O que significa ser humano?
Pense na sua própria resposta e conhecerá a
maior das nossas feridas narcísicas. A verdade, triste e inevitável verdade, é que
somos todos bárbaros!
Pior do que o incivilizado de outrora, o
homem da antiguidade, que tratava como justo e divino o massacre de seres
humanos e a sua conquista pela força — e o fazia sem hipocrisia ou dramas de
consciência —, é o homem pretensamente civilizado, que tem plena consciência da
sua própria maldade e ignomínia e, a despeito disso, nela encontra inesgotável
fonte de prazer.
A tal ponto chega o narcisismo hipócrita do
homem civilizado, que ele chega à desfaçatez de chamar de bárbaros os que assim
procediam em outros tempos, sem perceber que a matança atual é ainda mais
ignominiosa do que a de outrora. Ao menos, era de se imaginar que a civilização
o teria suavizado... Eles não sabiam que era incivilizado matar, para subjugar
outros povos; nós já deveríamos saber...
Contudo, continuamos matando e mutilando sem
piedade, quase sempre por interesses econômicos, embora os pretextos variem
conforme as circunstâncias.
Para justificar a carnificina, uns atribuem a
esse Deus imaginário, que não se defende nem reage, a culpa por suas próprias pulsões
destrutivas, e ceifam vidas em nome do divino, chamando a essa barbárie de “guerra
santa”; outros preferem chamar de terroristas os humanos da periferia do
capitalismo, os poucos que desafiam os seus interesses hegemônicos.
O que é mais diabólico, nisso tudo, é que
temos plena consciência de que a civilização, modulando a pulsão de morte,
deveria refrear a barbárie que corre em nossas veias. Ao contrário, sentimos
enorme prazer com o sangue correndo no asfalto...
Os antigos, ao menos, eram incivilizados e
selvagens, mas não possuíam qualquer consciência disso. Não matavam por
deleite, mas porque, antes da civilização, essa era única forma de lidar com os
conflitos. Eles nasciam como as feras, para matar ou morrer, para aniquilar
seus inimigos sem dó ou remorso. Nesse tempo, era com a morte do inimigo,
precipuamente, e não com diálogos e concessões, que se apaziguavam as
discórdias. Eles eram brutos em seu estado natural. A força e as emoções
governavam a razão nesse mundo de selvageria. Qual é a nossa desculpa?
Somos selvagens como as hienas, só que, ao
contrário delas, matamos por deleite, intolerância ou interesse, e não para
comer. Também “rimos” como as hienas, depois de uma boa matança, mas fingimos
não perceber que a falsa risada daquele mamífero — um símbolo de conquista
territorial que nasce do instinto, e não da razão —, é completamente dissociada
da carga emocional de prazer consciente que experimentamos ao aniquilar,
humilhar e sobrepujar outro ser humano.
Antes da civilização, não tínhamos
consciência da nossa infâmia. Éramos bárbaros sem sentimento de culpa,
mal-estar ou neurose. Em algum lugar do aparelho psíquico, talvez no ego conciliador, por influência do superego, pulsava um sentimento de
justiça e nobreza, que estabelecia o assassínio do adversário como algo
natural. Hoje, despidos da ética cavalheiresca da Idade Média, temos plena
consciência da nossa própria ignomínia, e a praticamos deliberadamente, não
raro com desprezo à vida de quem ousa desafiar os nossos desejos e interesses
mesquinhos. Somos bárbaros apesar da culpa que se transforma em mal-estar e
neurose: o sangue que derramamos nos oprime a consciência, mas, paradoxalmente,
não nos torna menos sanguinários.
Com o processo civilizatório, parte da agressividade
do homem primitivo converteu-se em sentimento de culpa, engendrando, no
inconsciente, o fenômeno da autorrecriminação — ou autodifamação, como prefere
Lacan —, que se expressa no ego como mal-estar
e melancolia. Contudo, apesar da coação que o processo civilizatório exerce
sobre o homem, este sentimento de culpa que o superego derrama sobre o ego
— em que pese a sua imensa carga repressora — não tem energia suficiente para
conter as pulsões ligadas à barbárie. Não chego a dizer que o estimula. O que
me arrisco a inferir, com o risco da minha própria imersão nesse processo, é
que os bárbaros sem culpa — de outros estágios da evolução humana — converteram-se
nos bárbaros neuróticos do nosso tempo, esses que carregam o peso da
automutilação emocional, mas se tornam ainda mais cruéis do que os seus
ancestrais. Ter consciência da própria maldade e, ainda assim, praticá-la é a
pior das vilanias.
Ainda prefiro os bárbaros de outrora, que
matavam e mutilavam sem consciência, agindo por instinto de sobrevivência, como
as onças e os leões, ao humano pretensamente civilizado, que mata e mutila com
consciência da sua própria ignomínia.
Éramos bárbaros por falta de escolha, naquele
estágio evolucionário; agora, somos bárbaros por vontade ou capricho, a
despeito da culpa engendrada pelo processo civilizatório.
A pergunta que me incomoda é justamente essa:
quem são os bárbaros?
Somos todos nós...
A civilização não suavizou o homem nem
exorcizou os seus demônios interiores! Entre o sanguinário mais sádico e o
cavalheiro civilizado não há nada além dos desejos. Frustre-os, contrarie a
energia pulsional represada no inconsciente, e o homem cordial se torna a besta
do apocalipse:
“Homo homini
lupus”!
— dizia Plauto.
Não sou assim tão pessimista... Até aceito
que esse destino cruel, em um futuro qualquer, haverá de mudar. — Quando? —
Você me pergunta. Quando o abismo engolir o penúltimo dos Homo sapiens. Desse dia em diante, o derradeiro hominídeo desse
planetinha azul, enfim, poderá viver em paz consigo mesmo e em harmonia com a
natureza, até que os vermes e bactérias devorem as suas carnes putrefatas.
“Os
convidados, assim como os peixes, começam a cheirar mal depois de três dias” — teria
dito Benjamin Franklin e, se não o disse, deveria tê-lo dito.
Depois de três dias de convívio, meu nobre e
sábio Ben Franklin, a podridão dos convidados — capturada desde o início pelos
sentidos, mas negada inicialmente pelo ego
— passa a se confundir com o mau cheiro que eu próprio exalo. De tanto cheirar
merda, deixo de sentir asco e simplesmente me conformo com a vida no esgoto.
Quer uma prova do que estou dizendo?
Tranque-se no banheiro, em seguida ao número dois, e conte no relógio em quanto
tempo o seu olfato se acomodará à nova realidade...
Sob o perfume da civilização, a humanidade
está apodrecendo! — Não se engane com esse cheirinho de sândalo: é apenas o seu
olfato acomodado, tentando ser gentil com o seu ego frágil e pleno de negações delirantes. A verdade, comodamente
negada pelo ego e, portanto, pelos
sentidos, é que o cheiro é de podridão...
O problema de se viver nesse esgoto é que, em
breve, deixaremos de sentir o cheiro da nossa própria merda. Muitos já se
conformaram...
Václav Havel, estadista e dramaturgo húngaro,
assim falava da esperança:
“O tipo de esperança sobre a qual
penso frequentemente,... compreendo-a acima de tudo como um estado da mente,
não um estado do mundo. Ou nós temos a esperança dentro de nós ou não temos;
ela é uma dimensão da alma, e não depende essencialmente de uma determinada
observação do mundo ou de uma avaliação da situação... [A esperança] não é a
convicção de que as coisas vão dar certo, mas a certeza de que as coisas têm
sentido, como quer que venham a terminar." (HAVEL, Václav, Disturbing the Peace, Londres e Boston: Faber and Faber,
1990. p. 181. Apud
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência
para uma vida sustentável. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Cultrix.
2002. p. 264).
Eu só queria ter a esperança de Václav Havel,
essa confiança quase delirante no futuro da humanidade. A transição para esse
mundo utopicamente sustentável esbarra no Homo
sapiens, a criatura que nasceu para se destruir.
Depois que pisamos no primeiro ombro, na
ilusão de subir mais alto, não saímos mais de lá...
A verdade, irrecusável verdade, é que, para
cada muro que derrubamos em nossa caminhada como espécie do gênero homo, dois outros são erguidos, e,
ironicamente, as novas barreiras se mostram progressivamente mais altas e
intransponíveis do que as anteriores. Transpor os muros que nós próprios criamos
é o nosso maior desejo; sabê-los insuperáveis, a maior ferida narcísica...
A pergunta que me faço, nesse momento da
vida, é difícil de ser respondida: haver perdido a cordialidade, na seleção
natural, foi uma virtude evolutiva ou defeito genético na linhagem do Homo sapiens?
A cada dia que passa mais me espanto com a
intolerância nas redes sociais! Tudo é desculpa para reduzir o outro a um
arquétipo universal do bem ou do mal, como se não convivessem, em todos nós, como
as duas faces de uma mesma moeda, as imagens arquetípicas de Deus e de Lúcifer,
o Arcanjo “Portador da Luz”. A um só
tempo, podemos ser o bondoso Dr. Jekyll e o odioso Mr. Hyde, os personagens —
dois homens de temperamentos opostos em um mesmo corpo — da obra “The Strange Case of Doctor Jekyll and
Mister Hyde”, de Robert Louis Stevenson, se você ainda não teve o prazer de
conhecê-los.
Tudo é motivo para esse “apartheid” virtual: a religião ou a sua ausência, a opção política
ou sexual, o time de futebol; tudo divide os homens, segrega os inconformados e
excluídos da fortuna ou desconectados dos padrões uniformes de beleza; qualquer
divergência basta para castrar os espaços de liberdade, reduzindo as pessoas a
categorias desumanizadas e excludentes, que se desconectam umas das outras.
Rótulos agregam cordeiros e segregam lobos...
Essa clivagem maniqueísta entre certo e errado, entre
bons e maus, entre o que é desejável para a humanidade e o que constitui o nosso
próprio projeto político ou ideológico — esse mesmo que tentamos impor a todos
— explica a nossa fantasia megalomaníaca de mudar tudo com o que não concordamos.
Essa mudança, porém, não a desejamos, necessariamente, para criar um mundo
novo, melhor e mais justo para todos, mas para criar um mundo à nossa imagem e
semelhança, que satisfaça os nossos próprios desejos. Ainda não fizemos a
verdadeira revolução, e já estamos brincando de Deus com as cordinhas do
destino alheio!
Dessas
certezas reducionistas, impossíveis de conviver harmônica e respeitosamente,
surgem os conflitos humanos, que nascem, como já disse, da clivagem maniqueísta
entre certos e errados, entre bons e maus, entre pecadores e ungidos com a
salvação; brotam as guerras e desavenças, os desencontros entre os desejos de
uns e outros. Instala-se nos seres humanos, ainda como consequência dessa renúncia
pulsional civilizatória, um mal-estar geral e disforme, que contamina o tecido
social, um eterno descontentamento com a alteridade, uma permanente inquietude
com as diferenças, algo do outro que esbarra nas minhas pulsões e desejos ou
algo meu que projeto no outro, para gratificar, ao menos parcialmente, as
pulsões e desejos a que me proíbo em nome da civilidade. Essa é a origem,
inclusive, dos preconceitos e da intolerância, que representam a projeção no
outro das zonas de sombra que nego em mim mesmo.
Guerra
é o conflito entre certezas que não podem conviver. E essas certezas, quando
despidas da carapaça de eufemismos e explicações fantasiosas, envolvem desejos
e pulsões que excluem o outro. É e sempre será o meu, depois o meu, em seguida
o que deve ser dos meus e, em algum lugar bem distante, que muitos chamam de
utopia da bondade humana, o outro, desde que, para acolher as certezas
narcísicas do outro e os seus desejos e pulsões, eu não precise abrir mão do
que é meu.
A
maldade é um dom universal, certamente desprezível, porém humano, assim como a
solidariedade! Ao contrário do que o senso comum indica num exame mais
apressado, o adjetivo "humano", quando qualifica a espécie "sapiens", do gênero "Homo", nem sempre tem
significado de bondoso e angelical. Aliás, foi o ser "humano", em sua
infinita arrogância, que concebeu a ideia de um Deus onisciente (que tudo
sabe), onipotente (que tudo pode) e onipresente (que está em todos os lugares),
como ele próprio, humano, pensa que é ou deseja ser. É tal a sua prepotência,
que ele se projeta no mundo como a imagem e semelhança desse ser divinal e utópico
que ele mesmo criou. A sua maior decepção é perceber que o "monstro",
neste caso o Diabo, convive com o "herói", também chamado de Deus, na
mente dos homens, inclusive dos mais castos e puros.
Lá
no fundo desse ser mesquinho que nos tornamos, a pouco e pouco, durante a
existência, sob essa máscara social de candura e hipocrisia, sempre queremos
levar vantagem em tudo. Diga o contrário, pense o contrário, mas não se esqueça
de cutucar as barreiras defensivas do seu ego.
Elas encobrem a realidade que você não tolera ver, o mundo obscuro que se agita
sob a superfície da consciência: o iceberg
que forma o seu aparelho psíquico não é, apenas, o que aparece no horizonte,
mas, sobretudo, o que se esconde sob a linha d’água. Você é o iceberg e, curiosamente, também o
Titanic...
O mito da cordialidade do povo brasileiro,
tão decantado em prosa e verso, não resiste ao mais breve passar de olhos pelo Facebook ou pelo Twitter.
A corrida para o avião, bem comum nos tempos
atuais, pode ser o signo mais eloquente da competição humana. Os assentos são
previamente marcados, mas, ainda assim, corremos para chegar antes. Parece
surreal...
Parece algo sem sentido, quase o Teatro do
Absurdo de Becket, Ionesco, Jean Genet ou Harold Pinter, mas é a realidade
opressiva desse universo em desencanto. Pessoas correndo de um lado para o
outro, quando poderiam caminhar e curtir a paisagem. Uma pulsão inconsciente,
mas absurda e inexplicável, para chegar a um assento que já estava marcado
antes de se iniciar a corrida.
É a competição atávica do gênero Homo, algo que perpassa o inconsciente
coletivo da espécie Homo sapiens
desde os seus primórdios. Foi competindo que superamos a seleção natural. Mas
algo se perdeu em nosso caminho evolutivo: a cordialidade.
Nesse jogo maniqueísta entre o desejo do bem
e a nossa inclinação para o mal, vamos caminhando em meio à ferocidade da
civilização moderna, que cultua a supremacia do individual sobre o coletivo,
numa competição em que o homem só é melhor quando supera o outro, e não quando
cria laços de interação solidária e criativa. Centrados em nós mesmos, não
percebemos, ou reprimimos no inconsciente, o mal que os nossos atos causam aos
outros, mesmo quando involuntários. Carregamos muitos dedos, apontando culpados
na alteridade, mas nunca nos olhamos no espelho.
O sombrio Leviatã de Hobbes, o homem lobo do
próprio homem, está em nossas escolas, mascarado no individualismo, na
superação do outro, no sucesso pessoal e na competição sem sentido. Entre
vencedores frustrados, eternamente insatisfeitos com as suas vitórias, e
derrotados ressentidos, eternamente infelizes com o fracasso, perdemos a
humanidade. Nada de cooperar, ser igual, mas de superar, ser melhor!
Solidariedade só no câncer e, mesmo assim, diante do túmulo!
É como a velha lenda dos seis indianos cegos,
os homens mais sábios da aldeia, que foram chamados para identificar um animal
desconhecido naquelas terras. Um deles, o mais velho, tocou a barriga do animal
e disse que era uma parede. O segundo tocou a tromba e concluiu tratar-se de
uma grande serpente. O terceiro, depois de tocar a orelha do animal, logo
afirmou que era uma vela de barco. O quarto, ao tocar a presa, disse que era
uma lança. O quinto homem, que segurou o animal pela cauda, afirmou que só
podia ser uma corda. E o sexto, finalmente, abraçou uma das patas e disse, com
ar de sabedoria, que era uma árvore. Nunca se uniram para ter a visão completa
do animal... Tratava-se, apenas, de um elefante.
Moral da história: muitos “sábios” discutem
sobre elefantes que nunca viram, e sempre acham que a verdade está do seu
lado...
Permanecer vivo, no mundo dos humanos, é mais
ou menos como sobreviver na Ilha perdida da série "Lost": começo a imaginar que os sobreviventes,
confinados com os seus próprios demônios, refletidos nos companheiros de
infortúnio, acabariam por revelar o pior de si e veriam o pior dos outros,
mostrando o que eram de verdade: feras ingratas, confinadas em suas prisões sem
grades.
Se pudermos vencer o outro na corrida para o
avião, por menos que ela tenha sentido, assim o faremos: nessa hora, nasce o
homem primitivo, e falam as pulsões destrutivas do Homo sapiens.
Como sempre digo, perdemos o verniz da
civilização!
No trânsito, não seria exagero reconhecer um
genocídio disfarçado de modernidade, uma competição desenfreada e neurótica
pelo espaço das ruas, uma corrida para ter a preferência e chegar alguns
segundos antes do outro. Ninguém percebe que o destino é sempre a morte, tanto
pior quando viajamos com pressa de chegar a lugar nenhum. Quanto mais rápido se
caminha, menos se percebe o percurso. E a vida, ironicamente, é o caminho, e
não o destino!
Nas calçadas, matam-se pessoas por bicicletas
e celulares, que são vendidos por alguns tostões a compradores pretensiosamente
"espertos", que acabam sendo vítimas da própria "esperteza"
mais adiante. Alimentam o "monstro" que um dia haverá de devorá-los...
Nos estádios, o jogo é o que menos importa;
na verdade é um mero detalhe nessa guerrilha sem causa a quem não é da minha
turma, a quem não é seguidor obcecado do mesmo clube. Isso é fanatismo, e não
esporte! Muitos sequer sabem o resultado da partida...
Os que tombam pelo caminho, vencidos pela
violência, transformam-se em estatística para os meios de comunicação. Surgem
especialistas em previsões do passado, profetas da tragédia acontecida, sábios
de gabinete que desafiam autoridades, questionam modelos, mas não oferecem
alternativas concretas, algo além das bravatas na televisão e nas redes
sociais.
Pessoas dignas, mas imaturas; indignadas, mas
tolerantes às suas próprias falhas, avessas ao espelho que revela além das
fantasias que alimentam sobre si mesmas; gente que troca ofensas por questões
mínimas, quase sempre falta de diálogo e, não raro, por simples arrogância ou,
talvez, para compensar a baixa autoestima. Surgem os seres messiânicos, heróis sem
caráter que, malgrado o absoluto desprezo pelo destino dos seus próprios
seguidores fanáticos, começam a receber a alcunha de “mitos”. Daí em diante,
até a mais proverbial das “cagadas” no mato se torna um feito glorioso desse
Macunaíma dos serviçais do poder e da barbárie. E tudo está perdido quando o
oprimido, abdicando dos últimos traços da sua própria dignidade, começa a idolatrar
o opressor... Perdoem-me os iludidos, mas eu não tenho ídolos.
Por mais que tente encontrar algum traço
humano em certas manifestações de agressividade gratuita, eu ainda me
impressiono com a obsessão preconceituosa de algumas pessoas nas redes sociais.
Percebo que ser humano não significa, necessariamente, ser sensível à dor do
outro.
Palavrões e ofensas que sepultam a interação
criativa, demonstrando que a falta de argumentos e, sobretudo, de civilidade e
tolerância pode levar à desconstrução do humano que havia em nós. Num simples
comentário, esvai-se a fraternidade e ficam os ódios por saciar.
“A crueldade
tem humano coração,
E tem a
intolerância humano rosto;
O terror a
divina humana forma,
O secretismo
humano traje posto.
O humano
traje é ferro forjado,
A humana
forma, forja incendiada,
O humano
rosto, fornalha bem selada,
Humano
coração, abismo seu esfaimado. “
(Uma Imagem Divina. Poema de William Blake,
in "Canções da
Experiência". Tradução de Hélio Osvaldo Alves )
Ao invés da interação criativa, que une os
contrários, revelando a diversidade, muitos preferem acirrar os conflitos entre
os seres humanos, aprofundando o fosso que nos separa em pobres e ricos ou que
nos define pela sexualidade, cor da pele, opção política ou religiosa e por
outras formas de segregação.
A visão multicultural, que transita pela
diversidade, não implica na aceitação cega do pensamento dominante, mas no
reconhecimento da dúvida como elemento essencial à evolução humana. Se os
homens não questionassem o conhecimento monolítico do seu tempo, ainda
estaríamos nas cavernas, imaginando que a Terra seria o centro do Universo, ou relegados
ao solo, acreditando que voar seria um sonho impossível.
Pessoas inocentes, manipuladas sem perceber,
aprisionam-se aos interesses da mídia e de políticos matreiros, quase sempre
alugados ao poder econômico. Julgam as atitudes e o caráter dos "amigos
virtuais" e ofendem a honra de autoridades que sequer conhecem, por
motivos que apenas supõem ser verdadeiros. E dizem amém a outros, não raro de
caráter duvidoso, chamando-os de “mitos”...
Muitos não passam de palpiteiros mal amados,
sem lastro intelectual e, muitas vezes, moral, gente tosca e de poucos
neurônios que não percebe a irrelevância dos seus comentários raivosos. Nada
acrescentam, nada constroem e ainda tentam desconstruir o que os outros fizeram.
Simples papagaios a repetirem impropérios que não compreendem por motivos que
desconhecem.
Mergulhados no próprio umbigo e bebendo o
veneno que destilam pela boca, sempre cheia de palavras alheias, buscam saciar os
seus desejos de reconhecimento e aceitação, menosprezando os que ousam viver a
felicidade que eles, os palpiteiros sem cordialidade, não alcançam. Tentam
reduzir o outro à sua própria estatura, para dar significado à sua vida
esmaecida e sem cores.
Quando encontram eco para os seus gritos e
suposições vagas, sequer percebem que o "amigo" virtual, que curte ou
compartilha as suas tolices, possui interesses inconfessáveis, quase sempre
econômicos, para fazer ecoar a mentira que o inocente útil repete com a
aparência de verdade.
Cheios de certeza, enfastiados do próprio ego embolorado, opinam por ouvir dizer
que tal pessoa é a personificação do mal ou que determinado político é
intrínseca e inevitavelmente corrupto. E outro — sabe-se lá por que mecanismo
obsessivo e maniqueísta — é representado como a humanização do divino, sempre
certo e bondoso.
Tratam os políticos como pais e mães da
pátria, que devem ser religiosamente seguidos ou visceralmente odiados. Não há
o meio termo onde transitam os humanos, com falhas e virtudes, o espaço do
confronto dialético para a construção de algo melhor.
Quando lhes perguntamos por que chegaram a
essas conclusões, respondem, pela boca e ouvidos alheios, que os jornais
disseram isso e aquilo ou — confessam alguns — por terem lido no Facebook, o guardião das certezas, o
repositório das verdades eternas.
E essas versões da realidade, filtradas pela
maledicência ou, não raro, por intenções escusas, passam a ser a única
realidade possível para essas pessoas manipuladas e egocêntricas, que se encastelam
numa visão excludente e preconceituosa da realidade que não conhecem.
Essa dicotomia maniqueísta, em que tudo que
vem de um lado é bom e tudo que vem do outro é mau, além de egocêntrica e
narcísica, revela uma obsessão pelo controle da verdade. Estou sempre certo, e
todas as pessoas que sigo com fé obscurantista personificam a santidade!
Iludidos por essa sensação de superioridade
intelectual e moral, muitos fazem da mente um depósito de suposições alheias,
raramente transformadas por reflexão própria. Simplesmente arquivam verdades e
certezas! Em um dia de fúria, tiram-nas do armário, despejando nas redes
sociais o seu doce veneno.
Essas personalidades egocêntricas precisam de
tratamento psicológico e, talvez, psiquiátrico, para os mais empedernidos!
Se você tem sempre muitas certezas, acha que
está sempre certo, que as suas opiniões e a sua ideologia são sempre as
melhores, que o seu caráter é digno de canonização, que os outros estão sempre
errados, quando não refletem o Narciso que você vê no seu espelho, vou revelar
um segredo: você raramente está certo! Isso é Transtorno de Personalidade!
Pense bem, isso não mata, mas redime...
Você já percebeu que é sempre o mais honrado
dos homens? Que está sempre certo? Que todos estão errados ou merecem as suas
censuras morais e intelectuais?
Sabe o que é isso?
É megalomania, mas conhecida como Transtorno
de Personalidade Narcisista.
Ficou complicado?
Eu traduzo: é esse delírio ou fantasia de
onipotência, grandeza, poder e relevância que se descola da realidade medíocre
da sua vida interior, exagerando crenças, virtudes e competências que você não
possui.
Pena que a seleção natural, tentando nos
tornar mais fortes e resilientes, eliminou a cordialidade dos nossos genes,
criando essa mutação diabólica chamada Homo
sapiens.
O que é o homem cordial? Um ser ameaçado de
extinção... Uma espécie que cultua deuses e santos, para que perdoem os pecados
e abominações que ela sente prazer em praticar, salvando-a do inferno que
mereceu, só pode ter um futuro sombrio.
Ser humano é execrar, hipocritamente, o
demônio que mata por prazer, que destrói a natureza, que faz da certeza uma
forma de exclusão do outro, sem perceber que essa criatura abominável e
arrogante, refletida no espelho, é a imagem decadente do próprio Homo sapiens.
Não me adapto a esse mundo enfermo, que mata
em nome de Deus, que ceifa vidas por intolerância à alteridade, que tortura por
preconceito, que não percebe que matar outro não elimina o cara do espelho,
esse ser estranho que negamos em nós mesmos, esse espírito de sombras eternas
que, nos rompantes de ódio mesquinho, decidimos matar, quando o vemos refletido
no outro. Aniquilamos o próximo na tentativa ilusória de quebrar o espelho onde
nos vemos refletidos ao ver o outro, imaginando, nessa carnificina sem sentido,
extinguir, nesse outro, o que na verdade é nosso.
A nossa sorte é que nascemos com prazo de
validade, e a morte nos salva dessa existência de corrupção, guerras,
exploração do homem pelo homem, desigualdade, pobreza e injustiça social. Imagine
se fôssemos eternos!...
Ao menos no caixão, se isso me serve de
consolo, todo mundo é igual: ricos e pobres apodrecem do mesmo jeito; os vermes
não escolhem as suas refeições pela conta bancária...
O problema dos humanos, raiz de todos os conflitos
e guerras, é que não existe um Planeta para cada um!
Jorge Araken Filho, apenas um
coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.
Post Scriptum: a
ilustração abaixo, bem conhecida de todos, é o “Homem
Vitruviano”, de Leonardo da Vinci, um desenho de 1490, inspirado em estudo do
arquiteto romano Marcus
Vitruvius Pollio, que, no século I a. C, em um Tratado de
Arquitetura, descreveu, através de modelos matemáticos, as proporções ideais do
corpo humano, o ideal clássico de beleza, a “divina proporção” ou “proporção
áurea”. Da Vinci, no final do século XV, transpôs o modelo matemático de
Vitruvius para o desenho.
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