vasto acervo reprimido no inconsciente individual. As palavras guardam múltiplos sentidos, escondem ideias que variam conforme a percepção de cada um, conforme as suas memórias, experiências e vivências, um conjunto de fatores que servem para subjetivá-las, construindo significantes e significados permeados pelos afetos, sentimentos e emoções do indivíduo que as comunica ao mundo.

As leituras de Lacan sempre me inspiram na abordagem do espelho, o melhor instrumento na jornada para me construir como totalidade, tecendo os fios da linguagem que me define, o espelho que revela o “eu” e o distingue do “outro”, (re)conectando-me com o meu próprio self.

“eu” só se constitui, enquanto processo identificatório, a partir dos significantes que vêm do outro.  Em um conhecido texto — “O estádio do espelho como formador da função do eu”—, Lacan usa o estádio do espelho para explicar como a criança, ao perceber a sua imagem no espelho, acaba se reconhecendo como um “outro” imaginário, passando a manter, com essa imagem refletida, uma relação de identificação narcísica, que ele chama de identificação inaugural. À medida que evolui, a criança volta seus investimentos libidinais para outros objetos, libertando-se da alienação narcísica, para se perceber como aquele “outro” do espelho, mas sempre mantém, como modelo, essa primeira identificação formadora da função do “eu”.

Precisamos sempre da confirmação do outro, para perceber quem somos e o que somos. É como a mãe, diante da criança que começa a sorrir, ao reconhecer que o "outro" imaginário, refletido no espelho, é ela mesma. A mãe, ao também sorrir, confirma, mesmo sem palavras, a descoberta da criança. O sorriso materno diz: — Meu filho, esse "outro", sorrindo no espelho, é você! Essa identificação inaugural com o "outro" imaginário, mediada pela mãe, molda todos os processos identificatórios em nossas vidas. Sempre carecemos da mãe (o outro), para confirmar o que somos. E, assim, apegados a essa identificação primitiva, buscamos no “outro” a construção dos nossos processos identificatórios, significantes e significados.

A linguagem nasce desse processo inaugural, que forma a tessitura essencial das nossas narrativas, os fios invisíveis que conectam o “eu” com o mundo, projetando o que somos na interação com o outro, e dele recebendo as projeções que o constituem.

Surgem, a partir daí, no processo inverso, as projeções do “eu” real nesse “outro” imaginário, e acabamos vendo as pessoas como na verdade somos. É a idealização do “outro”, a partir dos nossos próprios significantes, que gera tantas expectativas e frustrações.

Interesso-me, também— e aqui entra o bom e velho Carl Jung —, pelo processo que o Mestre chama de individuação, a caminhada existencial que me revela a minha própria experiência como totalidade, unindo as diferentes porções da “persona”, notadamente as antagônicas, para me reconciliar, equilibrando as alegrias e os sofrimentos da vida, a tristeza e a felicidade, na eterna busca por harmonia. A cada dia que passa mais me convenço da genialidade de Carl Gustav Jung, pai da psicologia analítica.

Ultimamente, tenho tido mais cuidado ao escutar o outro, para que não acabe escutando o eco da minha própria voz, como sempre fiz ao longo da vida, mergulhado em contemplação narcísica.

“Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou”, disse Lacan, ao falar da intermediação do inconsciente do ouvinte na ressignificação do discurso do falante. Por isso, é tão difícil a arte da escuta: nem sempre conseguimos distinguir a fala do outro do eco da nossa própria voz.

Para escutar a alteridade, eu preciso desapegar o significado do significante, desnudar as palavras do outro do sentido que elas possuem para mim. Só assim, posso capturá-las na dimensão da fala e dos significantes e significados a ela associados pelo outro, e não por mim e pelas projeções que lanço sobre ele.

Tenho sempre cuidado com o que falo: para quem escuta, nem sempre o significado e o significante estão apegados na forma que indico no meu discurso:

"Não se sabe o que verdadeiramente uma palavra quer dizer para o outro. Não se sabe as significações acumuladas na história dele, significações que se sedimentaram, significações que foram recalcadas." (Jacques-Alain Miller. Coisas de Fineza em Psicanálise. Lição III: afetos e desapego. p. 32).

Para escutar o outro, sabendo, verdadeiramente, o que ele fala, devo desprender o significado do significante, reduzindo este último ao estado de nudez que me permita alcançar os significados na exata dimensão que eles assumem na fala do outro. Devo, enfim, despir o discurso do outro dos meus próprios recalques, que contaminam a escuta com as minhas impurezas e sombras.

Ao ver que os meus textos podem servir até para conquistas amorosas, ainda que de qualidade duvidosa — o famigerado "caô" —, percebo os mistérios da linguagem.

Vejo como um mesmo significante pode assumir roupagens diversas, transmitindo significados que variam conforme o inconsciente de quem o escuta, recebendo, no processo de apreensão do sentido, os influxos do receptor, que o modifica e transforma na medida dos seus próprios desejos, emoções, memórias, sentimentos e experiências.

Entre o que falamos e o que as pessoas escutam subsiste o nosso próprio mundo interior, a parte do iceberg que se esconde abaixo da superfície.

Quanta luz podemos lançar sobre nós próprios, ao analisar os significados diversos que emprestamos aos mesmos significantes! As palavras dizem mais do que o sentido apenas léxico, porque sempre as impregnamos com os cheiros e sabores dos nossos próprios afetos, sentimentos e emoções, que filtram as palavras dos conteúdos que elas assumem para os outros.

“Cada cabeça uma sentença!” — Dizia Terêncio.

Quando escrevo, não penso em “caô”, mas bem que deve servir para conquistadores sem ideias próprias...

Bom escritor não é o que domina a linguagem e seus meios de difusão, mas o que transmite o discurso com sensibilidade estética e coração aberto à tolerância. Os sentimentos e emoções do autor devem brotar das suas palavras, nascendo profundas, quase catárticas, das suas vivências. Significados e significantes precisam unir-se numa simbiose que emocione o leitor. No peito de quem escreve é sempre inverno, mesmo quando as suas palavras aquecem a alma do leitor.

Vivendo e aprendendo! Embora eu não me apegue a esperanças vãs, talvez um dia eu chegue lá...

Sempre escapa um pouquinho de mim em cada um dos meus personagens, e isso é inevitável. Como um mosaico de peças soltas no espaço-tempo, eu vou me dissolvendo nas palavras, vou me (re)conectando com as moções pulsionais e desejos inconscientes, para tecer esses fios invisíveis — resquícios do meu self — nas narrativas que vou construindo. Nada surge do nada! Mas não se iluda com a primeira impressão: nem tudo que escrevo como realidade pessoal sou eu, e muito do que você pensa ser ilusão é puramente meu...

Seja você mesmo um pescador de ilusões! Ao ler o que escrevo, crie a sua própria narrativa, dando às minhas palavras a dimensão dos seus próprios sonhos. No instante em que as liberto do seu claustro de sombras, soltando-as nos ermos do tempo, elas passam a ser do mundo, podendo ser suas, se você as capturar com os olhos da alma...

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.

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