segunda-feira, 1 de maio de 2017

Murmuramos todos ao mesmo tempo

Murmuramos todos ao mesmo tempo

Por que falamos e escrevemos tantas tolices, quase sem notar que, ao mesmo tempo, outras pessoas também falam e escrevem as suas próprias tolices?

De fato, raramente desejamos ler as tolices alheias, embora alimentemos uma grande mágoa, quando o outro nos retribui com o mesmo desinteresse em relação ao que escrevemos.

Com a fala acontece algo ainda mais absurdo e surreal: murmuramos todos juntos, um sem compreender o murmúrio do outro.

Você sabe por que falamos ao mesmo tempo em que as pessoas com quem supostamente deveríamos dialogar? Creio que esse tipo de situação já aconteceu em sua vida. Aquele instante em que todos falam ao mesmo tempo, tão senhores do próprio argumento, tão plenos de certeza narcísica, que escutar o outro parece perda de tempo.

Contudo, parece óbvio, ao menos para um tolo como eu, que a arte da conversa, tão antiga quanto o Homo sapiens, deveria basear-se na fala seguida do silêncio necessário à escuta do outro. Mas não é assim que agimos... Eu, pelo menos, raramente agi assim na minha vida. Confesso que já fui muito arrogante nas minhas opiniões formadas sobre tudo, principalmente quando tratava de assuntos que não conhecia. Quanto menos conhecia o assunto ou a pessoa de quem se falava, mais certeza eu tinha...

Depois de mergulhar na lama a minha autoestima, acho que não sei de mais nada...

Com certa dose de incredulidade, mas sem a mente fechada à negação absoluta, tento ficar aberto à descoberta dos meus erros e enganos, das minhas palavras sem sentido, dos meus limites intelectuais.

Agora, um pouco mais louco, deixo que todos tenham razão. Já não me importa estar certo... Se eu estiver errado, foda-se! Se for o outro a vociferar tolices, foda-se também... Esse Planetinha azul continuará girando em torno do sol, e não do meu umbigo, pouco importa quem esteja eventualmente certo ou errado. Uma hora serei eu, outra você...

No diálogo entre os personagens Estragon e Vladimir, na Peça “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, encontrei a melhor resposta:

“ESTRAGON. - Entretanto, tentemos falar sem exaltarmo-nos, já que somos incapazes de estarmos calados.
VLADIMIR. - É verdade, somos incansáveis.
ESTRAGON. - É para não pensar.
VLADIMIR. - Está justificado.
ESTRAGON. - É para não escutar.
VLADIMIR. - Temos nossas razões.
ESTRAGON. - Todas as vozes mortas.
VLADIMIR. - É como um ruído de asas.
ESTRAGON. - De folhas.
VLADIMIR. - De areia.
ESTRAGON. - De folhas.
(Silêncio)
VLADIMIR. - Falam todas ao mesmo tempo.
ESTRAGON. - Cada uma para si.
(Silêncio.)
VLADIMIR. – Melhor, cochicham.
ESTRAGON. - Murmuram.
VLADIMIR. - Sussurram.
ESTRAGON. - Murmuram.
(Silêncio)
VLADIMIR. - O que dizem?
ESTRAGON. - Falam de sua vida.
VLADIMIR. - Não lhes basta ter vivido.
ESTRAGON. - É necessário que falem.
VLADIMIR. - Não lhes basta tendo morrido.
ESTRAGON. - Não é suficiente.
VLADIMIR. - É como um ruído de plumas.
ESTRAGON. - De folhas.
VLADIMIR. - De cinzas.”
(BECKETT, Samuel. Esperando Godot, Segundo Ato).

Só agora — tarde demais, talvez, para recompor os elos perdidos da minha existência fútil — eu entendo essa pulsão incontrolável que me leva a falar demais, a escrever tantas tolices; pior que isso, entendo a raiz dessa obsessão por falar ao mesmo tempo em que as pessoas com quem converso: é para não pensar, não escutar as vozes mortas do meu inconsciente. O meu medo é saber que elas estão vivas...

E reparem que eu já havia lido a Peça de Beckett há muitos anos, antes, contudo, de ter o mínimo necessário de maturidade para entendê-la.

Teatro do absurdo? Nem tanto! Agora, com o peso dos anos, finalmente comecei a esperar Godot...

Como disse Estragon a seu amigo Vladimir,

“Todos nascemos loucos. Alguns continuam sendo.”

Eu não quero mais deixar de ser...


Jorge Araken filho, apenas alguém que fala e escreve para não escutar nem pensar.

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