Reencontrando o fio da meada...
Depois que abandonei o Direito e a Advocacia,
para me dedicar exclusivamente à literatura, comecei a desfazer, lentamente, as
infinitas memórias da minha vida, tentando transformar as experiências
traumáticas em maturidade, um saudável exercício para quem se aproxima do
flanco descendente da escalada, aquele instante em que começamos a descer a
ladeira e se inicia o lento e inexorável declínio do vigor físico, quando o
corpo já não acompanha os devaneios da mente.
Mesmo sem muitos leitores, continuarei nas
trilhas do bom e velho Rocinante, lutando contra moinhos de vento imaginários,
como fazia o engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha em seu amor por
Dulcinea del Toboso. Ser pobre, eu diria miserável, e ainda escrever — nesse
mundo de seres vazios, que não cultivam o hábito da leitura — é bem pior,
talvez, do que desafiar moinhos de vento.
Apesar das forças invisíveis que me levam a
desistir de escrever — e a falta de remuneração é a maior delas —, continuarei
sendo essa “metamorfose ambulante”,
indefinível, meio louco, por vezes insensato, que mistura Machado com Proust,
mas não se esquece de Sartre; que almoça com Victor Hugo e janta com Kafka; que
sonha com Freud e se alimenta de Saramago, mas celebra com Vinícius a “Receita de Mulher”, e ainda sonha com
aquela “Mulher sem Pecado”, de Nélson
Rodrigues, trajando, quem sabe, o seu lindo “Vestido
de Noiva”.
Acreditem, amigos leitores, mas eu realmente sobrevivi
ao “Ulisses”, de James Joyce; fui ao “Inferno” e ao “Purgatório”, com Dante; conheci o amaldiçoado “Doutor Fausto”, de Goethe, e o doce “Menino de Engenho”, do tristemente
esquecido José Lins do Rego.
Confesso,
porém, que aprendi a ler nos gibis e nos contos de Perrault, de Andersen e de
Grimm, para viajar com o “Pequeno
Príncipe”, nas asas do “Correio do
Sul”, na doce companhia de Saint-Exupéry e seu pequeno avião. Na verdade,
só queria passar “Cem Anos de Solidão”
com os Buendía, de Gabriel García Márquez.
Com ou sem leitores, continuarei a expiar os
meus “crimes”, para, quem sabe,
receber o merecido castigo, com Dostoiévski. Não quero ser pretensioso, nem
arrogante, mas eu gosto mesmo é da “Ilíada”
e da “Odisseia”, e não do Instagram ou das fotos banais e
narcísicas da última balada.
A culpa, bem o sei, é do meu pai e da minha
mãe, que me enfiaram nos livros ainda criança, “punindo-me” com educação e
cultura! Agora é tarde para esquecê-los.
Eu quero mesmo é me deliciar com a “Divina Comédia”, aprender, com Ivan
Fiodorovitch Karamazov, que sou “plenamente
mortal”, que não existe ressurreição, para poder, enfim, aceitar a morte
com altivez e tranquilidade. Compreender, finalmente, que não há razão para
reclamar que a vida é um só instante e que, por isso, eu devo amar de verdade,
sem esperar recompensa. Amor é jogo de sedução, e não de poder!
Prefiro viver as angústias de “Guerra e Paz”, com Leon Tolstói, a perder tempo com as “delícias” do
Michel Teló. Amo Baudelaire e Rimbaud, não tolero mexericos de aldeia e
desprezo quem procura a minha alma no tênis que calço, imaginando que os
caminhos da minha existência foram traçados pela Nike, em alguma fábrica da
China.
Que me perdoe o Rei Roberto Carlos, mas “esse cara sou eu”, ser humano cheio de
falhas, quase sempre solitário, permanentemente insatisfeito, que nasceu nos
livros e vai morrer entre eles! Estou longe da beleza de Apolo, não tenho a
força de Hércules, nem conheço os caminhos do coração feminino e, muito menos,
os segredos da sedução! Não tenho respostas, e mal comecei a descobrir as
perguntas! Mas “esse cara sou eu”: miserável,
mas não escravo; torturado e fatalista, mas não iludido.
Assim, taciturno e azedo, doce a amargo,
triste em alguns dias, alegre em outros, seguirei escrevendo, mesmo que as
minhas palavras não encontrem leitores, como acontece quase todos os dias,
nesse tempo de memes e pequenas
mensagens de 140 caracteres.
A minha página pública do Facebook (“Contos e Crônicas do Araken”), até aqui um completo fracasso
(apenas 181 seguidores), permanecerá viva até o meu derradeiro suspiro, ainda
que seja eu mesmo o meu único leitor.
Em que pese andar desestimulado, agradeço aos
181 amigos que a curtiram, não com a intenção de me lisonjear, algo que
definitivamente não mereço, mas para acompanhar os meus escritos e mal
escritos.
Depois de dois meses sem publicar,
reencontrei o fio da meada, que se perdera na gravíssima depressão que me
acomete. Se essa doença insidiosa se curou? De modo algum! Na verdade, nem a
tratei. As minhas resistências em buscar ajuda especializada — e só um
psiquiatra resolveria — são bem maiores do que a vontade de curar a depressão. Escrevo
para liberar a peçonha e não morrer envenenado. Só escrevendo, não desisto de
viver...
A vida chega ao seu fim, triste e inexorável,
quando nos acomodamos ao tédio e vivemos na varanda, sentados em velhas cadeiras
de balanço, abandonados pelos parentes e amigos, esperando o nosso enterro
passar. Acho que cheguei a esse ponto... Luto todos os dias contra o meu abismo
insondável... Sempre existe uma ponte para pular, mas a literatura me dá asas
para voar...
Jorge Araken Filho, apenas um
coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.
Post Scriptum: a
ilustração faz parte do espetáculo “Fio
da meada”, de Luiz Pizzaro, também chamado de “instalação performática” pelo próprio Autor, já que mistura artes
visuais, literatura, música e vídeo numa profunda reflexão sobre o processo
criativo.
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