domingo, 31 de julho de 2016

Não esqueça seu coração com ninguém!

Não esqueça seu coração com ninguém!

O que mais dói? O saber da ausência irremediável do ser amado, quando o amor por ele ainda não se foi, ou a certeza de que ele a esqueceu?

Vou mudar a pergunta: você se sente invisível, como se não existisse para ele? Tem a nítida sensação de abandono, de ser rejeitada, física e emocionalmente, como se apenas os desejos e problemas dele importassem? Você é sempre a primeira ligar e a última a desligar o telefone? A primeira a procurá-lo nas redes sociais e a última a dizer que precisa sair?

O que isso significa?

Que você tratou como amor verdadeiro o que nunca passou de um jogo de poder, uma farsa para capturar a sua carência afetiva!

E se o amor for mesmo um jogo? Você já se perguntou?

Vou ainda mais longe: sendo um jogo, é um jogo de poder? Manipular as emoções seria a primeira regra desse jogo de cartas marcadas?

Vamos imaginar que sim... É bom refletir fora do senso comum.

Sendo um jogo de poder, dar a primeira cartada afetiva significa entregar o domínio da partida? Em outras palavras, quem primeiro demonstra afeto cede o controle do jogo ao outro?

Antes de responder, pense nas relações que fracassaram em sua vida. Com elas em mente, responda a si mesma as perguntas que vou fazer:

Invariavelmente, você era a primeira a ligar ou enviar mensagens e a última a se despedir? Dava presentinhos nos aniversários e ocasiões especiais, mas ele raramente trazia algo, mesmo podendo? Lembrava-se das datas importantes, e ele se fazia de esquecido? Quando seus olhos se cruzavam, você achava romântico ir ao encontro dele primeiro? Sempre o beijava, mesmo quando ele não tirava os olhos da periguete na fila do cinema? Quando um beijo lhe parecia um presente especial da parte dele, você se insinuava com a sutileza de um elefante, fazendo boquinha sensual e carinha de pidona? Na hora do sexo, você abanava o rabinho para ele, como uma cadela no cio? Estava sempre disponível, buscando encontrar nele o afeto perdido, mesmo quando o via tentando fugir, sem você, para as mil e uma atividades que ele adorava despejar em sua frágil autoestima?

Quando você agiu assim, quem parecia mais frágil e carente, sempre entregando as cartas ao outro? Era você mesma, eu sei! Você entregou o jogo, revelou todos os ases que deveria esconder na manga.

Sabe o que faltou nesse jogo? Amor próprio! Você só estava disponível demais para amores de menos. Quem se trata pateticamente, como você, acaba se tornando o bufão no jogo do amor. Quem muito mendiga afeição recebe apenas migalhas!

Mas quem é esse cara para falar comigo assim? — Você deve estar pensando com os seus botões.

Ressentida com o passado, necessitando de uma escuta piedosa para a sua autocomiseração, você começa a achar que estou sendo frio com os seus sentimentos mais nobres. — O amor é assim mesmo, nem sempre justo, nem sempre fácil, mas não pode ter regras —, você me responde, tentando salvar a dignidade que ainda lhe restou.

Minha querida leitora, vá devagar com o andor, que o santo é de barro! Entenda primeiro o caminho a que desejo levá-la, para depois me julgar. E não é para o caminho das relações mecânicas e utilitárias que desejo convidá-la.

Só reduzindo seu pensamento ao absurdo, porém, posso revelar o peso da crueldade que ele derrama sobre você.

As relações humanas, quando se transformam em jogos de poder, deixam de ser amor e se tornam jogos de guerra.

Antes de entregar as suas cartas ou de escondê-las, veja se vale a pena jogar. Enquanto o amor for encarado como um jogo de poder, sempre haverá dominantes e dominados. Não preciso dizer quem sofre mais, quando as guerras terminam... E é sempre o vencedor que conta a histórias; ele é sempre o herói...

Se você sempre levou a pior, sempre acabou com as piores cartas nas mãos, lembre-se de que, se houve um derrotado, no caso você mesma, o vencedor era seu adversário, e não amante; era um jogo de poder, e não de amor!

No jogo, os seres humanos são antagonistas, e não parceiros: um deseja a derrota do outro, enfim, a submissão do outro à sua própria vontade! Ninguém joga para perder! Se for esse o seu perfil de amor ideal, vá em frente, mas leve Sun Tzu e a “Arte da Guerra” com você... Quando perder esse jogo de cartas marcadas, não culpe o destino, nem derrame sobre mim a sua autopiedade!

Contudo, se não for esse o amor que você persegue, desarme-se, e não espere por ninguém.

O ex-amor, que nos dilacerou o coração, nem sempre volta do Hades, para rasgar as nossas cicatrizes! Quase sempre permanece por lá, assombrando outras pessoas iludidas e cheias de expectativas, como nós.

Carentes de afeto, desenganados pelo abandono que escarnece das virtudes irreais que imaginávamos ter, desiludidos pelo pé na bunda que expõe o nosso amor próprio ao degredo, alimentamos a ilusão de que o ex-amor, depois de nos repudiar ou trair (ou ambos), haverá de voltar de cabeça baixa, rastejando e sofrendo. Mas isso raramente acontece, e temos que lidar — sozinhos — com a dor da separação. Não somos insubstituíveis no coração de ninguém, nem no dos amantes, nem no dos filhos e parentes mais próximos.

Quando a certeza da nossa própria banalidade ensaia seus passos, para invadir a consciência, simplesmente negamos a realidade, imaginando que somos imprescindíveis à existência de quem nos abandonou. Idealizamos que o objeto do nosso amor, num dia de iluminação e corroído pela dor, haverá de perceber que somos insubstituíveis e santificados. Reconhecerá, enfim, que a nossa fidelidade canina — afetos (sentimentos e emoções) que lhe oferecemos sem exigir nada em troca, nem respeito — deve ser recompensada com migalhas de amor piedoso. Nesse instante, quedará arrependido do mal que nos causou, valorizando, assim, o sentimento de devoção que lhe dedicamos, não por amor a ele, mas por desamor ao que somos. Realmente dói perceber que fomos trocados assim tão facilmente.

Sentirmo-nos invisíveis e desprezados, sem valor para novas conquistas, é uma forma imatura de lidar com o medo do fracasso: transferimos para outras pessoas a responsabilidade pelo nosso próprio destino, iludindo-nos com a ideia de que somos grandes guerreiros, cheios de virtudes incomuns, embora a cegueira do outro obscureça os seus olhos ao reconhecimento do nosso heroísmo arrebatado e bondade sacrossanta. Enfim, é triste perceber que não éramos a última coca-cola gelada no Deserto do Saara... Havia outras, ainda mais geladas, sem falar das fantas e guaranás...

O ser “odioso” e “desprezível” — mas contraditoriamente amado — que nos abandonou ou traiu não foi tão crápula assim, se nos enxergarmos sob uma perspectiva menos condescendente e autopiedosa. É impossível mudar o outro — nem devemos perdoá-lo —, mas podemos nos construir até o suspiro final, se começarmos a autoanálise pelo que negamos em nós mesmos de forma tão obstinada, pelo que nunca falamos conosco, quando estamos diante do espelho, pelo que tanto desprezamos nas pessoas que nos rodeiam. Nesse olhar de desprezo e ressentimento que lançamos sobre os outros nos encontramos.

Quando nos vemos solitários, depois da despedida, quando percebemos a facilidade com que as pessoas amadas desistiram de nós, o único remédio, para lidar com a dor do abandono, serenando as memórias nostálgicas, é deixar de negar a realidade e duvidar das nossas ações e reações diante do mundo. Olhar para dentro e não para fora.

Nós mesmos, enquanto nos posicionamos como seres incompletos em busca da metade que nos falta, enquanto buscamos essa tal felicidade no outro, podemos afastar as pessoas que verdadeiramente nos amam, alimentando a ilusão autopiedosa de que foram elas que nos abandonaram. Não somos vítimas inocentes, mas o nosso próprio carrasco.

Mas agora é tarde: ele se foi e, com ele, a nossa autoestima...

Querida leitora, enquanto nos importamos com a volta do outro ou com o seu sofrimento, ainda não superamos a sua ausência.

Prefiro não me importar com o outro e menos ainda com a sua felicidade ou infelicidade sem mim. Não quero ser prisioneiro do ódio nem do ressentimento por alguém que se foi por vontade própria ou porque não soube agir com maturidade.

Que seja feliz longe de mim!

Ainda bem que os fantasmas do passado raramente voltam... Isso não passa de um desejo reprimido no inconsciente pelo nosso ego crispado de dor. E só dói porque o amor fica estrangulado entre a certeza da ausência definitiva do outro e o saber de um amor que ainda não se foi.

O que mais dói não é o saber da ausência irremediável do ser amado, quando o amor por ele ainda não se foi, nem a certeza de que ele me esqueceu; o que mais dói é viver refém de uma ilusão, eternamente à espera desse alguém que não irá voltar e, mesmo que voltasse, retornaria como farsa.


Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.


O último adeus

O último adeus

— Não espere por mim, nem nos seus sonhos mais infantis, Pierre de Creveux!

— Mas eu a amo, Rosalinda! Eu a amo mais do que a mim mesmo!

— Esse é o seu maior defeito: amar-me mais do que a si próprio... Não acredito no amor de quem não se ama. Você busca em mim o amor que não tem por si próprio, vendo-me como espelho do ser ideal que não consegue ser.

— Você me completa, Rosalinda! É por isso que a amo tanto.

— Cansei de seres incompletos, Pierre! Pessoas assim, mutiladas e carentes, sugam de mim os pedaços que completam o quebra-cabeça das suas emoções. O que eu ganho ao doar a você parte de mim mesma? Nada! Apenas me desconstruo aos poucos, enquanto você joga pelo ralo o que tirou de mim.

— Um dia você voltará de joelhos, Rosalinda! Não despreze quem a ama.

— O pior tolo é o que passa a vida inteira se enganando...

— Só o tempo dirá...

— Abrace-me sem chorar, Pierre! O nosso show já terminou...

Você sabe tanto quanto eu,

“(..)
Vamos voltar à realidade
Não precisamos mais
Usar aquela maquiagem
Que escondeu de nós
Uma verdade que insistimos em não ver

Não adianta mais
Chorar o amor que já tivemos
Existe em nosso olhar
Alguma coisa que não vemos
E nas palavras
Existe sempre alguma coisa sem dizer

E é bem melhor que seja assim
Você sabe tanto quanto eu
No nosso caso felicidade começa
Num adeus

Me abrace sem chorar
Sem lenço branco na partida
Eu também vou tentar
Sorrir em nossa despedida
Não fale agora
Não há mais nada
O nosso show já terminou”
(Roberto Carlos/Erasmo Carlos)

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.


sábado, 30 de julho de 2016

Existo, mas não sou!

Existo, mas não sou!

Sei que muitos vão estranhar a afirmação inicial, mas preciso fazê-la, ainda assim. Eu já existia bem antes de ser! De fato, ainda não me construíra como sujeito, ainda não era o que fiz ou deixei de fazer de mim — nem para o bem, nem para o mal —, mas já existia como vida humana, enfim, já experimentara o impulso biológico que define a existência.

Para Jean Paul Sartre, a existência precede a essência. Inicialmente um nada, o homem vai construindo a si mesmo à medida que existe, moldando, assim, o seu próprio destino e se projetando no mundo. Ele é aquilo que se projeta no futuro e tem consciência de estar se projetando nesse futuro. De fato, para Sartre, o homem é o que faz de si mesmo:

"O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo."(SARTRE, Jean Paul. “O Existencialismo é um Humanismo”. A versão consultada é uma tradução de Rita Correia Guedes para a Obra “L’Existencialisme est une Humanisme”, Les Éditions Nagel, Paris, 1970. p. 04).

Ao caminhar nas dunas de Nida, na Lituânia, em 1965, Sarte contemplava a sua própria sombra nas areias do deserto, indicando que as nossas escolhas se projetam sobre os outros, construindo o que somos e nos trazendo a responsabilidade pelos nossos atos.

À medida que projetamos as nossas escolhas no mundo, vamos construindo a nossa própria existência.

E assim, iluminando o nosso próprio desamparo, vamos construindo o caminho que haveremos de trilhar, sempre sedimentado pelas escolhas inevitáveis que nos revelam a nossa própria essência.

É inevitável que as escolhas que faço me levem a mim mesmo, forjando as minhas ações e reações diante do mundo. Sou o que escolhi ser, e de mim mesmo não posso me salvar.

Esse é o preço que pago por me tornar o que sou. Mas é a oportunidade, também, de ser visitado pelo imponderável e caótico da existência humana ou, trabalhando sobre o meu self, de mudar as escolhas que podem construir um novo caminho. Caráter e temperamento, em certa medida, estão nesse processo de construção e reconstrução progressiva da minha identidade. Um grãozinho de amor aqui, um cadinho de solidariedade ali — ética e mente aberta em todos os passos —, e terei construído em mim a mudança que desejo para os outros.

Nascemos todos perdidos e, com um doloroso e contínuo esforço de construção e reconstrução, de perdas e danos, vamos construindo o sujeito, passando, enfim, a ser o que escolhemos ou, quando fracassamos em concretizar essas escolhas, o que fizemos de nós. A grande maioria não consegue ser, e apenas existe. Creio que esse seja o meu próprio destino, construído depois de muito sabotar a estrada que andei trilhando.

Vivemos apegados ao acidental e esquecemos o essencial; buscamos o contingente e negligenciamos o necessário, numa caminhada insana em que flertamos com a morte, antes de perceber o que realmente importa.

O meu maior medo é morrer antes de ser, é não saber o que fazer com o destino que eu mesmo criei e, menos ainda, com o que fizeram de mim nos instantes em que não fui eu mesmo uma pergunta dirigida ao mundo e, abrindo mão da dar a minha própria resposta, segui as pegadas alheias, aprisionando-me na bolha da normose.

Em meu favor, posso falar das boas intenções que carrego no peito, mesmo quando acabo ferindo outras pessoas, muitas vezes por fazer de mim mesmo a projeção de desejos alheios ao meu self ou, narcisicamente falando, por só pensar nos meus próprios dilemas. É a obsessão de agradar aos outros, para me sentir acolhido no mundo idílico dos bem-aventurados, é a autoimolação que abstrai as dores do outro, para enaltecer o meu próprio sofrimento, sempre o maior e mais difícil de suportar.

Contudo, devo resistir ao repto de malícia e insensibilidade que me arrogo: sou bem intencionado, embora isso não me sirva de consolo.

Como disse São Bernardo de Clairvaux, em uma de suas polêmicas com Pedro Abelardo, o célebre namorado de Heloísa,

“De boas intenções o inferno está cheio.”

E reparem que nem acredito em inferno, purgatório ou paraíso. Até das minhas intenções eu começo a suspeitar...

A razão da minha descrença, porém, não repousa em você, meu caro leitor, mas na autoanálise que faço diante do espelho, necessariamente humana e falível, como eu. Não sei quando fala o "analista", nem quando fala o "paciente". A voz de um se sobrepõe, muitas vezes, à do outro.

Ainda bem que não me preocupo com o que você pensa a meu respeito: a sua visão sobre mim não é minha, mas sua. Você me vê com o seu olhar iludido, projetando nos meus caminhos os seus próprios delírios. O ser existente — esse que vê em mim como espelho — é seu. Quando me observa, você captura em mim o que é seu, percebendo-me com os seus próprios sentidos e, inevitavelmente, com os seus afetos, sentimentos e emoções. Esse não sou eu, é a sua visão sobre mim, necessariamente impregnada com os seus afetos, ou seja, é uma porção sua projetada em mim. A forma como vemos o outro é sempre uma construção nossa, ligada ao processo de subjetivação que nos define como sujeitos.

O maior desafio da condição humana é ser capaz de refletir sobre a dimensão do humano sem deixar de ser humano. Infelizmente, não podemos ver de fora, como deuses perfeitos e assépticos, aquilo que nós também somos, e não podemos deixar de ser. Somos a cobaia da nossa própria experiência, o existente da nossa própria vivência. Por isso, somos tão condescendentes com a vaidade que nos consome.

Esse é o nosso maior dilema: o ser existente, que eu devo analisar, sou eu mesmo. Foi Martin Heidegger, no “Ser e Tempo” (em alemão: “Sein und Zeit”), quem disse algo parecido. Não vou procurar a página, para que você mesmo o faça. A leitura vai valer o esforço, eu garanto. Toda análise da realidade psíquica do ser humano passa pelo dilema de ser ele mesmo o ser existente, ou seja, o objeto a ser analisado e conhecido. O existente é meu... Tanto pior na autoanálise: o analista e o objeto da análise vagam no mesmo turbilhão de emoções, transferindo e contratransferindo, reciprocamente, as suas pulsões e desejos.

Por isso, perdoem-me, amigos leitores, a aparência de sabedoria e santidade que espalho nas redes sociais. Quem sou eu, na verdade, para oferecer lenitivo para as dores alheias, e de graça? Ao fim e ao cabo, tudo pode não passar, também, de vaidade!

Da minha parte, posso dizer que continuo perdido. Sou apenas um louco que surgiu no mundo e nunca se definiu. Aliás, já perdi a esperança de ser. Por isso, não me siga! Eu apenas existo.


Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

Vou fazer origamis como o meu papel de trouxa

Vou fazer origamis como o meu papel de trouxa

A parte mais interessante da Divina Comédia ­— o poema épico de Dante Alighieri — é sem dúvida o Inferno, o menos tedioso dos planos espirituais. Logo em seu pórtico, Dante e Virgílio encontram a inscrição mais reveladora da iniquidade humana:

Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate(“Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”). (ALIGHIERI, Dante. Commedia. Mondadori, Milano, 1966-7. Inferno, Canto III, Verso 9).

Deixai toda esperança, ó vós que começais a viver! — Eu inscreveria nas salas de parto das Maternidades. Perdoe-me o grande poeta toscano, mas o paraíso não cabe nas minhas ilusões, e o purgatório é autopiedoso demais para o meu niilismo existencial. Estamos todos condenados, e o inferno é aqui mesmo, nesse mundo de intolerância e falta de diálogo.

Muitos gritam, batem e ofendem porque não escutam. Vomitam monólogos de certeza narcísica, quando se confrontam com as diferenças. Pobre de quem os contradiz ou não realiza os seus desejos!

Estou tão sem esperança no Homo sapiens, tão despido de sensibilidade para acreditar em qualquer ser humano — ainda menos em mim —, que já começo a discordar de Umberto Eco, quando falava da voz que as redes sociais deram aos imbecis.

Na verdade, dar voz aos imbecis foi a melhor coisa que a Internet fez nesse mundo. Só assim, posicionando-me como um deles — talvez o pior dos idiotas —, vendo as entranhas apodrecidas e obscuras desses navegadores virtuais que se projetam no mundo como sábios e bem-aventurados, posso iluminar as minhas sombras, escutar o meu próprio monólogo intransigente.

Quando escrevo idiotices sobre outras pessoas — em particular quando espalho certezas e mentiras disfarçadas de verdades ou quando menosprezo as escolhas alheias, valorizando apenas o que é espelho —, acabo mostrando bem mais do que pretendia expressar.

Em meio às minhas percepções do mundo, que escorrem das palavras de ressentimento e amargura crítica dos meus escritos, o bom leitor encontra, encastelado em suas defesas, o meu próprio ego, que se projeta nos caminhantes distraídos. As idiotices que escuto ou leio, e me incomodam, podem ser as minhas próprias misérias. Quando aponto os meus dedos sujos para alguém e, mais ainda, quando lanço ao vento palavras de intolerância e preconceito, falo mais sobre mim do que sobre a alteridade.

Depois que me tornei consciente da minha imbecilidade, sinto-me mais leve, menos exigente, talvez, em matéria de realizações egóicas, enfim, de fantasias de sapiência e pureza ética ou moral que ultrapassem os limites da minha infinita banalidade.

Com as redes sociais — o verdadeiro paraíso dos idiotas — e um pouco de sensibilidade, posso aprender algo sobre a verdadeira escuta, enfim, sobre a difícil percepção do eu e do outro, separando o que é meu ao olhar o idiota da esquina do mundo virtual.

Os que me acompanham — e confesso que são poucos e bons — sabem que esse é um dos meus temas preferidos, seja no Blog, seja na página do Facebook.

As leituras de Lacan sempre me inspiram na abordagem do espelho, o melhor instrumento na jornada para me construir como totalidade, o espelho que revela o “eu” e o distingue do “outro”, (re)conectando-me com o meu próprio self.

O “eu” só se constitui, enquanto processo identificatório, a partir dos significantes que vêm do outro. Em um conhecido texto — “O estádio do espelho como formador da função do eu” —, Lacan usa o estádio do espelho para explicar como a criança, ao perceber, pela primeira vez, o seu próprio reflexo, acaba se reconhecendo como um “outro” imaginário, passando a manter, com essa imagem refletida, uma relação de identificação narcísica, que ele chama de identificação inaugural. À medida que evolui, a criança volta seus investimentos libidinais para outros objetos, libertando-se da alienação narcísica, para se perceber como aquele “outro” do espelho. Apesar dessa percepção libertadora — de que ela e o outro do espelho são o mesmo indivíduo —, ela sempre mantém a identificação inaugural como modelo ou paradigma formador da função do “eu”.

Precisamos sempre da confirmação do outro, para perceber o que somos. É como a mãe, diante da criança que sorri, ao perceber que o "outro" imaginário, refletido no espelho, é ela mesma. A mãe, com um simples sorriso, confirma a descoberta da criança, mesmo sem palavras. Aquele sorriso diz: — meu filho, esse "outro" é você. Essa identificação inaugural com o "outro" imaginário, mediada pela mãe, molda todos os processos identificatórios em nossas vidas. Sempre carecemos da mãe (o outro), para confirmar o que somos. E, assim, apegados a essa identificação primitiva, buscamos no “outro” a construção dos nossos processos identificatórios e significantes.

Surgem, a partir daí, no processo inverso, as projeções do “eu” real nesse “outro” imaginário, e acabamos vendo as pessoas como na verdade somos. É a idealização do “outro”, a partir dos nossos próprios significantes, que gera tantas expectativas e frustrações.

Interesso-me, também— e aqui entra o bom é velho Carl Jung —, pelo processo que o Mestre chama de individuação, a caminhada existencial que me revela a minha própria experiência como totalidade, unindo as diferentes porções da “persona”, notadamente as antagônicas, para me reconciliar, equilibrando as alegrias e os sofrimentos da vida, a tristeza e a felicidade, na eterna busca por harmonia.

Depois de me conectar com o self, tenho tido mais cuidado ao escutar as pessoas, para que não confundi-las com o eco da minha voz. Agi assim a vida inteira, caminhando com os olhos voltados para os meus pés, sempre mergulhado em contemplação narcísica. Quando me relacionava com alguém, buscava as minhas projeções, e não as verdades da outra pessoa, o meu self ideal, e não a alteridade.

“Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou”, disse Lacan, ao falar da intermediação do inconsciente do ouvinte na ressignificação do discurso do falante.

Por isso, é tão difícil a arte da escuta: nem sempre conseguimos distinguir a fala do outro do eco da nossa própria voz.

Para escutar verdadeiramente, preciso desapegar o significado do significante, desnudar as palavras do outro do sentido que elas possuem para mim. Só assim, posso capturá-las na dimensão da sua própria fala e dos significantes e significados a ela associados pelo outro, e não por mim.

Embora não possa desfazer os erros do passado — recompondo os cristais que se quebraram, a confiança que se desfez, os afetos que não dei —, agora tenho mais cuidado com o que falo: para quem escuta, nem sempre o significado e o significante estão apegados na forma que indico no meu discurso:

"Não se sabe o que verdadeiramente uma palavra quer dizer para o outro. Não se sabe as significações acumuladas na história dele, significações que se sedimentaram, significações que foram recalcadas." (Jacques-Alain Miller. Coisas de Fineza em Psicanálise. Lição III: afetos e desapego. p. 32).

Para escutar o outro, sabendo, verdadeiramente, o que ele fala, devo desapegar o significado do significante, reduzindo este último ao estado de nudez que me permita alcançar o significado na exata dimensão que ele assume na fala do outro.

Só assim, distinguindo o que é meu ao escutar o outro, posso perceber a infinita imbecilidade que me habita, essa mesma idiotia que usa a minha voz para se projetar no mundo.

É assim, entre legiões de imbecis com voz, que caminha a humanidade! Sou apenas um legionário sem importância, que se entediou com a normalidade. Imbecil, sim; arrogante, não mais!

Aprendi, porém, que ser imbecil não é o maior dilema existencial que carrego no peito. O pior de tudo é desconhecer ou negar a minha própria imbecilidade, iludindo-me com a fantasia narcísica de ser o dono da verdade e o senhor da razão.

Não sou doutor em nada, não sou senhor de ninguém, e isso deixou de ter importância quando descobri que não poderei levar títulos e honrarias para o caixão. Quer saber mais? Tenho a estranha sensação de que a árvore que servirá ao meu ataúde já está plantada em algum lugar desse planetinha azul chamado Terra.

Enquanto aguardo o último suspiro, vou fazendo origamis com o meu papel de trouxa.  

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.




“O fantástico mundo de Bob”

“O fantástico mundo de Bob”

Tenho um grave defeito, que se acentuou com o passar dos anos: não acredito em dez por cento do que leio, vejo ou escuto no mundo virtual. Nem em você eu confio, meu caro leitor!

Busco sempre a mentira oculta, a conjunção adversativa que desnuda a verdade em que desejo acreditar, o “porém” das minhas negações, o cadinho de dúvida que semeia a incerteza e a desconfiança no meu saber narcísico. Não quero ter certeza de nada e duvido de todas as suas certezas.

Não pense, contudo, que vivo no limbo dos ultrapassados e retrógrados, enfim, que me tornei avesso à tecnologia que conecta as pessoas. Sou “antenado” com os ventos da modernidade, embora não confie naquela corporação finlandesa que tenta me iludir com a proximidade virtual (“connecting people”, é o seu lema).

Por mais que o meu id — o repositório dos meus desejos e pulsões — busque experimentar o gozo no pertencimento social — a obsessão de ser curtido por virtudes ilusórias —, posso dizer, com certa dose de vaidade, que o meu ego não se deixou alienar a ponto de tomar como real a conectividade vendida pelo marketing da infovia globalizada.

Não fiz as contas, mas acho que não conheço sequer um terço dos “amigos” da minha lista do Facebook. A maioria não tem qualquer traço em comum comigo, nem jamais cruzará com o meu destino... Muitos eu nunca vi diante dos meus olhos... De outros, eu quero distância... E certamente sou desprezado por alguns poucos que me causam admiração...

Não tenho medo de ser tolo nem de me mostrar sombrio diante do olhar narcísico dos sábios e bem-aventurados. Reconheço o meu fracasso como ser humano, sei das minhas limitações como pai e filho, confesso as minhas fobias e ressentimentos, declaro ao mundo a minha depressão.

Você experimenta algum prazer na forma como se projeta no mundo, nesse ser humano em que vai se transformando, progressivamente, durante a caminhada existencial? Que bom! Pois eu não. Creio, aliás, que me iludia com a felicidade, ao me olhar no espelho, vendo, talvez, o ser humano em que nunca me transformei de verdade, alguém que deslizava para o plano dos desejos, caminhando sem qualquer conexão com a realidade.

Mas não se engane comigo: o seu mundinho perfeito realmente não me assusta nem me causa inveja. Não desejo ser você nem preciso dos objetos de consumo que o tornam assim tão desumano e dependente do reconhecimento alheio.

O meu grande desafio, nas interações olho no olho, não é interagir com o mundo, mas acreditar em 10 por cento do que escuto e leio. Não se trata, porém, de fobia social nem de ascetismo monástico, algo no real que me desconecta das pessoas.

O que me distancia desse tempo, o que me faz um navegante solitário, um andarilho dos desertos, é essa dúvida constante e opressiva, quase sufocante, que me faz desacreditar de tudo e de todos. Não confio sequer nos meus pensamentos, no que digo em voz alta e, menos ainda, no que as minhas resistências egóicas me seduzem a acreditar. Duvido intensamente dos meus delírios de euforia e, ainda mais, das negações obstinadas em que me aprisiono.

O que escrevo, justamente porque mediado pela reflexão, pode ter sido distorcido pelos mecanismos de defesa do meu ego, inexoravelmente contaminado pela descrença: lanço na tela do computador algumas palavras, ilusoriamente verdadeiras, mas, quando o tempo escorre e as horas se tornam dias, o texto, outrora, sincero e perfeito, que eu imaginava dizer as minhas verdades ocultas, acaba se revelando estranhamente distante da imagem que tenho do meu self. Chego a desconhecer quem o escreveu, tal é a desconexão entre o que registrei ontem, o que sou hoje e o que serei amanhã.

Mas onde entra o “fantástico mundo de Bob” nessa história toda? Esse é o mundo que criei para não perder as últimas centelhas de sanidade, se é que ainda tenho alguma lucidez sob tanta loucura. Nesse paraíso perdido, sou o cara desprezível que reconheço no espelho, não tenho pudor dos meus defeitos; sou o homem contingente e banal, que não espera nada de ninguém, que não confia nem na própria sombra. Sou livre para ser falível e rir das minhas sombras, sem esperar a sua aprovação piedosa. Não preciso de títulos nem de elogios! Mesmo que você os fizesse, eu não acreditaria.

Mas o que isso tem de bom? É simples: no “fantástico mundo de Bob” posso ser exatamente desse jeito — maldoso, doente, perverso e desagradável —, posso não confiar em ninguém e, ainda assim, sobreviver sem o seu consentimento ou aceitação. Não sou mais dependente da resposta que você me dava à pergunta sobre o verdadeiro significado da minha existência. Nos meus textos, comunico a minha resposta, tentando ignorar — e quase sempre conseguindo — o que os outros pensam de mim. Só assim, ciente e consciente da minha banalidade, sinto-me livre para me experimentar como totalidade, sem viver ancorado no porto das escolhas alheias.

No “fantástico mundo de Bob”, vou tecendo os fios invisíveis das minhas fantasias, vivendo, no self ideal, o que a realidade não suporta. Só na fantasia — que adoça o real ou que o torna deliciosamente amargo — é possível tolerar as mentiras do mundo virtual.

Do lado de fora do meu mundo fantástico, olhando pelo buraco da fechadura, vejo que os humanos são tediosamente sábios e bondosos, conhecem a solução para todos os enigmas — inclusive para o da Esfinge —, destilam certezas que não desejo ter.

Apesar de tanta sabedoria e bondade virtual, ninguém se importa com ninguém. Os meus “amigos” estão mais preocupados com o próprio umbigo do que com a alteridade, com as certezas em que se encastelaram do que em escutar o que digo ou escrevo.

Em suas postagens idílicas, usam palavras doces e delicadas, que espalham verdades confortáveis, para evitar os dilemas obscuros do inconsciente; exibem selfies de desamparo, para mendigar elogios, transferindo aos outros a tarefa de responder à pergunta sobre a existência fútil a que se aprisionaram: nada para dizer, ninguém para escutar.

Deixei de acreditar no que está fora do meu “fantástico mundo de Bob”, mesmo quando a realidade vem beijar o meu rosto. Duvido sempre, não porque as verdades me incomodem, mas porque perdi a capacidade de confiar. Nada a ver com traições, chifres nem algo parecido. Creio que a razão da minha descrença é bem mais séria: estou perdendo a capacidade de sentir empatia pelas pessoas. Não só pelos outros, mas por mim mesmo. E isso é grave: os psicopatas nascem assim...

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.