terça-feira, 19 de setembro de 2017

Generais, fascistas ressentidos, viúvas da Ditadura, cura gay e o retorno ao Australopithecus afarensis

Generais, fascistas ressentidos, viúvas da Ditadura, cura gay e o retorno ao Australopithecus afarensis

O problema do intolerante é que ele faz muitas perguntas, mas só aceita as suas próprias respostas.

Ainda bem que Sigmund Freud não conheceu as redes sociais, a pós-verdade nem as edições eletrônicas dos Jornais e Revistas do nosso tempo! O Pai da Psicanálise, felizmente, não presenciou a face mais cruel da intolerância, o espaço sem ética onde os hipócritas ditam regras morais, o inferno onde os pequenos tiranos encontram seus reinos, a terra de ninguém onde os preconceituosos destilam a amargura que os envenena.

Passeava, um tempo desses, pelo noticiário do dia, quando, sem surpresa alguma (nada mais me surpreende!), vi a fotografia de um torturador da época da Ditadura militar, um senhor de 77 anos e vasta cabeleira branca, cujo nome, em respeito à memória das suas vítimas, eu prefiro ocultar. Um tempo atrás, ele fora denunciado, formalmente, pelos seus crimes, que incluíam a tortura de um religioso católico e de outros jovens que ousaram resistir ao Regime de 1964.

Para quem não sabe história, ou gosta de reescrevê-la, a fim de negar o passado de desonra, essa famigerada Ditadura, dentre outras barbaridades, baixou os dezessete Atos Institucionais que rasgaram a Constituição liberal, de viés oligárquico, promulgada em 1946, que já não era grande coisa! A Constituição de 1934 — que chegou a ousar em alguns direitos sociais, introduzindo o voto secreto, dando ao sufrágio feminino status constitucional, criando a Justiça do Trabalho e definindo alguns dos direitos constitucionais do trabalhador, como jornada de 8 horas, repouso semanal e férias remuneradas — já era história nesse tempo. Pois foi esse Regime de Exceção, que muitos, cinicamente, dizem não ter existido no Brasil, que jogou na lata do lixo a Constituição dos liberais de 1946, avós dos neoliberais oligárquicos de hoje. Não que os Atos da Ditadura de 1964 tenham afastado do poder as nossas oligarquias de matriz liberal. Bem longe disso! Só foram cassados os que pensavam em algo parecido com a ideia de povo. O que me intriga, no entanto, é o seguinte: se não se tratava de uma Ditadura, por que coube aos Generais, e não a uma Assembleia Nacional Constituinte legitimamente eleita pelo povo, baixar os dezessete Atos Institucionais com força supraconstituicional e, pior ainda, outorgar a Emenda n. 1 de 1969? Ou, por outra: se não foram os generais da Junta Militar que rasgaram, sem consulta popular, plebiscito ou legitimidade pelo voto, a Constituição liberal oligárquica de 1946, promulgada, mal ou bem, por uma Assembleia Nacional Constituinte, quem teve a ousadia de fazê-lo, assinando, ao final, os nomes do General de Exército Aurélio de Lira Tavares, do Almirante de Esquadra Augusto Hamann Rademaker e do Tenente-Brigadeiro Márcio de Sousa e Melo? Deve ter sido o “Fantasma da Ópera”, de Gaston Leroux...

Li a matéria, esperando notícias sobre o julgamento, mas logo percebi que ele falecera na véspera, em São Paulo, vítima de câncer no pulmão. Não consegui ter piedade, por mais que tentasse. Tentei ver um cadinho de bondade perdida naquele torturador idoso, mas acho que sou "humano, demasiado humano", diria Nietzsche.

O que mais me chamou a atenção, contudo, não foi a matéria jornalística em si, nem a notícia da morte daquele homem de idade avançada.  A matéria — devo confessar a minha estranheza — até foi sóbria e direta, talvez para não deixar transparecer o saudosismo dos fascistas ressentidos e das viúvas da Ditadura que controlam esse conhecido Jornal, um dos primeiros a lamber as botas sujas do Regime Militar e a se beneficiar com ele.

O que mais me tocou foi a defesa sectária e irritada dos “feitos gloriosos” desse Senhor, que foram exaltados em prosa e verso pelos intolerantes do mundo virtual. Os mais ensandecidos até o criticavam por não ter “completado o serviço” com a Presidente Dilma Roussef. Tratava-se, antes que eu me esqueça, do Capitão do Exército que a torturara no início dos anos 70.  Como ironia da história, antes de morrer, ele teve que engolir a sua vítima exercendo o comando supremo das Forças Armadas, nomeando os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promovendo os seus oficiais-generais e os exonerando dos seus cargos, como preceitua, para seu desprazer, o art. 84, inciso XIII, da Constituição de 1988.

Sem qualquer pudor ou autocensura e sem conhecer qualquer um dos mortos e sobreviventes, mas simplesmente por ouvir dizer nas redes sociais e nos “livros de história dos torturadores”, pontificavam outros, como dogmas absolutos e verdades imutáveis, que eram todos “terroristas e bandidos” e, por isso, mereceram a tortura e até a morte sumária, sem julgamento ou processo.

Não vou relatar as ofensas à memória dos que pereceram na tortura, nem à dos que sobreviveram para nos contar como era a vida nos porões da Ditadura.

Para aprender sobre esse período negro, as minhas palavras não bastam, sendo mais instrutivo, para os desinformados e intolerantes, visitar o site “Brasil Nunca Mais Digital” (http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/), do Ministério Público Federal, o mesmo Órgão do tão exaltado Procurador-Geral da República, por trágica ironia, o mesmo que é elogiado por contribuir, direta ou indiretamente, para apear do poder a Presidente torturada pelo Capitão...

Como se nada disso bastasse, um General ameaça a República com um Golpe de Estado, e ainda tem a desfaçatez de invocar a Constituição... Como desgraça pouca é bobagem, um cantor — a quem prefiro não ofender nem dar publicidade imerecida — acaba de proclamar que nunca existiu uma Ditadura do Brasil... E um juiz, em nome da liberdade, abre as portas à “cura gay”, intrometendo-se na sexualidade alheia, para ditar regras morais e inventar doenças. Nem do c... somos donos... Republiqueta de merda essa em que vivemos! Mundo de merda esse que criamos desde que o Australopithecus afarensis desceu das árvores há 3,7 milhões de anos!

A tal ponto chegam os neoliberais da Casa Grande, na defesa dos seus privilégios, que não se pejam de defender um retrocesso autoritário, quando lhes convém ao bolso. Como explicar, então, a defesa do autoritarismo de crise entre os neoliberais? É simples: quando ameaçados de perder os anéis, eles sonham com uma "ditadurazinha suave e provisória”, que lhes assegure os seus privilégios, domando a utopia revolucionária dos indigentes da senzala. O problema é que não existem “ditadurazinhas suaves e provisórias”! Que o diga Carlos Lacerda, um dos líderes civis do Golpe de 1964, um lambe-botas da Ditadura que teve os direitos políticos cassados em dezembro de 1968, logo depois do famigerado AI-5. Ironias da história neoliberal, nessa pátria-mãe tão distraída. Agarrados aos seus privilégios, eles venderam a alma ao "diabo", acreditando na sacralidade dos generais e seus mentores do “Tio Sam”, a quem enxergavam, interesseira e hipocritamente, como Vestais do Templo de Minerva... Quem muito lambe as botas uma hora é pisado...

Tenho insistido, ultimamente, que esse estado de estupor e embrutecimento — uma descrença absoluta em tudo e em todos os que não são o espelho onde projetamos os nossos desejos, uma revolta indiscriminada contra tudo que contraria os nossos interesses mesquinhos —, obscurecendo a razão e abrindo feridas incuráveis, acabará semeando o destino que tanto deveríamos evitar.

Se não posso abstrair a realidade do meu tempo, que me modula com as suas idiossincrasias e limitações, devo concluir, com certo incômodo às minhas certezas confortáveis, que todas as verdades em que acredito, inclusive as mais irrefutáveis e dogmáticas, só existem no tempo histórico em que foram produzidas: o que hoje se parece com a mais absoluta das verdades pode não explicar o passado nem o futuro.

Se o anacronismo ufanista — esse constante escrever, reescrever e ressignificar a história em busca de feitos gloriosos que a tornem romântica e menos violenta, quase asséptica e bem intencionada — fosse um privilégio dos brasileiros, bastaria iluminar com a razão os antigos textos, debruçar-se sobre as fontes históricas que não se apagaram com o tempo, para conhecer o verdadeiro Brasil e seus caminhos nem sempre cheio de flores, mas muitas vezes injusto e repleto de sangue de gente inocente. Em alguns casos, deturpa-se a verdade por vergonha do passado.

O problema é que escrever e reescrever a história, sob a perspectiva dos vencedores (o homem branco de origem europeia em detrimento do índio e do negro; o torturador em detrimento do torturado), é um traço do ser humano, na verdade um condicionamento atávico do Homo sapiens sapiens. Quem escreve a história é sempre o vencedor, usando, para isso, as suas idiossincrasias, enfim, as suas próprias ideias e motivações, mesmo que alterem, de forma anacrônica, o que de fato aconteceu.  A verdade realmente não importa. Como dizia Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, “uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade”. De tanto repetirem que não existiu uma Ditadura, que torturava e matava por crimes de consciência, muitos acabaram acreditando nessa pós-verdade.

Ainda bem que existem historiadores bem intencionados — bem diferentes de mim —, homens que ainda acreditam no gênero Homo, investigadores da realidade nua e crua desse universo em desencanto, seres humanos que, malgrado a corrente da barbárie antropofágica, ainda ousam refazer os caminhos históricos até o ponto em que a mentira surgiu para alterar a narrativa de fatos que já haviam ocorrido.

Mas não sei se, algum dia, conseguiremos evoluir tanto assim. Sempre atribuiremos, em alguma medida, os nossos afetos, ideias e sentimentos aos fatos passados, vendo-os sob a perspectiva atual, a única que conhecemos e vivenciamos. Acho improvável, aos historiadores e aos humanos em geral, dissociarem-se da subjetividade do seu próprio tempo, nem sempre apta a explicar o evento do passado. Contudo, é libertador, para um ser humanos simples, como eu, imaginar que a história deve estar condicionada à subjetividade do tempo em que foi efetivamente vivida, e não aos desígnios e idiossincrasias do presente.

Parabéns aos historiadores desse mundo — apenas aos que não se vendem aos poderosos! —, por lançarem as suas luzes sobre o nosso passado!

Isso me torna muito menos arrogante e muito mais humano. Nós, Homo sapiens sapiens, construímos a história da humanidade num constante movimento, quase pendular, em que saltamos no abismo, algumas vezes descemos à barbárie, para aprender a voar sem temer as relatividades do nosso tempo!

Nenhuma verdade, enfim, é absoluta, mas relativa ao momento histórico em que foi construída. Ainda valerão, amanhã, as minhas verdades de hoje? Só amanhã terei instrumentos para avaliar. As incertezas de hoje já me bastam!

Por isso, só espero que as novas ideias — as que transformam o mundo, depois de serem esmagadas cem vezes pela intolerância — continuem a desfazer, como castelos de areia, as respostas que damos para perguntas que não fizemos.

O ser humano e sua mania de saber tudo... Mas esse é o preço da liberdade de expressão: demos voz aos idiotas e fomos condenados a escutá-los! Caminhamos para o Australopithecus afarensis!... Em breve, estaremos nas árvores...

JorgeAraken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário