quarta-feira, 22 de junho de 2016

“Impressão, nascer do sol”

“Impressão, nascer do sol”

Ainda tímido e sonolento, cansado de iluminar as sombras que perseguem os homens, despertava o sol naquela manhã de outono, erguendo-se do seu berço além do horizonte. Tons de laranja e amarelo, esmaecidos pela névoa, indicavam mais um dia de batalhas perdidas contra a arrogância dessa humanidade cheia de certezas, que saiu da caverna para se esconder no orgulho.

No horizonte, abrindo caminho no denso nevoeiro, flutuavam dois barquinhos, efêmeros viajantes, flertando com os seus sonhos e abandonos.

— Onde estarão os peixes? — perguntava-se o velho pescador de barbas brancas. — Depois que enlataram os cardumes, sumiram as sardinhas! Quero ver o que essas fábricas vão colocar nas latas depois do meu entardecer... — Lamentava-se o homem, nostálgico, mas resignado com o destino da sua antiga Colônia de Pescadores.

A leve brisa do mar, salgada como lágrimas de dor e desventura, lambia o rosto daqueles homens de fibra, realçando suas angústias com o sabor da melancolia. Flutuando ao sabor das ondas, esquecidas pelo mundo, aquelas figuras sem rosto, criaturas de pele curtida, aqueciam-se aos primeiros raios de sol, que se refletiam no espelho d’água.

Outrora ricos em velhas estórias de pescador, homens de fibra com sonhos de liberdade, eles agora singravam os oceanos impregnados de lamentos inglórios. Apenas se deixavam levar pelas marés que iam e vinham, dançando com a Lua.

Na calmaria do Porto, as águas serenas, com leves ondulações esbranquiçadas, produzidas pelo movimento dos barcos, ofereciam acolhimento e proteção para os viajantes fatigados, essa gente trabalhadora e humilde que busca nas bodegas do cais, após a pesagem dos peixes, o merecido descanso para as suas lutas no mar bravio. Nos azuis e violetas da cena, percebia-se a profundidade das águas tranquilas.

Capturando o meu olhar distraído, a linha de barcos unia-se ao Porto, formando, nas mudanças de luz que se emolduravam no espelho d’água, o caminho para os sentidos. Os tons de laranja encaminhavam os olhos para o infinito, dando a perspectiva desse universo etéreo e caótico em que experimentamos o dom da vida, um mundo imprevisível, muitas vezes indomável, que, de alguma forma misteriosa, se reequilibra no final da cena.

 Alguns traços de azul e cinza, verde e laranja-claro movimentavam as águas serenas da baía de Le Havre, revelando, nos reflexos da aurora, o nascer de um novo dia. O meu olhar, enternecido com a magia daquele instante, mergulhava no horizonte, ao longe, tentando distinguir aquele ponto em que o céu e o mar se misturavam numa palpitação indistinta.

“Nada do que foi será do jeito que já foi um dia?” — diz a canção. Será mesmo?

Começo a imaginar que a natureza nos convida a abandonar a ilusão de que nada se repete, nem os nossos desenganos. O sol haverá de nascer para um novo dia, morrendo, porém, em um novo ocaso. E assim, como os ciclos do sol, lamentaremos, mais uma vez, o dia perdido. Com a luz do novo dia, renovar-se-á a esperança, mas também a desventura, quando o sol adormecer na tarde seguinte. Essa é a metáfora da vida com os seus ciclos misteriosos, sombras e luzes que curvam a linha do espaço-tempo, criando para cada ilusão que nasce uma nova desilusão; para cada despertar um novo adormecer.

É verdade: sempre haverá um novo nascer do sol e, com ele, uma nova oportunidade para recomeçar! Mas o sol de ontem, esse mesmo que haverá de surgir no horizonte pelos próximos bilhões de anos, renascerá a cada dia com alguns trilhões de átomos de hidrogênio a menos no seu corpo em decadência, mostrando que a nossa energia para um novo recomeço, assim como a do sol em seu caminho para se tornar anã branca, também será cada dia menor. Um dia não teremos mais chances, nem desculpas, apesar da aurora.

Menos soberba e mais tolerância, por favor!

Você não passa de poeira cósmica, perdida em um pequeno Planeta que gira em torno do sol, uma dentre outras 100 bilhões de estrelas que vagam em um braço da Via Láctea, uma modesta Galáxia desse universo em desencanto, apenas uma dentre outras 100 ou 200 bilhões de Galáxias, isso para falar apenas do Universo “conhecido” pelos seres humanos. Nem vou falar de Universos paralelos, para não estragar a sua ilusão de plenitude e poder...

Nem mesmo o sol, fonte da energia da vida, está livre do seu ocaso... O amanhecer só traz uma nova vida para quem se torna consciente da escuridão e enfrenta a sua dor. O resto é tempo perdido.

"No entardecer da vida, só o amor permanece"! Assim foi no tempo de São João da Cruz, e assim será enquanto o universo não desistir dos seres humanos.

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.
“Impressão, nascer do sol”, de Claude Monet, Paris, 1872, paisagem do Porto de Havre, na Normandia, exibida na primeira exposição impressionista de 1874, que deu origem ao nome usado para definir o movimento impressionista.

FICHA TÉCNICA - IMPRESSÃO, SOL NASCENTE:
Autor: Claude Monet
Onde ver: Museu Marmottan, Paris, França
Ano: 1872
Técnica: Óleo sobre tela
Tamanho: 48 cm x 63 cm
Movimento: Impressionismo


Tragédia ao luar: o massacre na Candelária! (Conto)

Tragédia ao luar: o massacre na Candelária!

Conto escrito por Jorge Araken Filho

É uma linda noite de inverno, estranhamente clara, sem a névoa que encobre o andar perdido dos insones e noctívagos da cidade grande. Apenas a lua por testemunha... O frio cortante e seco, evocando uma estranha sensação de abandono e solidão para quem não possui uma cama quente e uma xícara de chá, sinaliza mais uma noite de agonia para os raros transeuntes desse mundo de sombras, quase todos moradores de rua, velhos personagens noturnos do Rio de Janeiro que muitos fingem não ver. Alguns larápios furtivos, à espreita dos caminhantes distraídos. Usuários de “crack” supostamente livres, mas tristemente escravizados pela exclusão social; mais de quarenta crianças abandonadas nas calçadas de uma velha Igreja — gente igual ao seu filho, mas que, diferente dele, nunca recebeu um afago, para saciar a inesgotável sede de amor que carrega no peito embrutecido; boquinhas tristes e sedentas que não tiveram a dádiva do seio materno; filhos de pai e mãe desconhecidos, quase sempre drogados, concebidos e paridos nas calçadas desse mundo indiferente e insensível aos seus gritos de agonia; pobres garotos, sem escola e sem lar, que nasceram como vômito apodrecido nessa vida de negações; filhos de deserdados da sorte e da fortuna, netos de uma geração de excluídos — acotovelavam-se em papelões nas calçadas de um templo religioso, o irônico abrigo que lhes restou para embalar o sono atormentado. Perto dos homens e longe de Deus... Para acalmar o frio, apenas um cobertor corroído pelo tempo. O resto era só o corpo de um aquecendo a alma do outro...

Ainda sonolenta, desperta a lua, espreguiçando-se, lentamente, enquanto se ergue no horizonte. As estrelas cintilam ao longe, ofuscando os olhos sensíveis dos meninos da Candelária. A sua luz se derrama, difusa, pelos edifícios da metrópole, revelando, nas fachadas dos bancos e grandes corporações, a podridão dos corações obscuros da sociedade dos incluídos, seres bem-aventurados que, malgrado a bondade fingida, perderam os derradeiros traços de humanidade no consumo e na aparência de nobreza.

No silêncio da noite, os garotos ouvem um sussurro, de início indistinto, mas, depois, mais forte, até que se transforma em um grito indignado. O mais velho diz que é besteira, mas a garotinha dos cabelos anelados insiste que aquela voz doce e melodiosa vem do céu:

— Ei, lua, você que é sem brilho, você que é fria e sem cor! – Diz uma estrelinha distante. – Por que você é tão pálida?

— Eu não disse? É o céu que está falando. Nós morremos! — Gritou, assustada, a garota dos cachinhos dourados.

— Deixe de besteiras! Nós estamos vivos! — Finalizou o mais velho.

No meio da noite, outra voz desce dos céus, mas não se parece com a anterior. É mais grave e taciturna:

— Não tenho brilho, não tenho luz própria, mas sou a companheira dos insones, a eterna namorada do sol, a tela onde o astro-rei deposita seu brilho nas noites escuras. — Respondeu a Lua, virando-se para a estrelinha distante.

Invejando as estrelas, a lua busca o sol, ao longe, pedindo passagem às nuvens, para refletir a sua luz no caminho dos homens.

— Mas você está roubando a luz do sol! — Retrucou a estrelinha insensível.

— Melhor roubar o brilho do sol, para encher de luz a minha companheira Terra e iluminar os andarilhos da noite, do que piscar para todo mundo como você. Sou mulher de um só astro. E você, estrelinha perdida?

— Sou estrela como o seu sol, um namorador de quinta grandeza, que flerta com o universo inteiro, depois que você adormece. Acorda, lua inocente! Enquanto você dorme, o sol anda de amores com esse planetinha azul que você chama de Terra.

— Eu sei o que ele faz, quando adormeço. O sol aquece os corações humanos, fazendo renascer todos os dias a esperança, enquanto eu, a sua companheira de sonhos e noites mal dormidas, ilumino os caminhos dessa gente que não enxerga seus males, afastando as sombras que obscurecem tantas almas perdidas.

E assim, naquela noite, adormeceram as crianças da Candelária, almas perdidas, de imperfeitos traços, vultos que a impiedosa memória dos homens dissipou.

Ao amanhecer, oito daquelas crianças e jovens estavam mortos, vítimas da barbárie de uma noite taciturna do inverno carioca! Era a fatídica noite de 23 de julho de 1993, tempo obscuro que, para mim, nunca passou... O sangue corria nas calçadas, vermelho vivo, com cheiro de carniça, para os abutres da mídia insensível...

Eis a lista dos mortos, para que você os veja como gente, com DNA humano, exatamente como os seus filhos:

Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos
Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos
Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos
Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos
"Gambazinho", 17 anos
Leandro Santos da Conceição, 17 anos
Paulo José da Silva, 18 anos
Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos

A essas vidas perdidas dedico um epitáfio, mal escrito e indigesto, como o sabor amargo das minhas sombras:

Por que insistes em viver, estranho peregrino,
Alma fraca e perdida, de imperfeitos traços?
Enquanto te escondes entre as nuvens negras do teu destino,
A vida, caprichosa e sorrateira, foge dos teus braços...
As tuas esperanças, entre delírios, se afogam nos desatinos
dessa gente orgulhosa;
Mas no teu coração partido, ainda esperas nascer um lírio.

Rasga logo esse peito frágil e sem cor,
Corta os pulsos e deixa esvair teu sangue,
Porque a vitória do amor sobre a dor
Não passa d’um delírio, que te consome.
Espreme essa alma triste,
Rega com sangue o teu lírio.
Fecha os olhos e silencia teu canto!

Que esperas da vida, triste vulto?
O destino não haverá de secar teu pranto solitário.
Abandona esse turbilhão de desejos insepultos,
Que o sopro da morte inglória sorri dos teus desencantos!

Veste a roupa esfarrapada da tua amargura!
Deixa esse sangue impuro que percorre
As tuas veias jorrar sobre a terra dura...
E talvez o sal da tua seiva
Depure as lágrimas de dor e desventura...

Se a tua fé secou, simplesmente morre!...
Essa é a hora da tua última ventura,
Do triunfo da morte sobre os teus tormentos!
Por que esperas, então, triste figura?
Por que esperas?

Simplesmente entrega-te!
Tens sofrido sem clemência!
Deixa o teu coração descrente
Entregar-se à extrema hora...
Deixa que se abale o universo, comovido.
Deixa que o teu peito solte o último grito!
Escreve logo o fim dos teus tormentos,
Fim d’esta provação, fim do sofrimento!

Atira-te ao vento, anjo decadente!
Mostra, afinal, do que és feito,
Abre teus cofres e revela a ganga impura
Que encobre a mina dos teus desejos!


Mostra que a tua vida só se fez para dor, para desterros,
Revela ao mundo que essa ânsia, que te ergue o coração,
Há-de ter fim um dia, depois de tantos martírios!


E das velhas ilusões, erguer-se-á a verdade:
E todos saberão que tu não eras só um corpo cheio de chagas,
faminto de pão, carente de circo,
Alguém que passou pela vida, vagando entre tormentos!
Eras carne e sangue, coração e mente.
Eras alguém que mal começou a viver.


Então, derrama logo teu pranto, implora um afago...
E haverão de se alegrar as aves de rapina,
Do olhar perdido com que choras teu amargo destino,
Irão se rejubilar os espectros das esquinas,
Que te enlaçam em suas garras, devorando as tuas entranhas,
Liberta-te, ó Prometeu, das tuas correntes de amargura!
Não percebes o bando de rapina, revoando, inquieto,
no alto da tua Igreja ornada de riquezas?


Podes dormir o sono falso da esperança,
Enquanto a crueldade desfaz as tuas crenças!
Poupa as tuas forças e acaba com as tuas andanças:
Quanto mais enterras as tuas mágoas,
 mais elas renascem insepultas...
Simplesmente desiste! Morre!


Entre homens sem fé e deuses enganosos,
Que escravizam o teu peito lasso,
Tu vagas entre suspiros abafados.


Da terra e do céu nascem tiranos orgulhosos,
Que desfazem, com tristes enganos, as esperanças desse mundo além.
Revelando, nas almas que eles invadem e consomem,
Que o inferno é aqui mesmo, nessa Terra de tormentos!


De ti só esperam a partida, sem glória e sem lamento,
Com um grito de dor, que logo cairá no esquecimento...


Esse foi um poema que escrevi há alguns anos, agora um epitáfio para os meninos que perderam as suas vidas ao luar.

Só desejo melhor sorte aos que passaram pela vida entre desatinos de consumo, enclausurados em seus castelos de insensibilidade egocêntrica, vivendo da seiva de inocentes. Quem sabe, secando a alma de algum infeliz, vocês encontram o Nono Círculo e mergulham no Lago Cocite, do inferno de Dante...

No meu coração partido jamais nascerá um lírio!

Rio de janeiro, 22 de junho de 2016.

F I M










O que você faria se soubesse que tem apenas duas horas de vida?

O que você faria se soubesse que tem apenas duas horas de vida?

— Creio que ficaria feliz — disse o deprimido.

— Acabaria me matando antes do tempo — respondeu o ansioso.

— Acho que mergulharia nas memórias da vida que tive um dia — completou o nostálgico.

Se fosse comigo, confesso que tentaria buscar motivos para me desconectar da vida, tentando me convencer de que a morte é o caminho mais fácil; o difícil é viver.

Tudo papo furado...

Ao diabo essas duas horas! Se não aproveitei a vida inteira que tive, de que me adiantariam essas míseras duas horas?

Quer saber a verdade? Acho que as passaria odiando o médico que me disse a verdade...

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.




terça-feira, 21 de junho de 2016

Você é maior ou menor do que a soma das suas partes isoladas?

Você é maior ou menor do que a soma das suas partes isoladas?

Ontem, ao final da tarde, na hora dos ternos cansaços, enquanto a noite se aproximava de mansinho, quase indolente, resolvi caminhar pelas ruas de um lugar qualquer desse Rio de Janeiro comum e sem glamour, um cantinho bucólico da velha metrópole, outrora um bairro e, agora, um simples recanto de vielas obscuras e recônditas, habitado pelos excluídos do consumo e das redes de apresamento do capital.

Para quem não o conhece, e julga por preconceito, um simples depósito de bandidos, para quem o lê na sua intimidade, nos gestos e afetos, um paraíso de verdades singelas, de gente que sorri sem medo e sem hipocrisia, algo diferente e bem mais humano do que as prisões repletas de grades que os bem-aventurados chamam de lar. Churrascos na calçada, pipas sendo empinadas, mulheres nas lajes em seu banho de sol, janelas e portas abertas, roupas ao sol...

Era um lugar esquecido no tempo, bem longe dos cartões postais, na verdade, uma favela — por trágica ironia, chamada de comunidade —, recanto de pessoas dignas e trabalhadoras, as mãos calejadas do capital, gente anônima que sobrevive longe dos turistas e suas lentes. Aliás, essa é a verdadeira crueldade: escondê-los sob o tapete da aparência, para que os viajantes, alienados pelo consumo, não os percebam nas ruas do Rio Maravilha, paraíso da beleza, mas, também, o purgatório do caos. Indiferentes às cenas da favela, ao ir e vir dessa gente sem rosto e sem nome, os turistas, com as suas câmeras nas mãos, anestesiados, como zumbis, buscam, nas trivialidades do Rio das propagandas, uma paisagem idílica — infelizmente utópica — que confirme a imagem de opulência que desejam projetar nas redes sociais.

Enquanto a vida passa por eles, ligeira e imperceptível, esses viajantes da modernidade, homens perdidos em seu próprio desamparo — era homogeneizada em que a mídia controla a massa —, perdem momentos preciosos com a câmera nas mãos, sem aproveitar a paisagem. Aprenderam que belo é o que pode capturar a atenção dos amigos virtuais, e não o que encanta os seus próprios sentidos.

Insatisfeitos com o que veem dentro de si, alguns turistas mendigam “curtidas” para a imagem de viajantes bem sucedidos que desejam projetar no mundo. Paradoxalmente, não curtem, eles mesmos, as experiências capturadas na fotografia. Ao invés de aproveitar o momento, paralisam os sentidos na busca insana e frenética do melhor ângulo.

Antes que me acoimem de ultrapassado, reconheço que as "selfies" só representam um sintoma, quando se tornam o motivo da caminhada e a razão de ser da nossa existência. Quando filtradas pelo bom senso, e não pelo “Photoshop”, evocam vivências inesquecíveis, que marcaram os nossos afetos.

Mas não é desses turistas que desejo falar, e, sim, das partes que se vestem de magia, quando alcançam o todo...

Enquanto subia as suas vielas estreitas, sob o olhar atento dos moradores e da milícia — que me conhece, já que tenho parentes por lá, vou logo dizendo, antes que me chamem de mentiroso —, fui vendo, a cada passo, um detalhe a mais da paisagem, percebendo, na confluência das partes, o todo harmônico que não conseguia ver ao nível do mar.

Fui percebendo, enfim, que as partes de uma paisagem, vistas como pontos isolados na cena, representam muito pouco; na verdade, podem não ser belas e encantadoras, muitas vezes não chegam a capturar a nossa atenção, quando caminhamos, distraídos, em um dia de sol.

Aquela árvore milenar — o frondoso carvalho que testemunhou o nascimento do seu tataravô e, malgrado o desejo de eternidade que o anima nessa vida, ainda permanecerá nesse mundo de homens tolos e contingentes, muito depois que partir o último dos seus netos — pode ser bem mais do que um simples tronco cheio de galhos e folhas: pode ser a perspectiva que falta ao seu olhar castrado por esse mundo de narcisismo atávico. Suba no velho carvalho, um dia qualquer, quando não tiver a desculpa do tempo e dos compromissos sem importância — que você não levará para o túmulo —, e simplesmente observe a cena que irá se descortinando, a pouco e pouco, no horizonte. No início, suba apenas cinco metros, pare e observe; depois, suba mais cinco... Quando chegar ao topo, vencendo seus medos, verá esse mundo invisível a que me refiro, a harmonia da natureza, quebrada, apenas, pelos homens arrogantes e suas ilusões de domínio do tempo e do espaço, o universo de cores e luzes que você nunca percebeu ao caminhar perdido no meio da cena, contemplando os próprios pés, símbolos eloquentes da sua mediocridade, imprimindo pegadas fugazes nas areias do tempo.

Ao rés do chão, solitárias na cena, as partes isoladas nada mais são do que objetos perdidos no ermo de um dia qualquer, alguns sem o charme que nos seduz, outros delicadamente inspiradores ao olhar mais atento, capturando de leve os nossos afetos. As árvores, o sol, a grama, os olhos de alguém, depois o sorriso, os cabelos, um aceno, uma palavras, todos esses elementos da cena, quando capturados um a um, sem a moldura do conjunto, são apenas sensações ou objetos enclausurados em seu sentido mais banal, o que encontramos no léxico.

 Vistos, porém, sob a perspectiva do todo, de um plano mais elevado, transformam-se em paisagem, libertando-se dos significados que lhes damos isoladamente, para serem reconstruídos como novos significantes, que, apenas na perspectiva do conjunto ou da cena ampliada, possuem este novo sentido, que vai além das palavras isoladas, quase uma metáfora para a realidade que integram e com quem dialogam no plano macroscópico.

Imaginem a cena que vou descrever, mas percebam cada elemento isoladamente, como se fosse único na paisagem. A minha perspectiva será a de um escritor no alto de uma colina, divisando a paisagem por cima dos seus elementos constitutivos. Separem, mentalmente, as partes do todo, caminhem ao rés do chão, sem a visão do conjunto, para depois, subindo a minha colina imaginária, reuni-las em um todo harmônico e cheio de mistérios, algo bem diferente de cada elemento cênico em seu isolamento quase banal. Vamos ao exercício de metalinguagem?

Enquanto o sol da primavera se acomodava em seu leito, a realidade, teimosa e inclemente, deixava seus rastros nas ilusões do poeta. Era um leve sussurrar de palavras em busca de significado, um doce troar de lamentos sublimados em sua alma torturada, sons que escapavam do seu claustro de negações.

No crepúsculo, mais um na sua vida de abandonos, os prazeres da tarde derramavam bocejos de agonia, convidando o poeta a caminhar na escuridão da noite, transcendendo o universo visível, para mergulhar no mundo sublime da imaginação.

Impregnado de sono, quase tímido, o sol derramava as suas últimas luzes sobre os prados verdejantes da campina, anunciando as primeiras sombras da noite.

Hipnotizado pelas flores e galhos retorcidos dos flamboyants, com seus tons de rubro-escarlate, agora esmaecidos pela luz difusa que se derramava do sol, eu me sentia como a criança que fui um dia ou, na verdade, como a criança que deveria ter sido.

Ao longe, avistei uma grande árvore, misteriosa e solitária, a mais egoísta das criaturas, talvez a última da sua espécie, pairando, soberana, acima das outras. Ela só queria roubar o sol e se enamorar da lua, que pedia licença ao poeta para nascer. Do alto da sua pequena copa, um sabiá-laranjeira conversava com as minhas ilusões, compondo uma sinfonia que me convidava a sonhar de novo.

Nuvens prateadas, com leves negrumes, contrastavam com o alaranjado refletido pelo sol, mostrando a esperança que eu perdera no entardecer da vida. Mas eu sempre a recuperava na alvorada seguinte, quando aquele mesmo sol, arredio e teimoso, como eu, insistia em renascer para novos sonhos.

Distraídas, as flores sorriam dos meus desenganos, oscilando ao sabor da brisa cálida do entardecer na savana africana. As folhas das árvores, imunes aos dilemas da existência dos homens, serpenteavam em movimentos ritmados que faziam cintilar os derradeiros raios do sol, aquecendo o coração do poeta com um sopro de vida que lhe atravessava o peito e corria ligeiro por cima dos montes.

Soltei meu grito, não um lamento de tristes desenganos, mas um grito de ave de rapina, um grito de agonia e liberdade, o derradeiro ato de loucura de um incompreendido que engoliu seu medo, atirou-se no abismo e começou a voar...

Perceberam como a paisagem é muito mais do que a soma das partes isoladas? Se falasse apenas do sol, seria o mesmo sol de todos nós, o astro que ilumina os caminhos da humanidade, algo banal para vidas tão secas; se mencionasse uma árvore, apenas, não estaria dando ao leitor a perspectiva da paisagem, o simbolismo por trás dos galhos e folhas, o que ela representa nos meus processos mentais; contudo, se acrescento os flamboyants, com seus tons de rubro-escarlate, as flores, a savana, uma grande árvore misteriosa, surge a “minha” doce África, a Mãe-Terra, o Continente de onde viemos... Isso é o que simboliza aquele paraíso para mim, é a subjetivação do indivíduo através da linguagem, enfim, é o modo através do qual eu me compreendo como sujeito de determinado tipo de conhecimento, ou melhor, como eu me percebo na relação sujeito-objeto. Só eu vi a cena dessa forma, e isso me constitui e me define como indivíduo...

Um quadro não se faz, apenas, dos elementos que o compõem, vistos isoladamente, sob a perspectiva do objeto individualizado no espaço e no tempo, mas da soma deles, que diz muito mais do que as partes isoladas. Um cão sozinho é só um cão solitário, um sol pintado numa tela branca é só um sol, mas se você reúne o sol, as árvores, o cão e um raio de luz projetando-se sobre os prados verdejantes, com um casal de namorados deitado na relva, você tem a magia da arte. Você vê mais do que a árvore, mais do que a relva, mais do que o sol, mais do que o cão e os namorados. O seu olhar alcança o sentimento, a emoção que vai além do visível, a harmonia e o equilíbrio da natureza, a interação humana entre dois jovens enlaçados pelo amor. Você começa a enxergar a cena, algo muito maior do que simplesmente ver.

Novos significados começam a surgir para os significantes da cena, alterando a percepção das partes, que assume a harmonia do todo, lançando, para as pequenas coisas da paisagem, aparentemente desconectadas dos afetos, um sentido que só olhar coletivo pode proporcionar. A soma das partes isoladas pode ser maior ou menor do que o valor estético e afetivo do todo retratado na cena, dependendo dos processos de subjetivação do pintor ou escritor e do domínio que ele tem sobre a sua arte.

A descrição ou representação gráfica da cena constitui a parte mais visível da relação sujeito-objeto, e a transformação do objeto em linguagem — um processo de subjetivação, pois é o artista em sua relação de si consigo — acaba dando novos contornos ao objeto e, também, ao próprio sujeito que descreve a cena. Passamos a ver o artista e os objetos da cena de outra forma, depois que lemos a sua descrição da paisagem, necessariamente subjetiva e carregada de afetos que são só dele. Depois que somos iluminados com a perspectiva do outro para aquela paisagem, a visão que nos foi dada pelo olhar do escritor ou do pintor, o artista não é mais o mesmo para nós; nem nós somos como antes: algo se apega aos sentimentos que carregamos no peito.

No caso das pessoas, e isso acontece com certa frequência, o todo pode ser menos valioso do que a soma das partes isoladas, aparentemente belas na visão focalizada, mas sem colorido na visão em perspectiva: quando juntamos o sorriso de Photoshop, o rostinho lindo, o corpo sarado, os cabelos perfumados, os afetos, virtudes e sombras, nem sempre a soma é virtuosa e, não raro, acaba sendo inferior às partes.

É mais ou menos como montar um carro com peças de primeira linha compradas em lojas: o preço das peças será sempre maior do que o valor do conjunto, que não vale tanto assim.

Apenas as partes isoladas são belas... O todo não forma o ser humano que idealizamos sob a perspectiva das partes vistas isoladamente. Reunindo os elementos constitutivos do sujeito retratado — cada uma das facetas da pessoa — acabamos percebendo que algumas das suas partes, examinadas isoladamente, são até interessantes e valiosas, mas superam, em sua soma, o todo visível, que não chega a ser harmônico ou virtuoso.

Como o carro montado com peças avulsas, o baixo preço do conjunto não compensa o risco do investimento na compra das peças, apesar de ter partes interessantes e, em alguns casos, até valiosas e originais.

Em outras palavras, o valor do conjunto da pessoa é menor do que a soma das partes isoladas, que indicam, na visão aproximada (com zoom), um sujeito idealizado, fruto, quase sempre, de projeções em torno de aspectos parciais, que não se concretizam na visão de conjunto, quando o vemos como sujeito em sua completude. Somando todos os elementos da cena, não formamos a bela paisagem que imaginaríamos compor a partir dos elementos isolados. E isso acontece, porque, na composição do quadro, delineamos o sujeito a partir dos seus elementos acessórios e supérfluos, que sobram nessas pessoas de soma pobre. Mas são os elementos nobres que compõem a magia da paisagem, e estes são raros e difusos nos seres de aparência rica e alma pobre...

Contudo, há pessoas que são exatamente o oposto: as partes isoladas não capturam a nossa atenção, o rosto não é tão belo, a roupa não é a mais cara, muitas vez nem combina; o corpo não tem os traços mais perfeitos; ele não anda na festa com a chave narcísica do carro pendurada no cós do cinto, mas, quando juntamos tudo, somando os sentimentos nobres e as emoções mais profundas, surge uma paisagem inesquecível. O todo é maior do que a simples soma das partes isoladas... Somando todos os elementos da cena, formamos uma paisagem bela e exuberante, que não conseguimos perceber, quando examinamos as partes isoladas, pouco sedutoras em uma visão parcial, focalizada nos detalhes acessórios e superficiais, mais raros nessas pessoas de soma virtuosa. Contudo, são os elementos mais nobres que contribuem para a beleza da paisagem, e estes são sempre abundantes nos seres humanos de alma perfumada, que só aparecem ao olhar o todo.

Ilusão é exatamente esse desencontro entre o que vemos no outro como totalidade e as suas partes isoladas: se desejamos vê-lo como a soma virtuosa das partes, onde o todo supera as diversas porções que o constituem como sujeito, sem que isso seja verdadeiro, estamos nos iludindo.

O nosso desejo de fazer do outro uma paisagem perfeita, em que o todo se harmoniza na completude, não transita pela realidade, mas pelo prazer que a fantasia nos proporciona. Idealizamos as partes, deturpando o resultado da soma, que acaba sendo bem menor do que os elementos que vemos isoladamente, quando o decompomos na visão em zoom.

Passe a olhar as pessoas sob a perspectiva do todo e veja se são maiores ou menores do que os elementos que você percebe isoladamente. Outro mundo se abrirá na sua vida!

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas os ermos do tempo.




domingo, 19 de junho de 2016

Cenas de amor em Copacabana (Conto trágico)

ADVERTÊNCIA PRÉVIA: o presente conto, escrito para adultos — de preferência amadurecidos, emocionalmente —, apresenta cenas de violência e incesto, não sendo recomendável, por sua temática e linguagem, para os falsos moralistas, nem para as pessoas sensíveis às sombras humanas.

Cenas de amor em Copacabana

Conto escrito por Jorge Araken Filho

Nunca tive muitos amigos, nem na escola e ainda menos na vida profissional! Sempre fui um lobo solitário, vagando, sem destino, nas pradarias e campos da vida, idealizando virtudes que nunca tive e ocultando defeitos insondáveis. Sempre cheio de mim, senhor da razão, protegido na onipotência narcísica que escondia as minhas fraquezas, projetava no mundo uma imagem de felicidade aparente, de sucesso fingido, sempre dependendo da aceitação dos outros. E, contudo, nunca me aceitava sob aquela máscara de sabedoria.

Quem sou eu? Não importa... Nada de nomes verdadeiros por aqui! Pretendo revelar apenas os milagres, sem indicar o santo.

Na verdade, nem eu mesmo me conhecia; buscava, na aceitação dos outros, a minha própria identidade. Aliás, fazia de tudo para não me conhecer, com medo, talvez, de descobrir a verdade por trás da máscara, o odor de podre da minha alma, que eu não suportava sentir em mim mesmo e lançava sobre os outros, com cheiro de intolerância narcísica.

Projetar as minhas culpas era o meu segredo de vida, nessa busca pela piedade dos amigos. Todos eram culpados pelo meu destino, menos eu, a pobre vítima de uma grande conspiração cósmica que me condenava ao inferno e à infelicidade.

Tinha aquela estranha vontade, quase instintiva, que vinha do inconsciente, de mostrar aos amigos que expiava os pecados do mundo, que sofria nas mãos de pessoas impuras, mas me esquecia de olhar para dentro, quem sabe para me aceitar sem negações ou fantasias, percebendo-me como um ser humano banal e pequeno, falível, como todos, mas consciente de que, sob a máscara social, eu era apenas eu mesmo e as minhas próprias circunstancias, um cara cheio de defeitos e algumas virtudes, que não dependia da aceitação de ninguém para ser feliz. Mas nunca foi assim...

Quanto mais me alienava do meu verdadeiro eu, mais me aprisionava aos medos e anseios que antecipavam os meus traumas, fazendo-os viver em espírito antes da própria vivência concreta. Sofria por antecipação. E os meus julgamentos sobre mim mesmo, quase sempre mais severos do que o olhar alheio, acabavam por me prender no molde de outras vivências.

Vagava, sem identidade, por uma existência que não era vivida no presente, mas num passado de tormentos reprimidos no inconsciente, nunca amadurecidos pela compreensão, e num futuro de angústias, que criavam os enredos que acabavam acontecendo, não porque fossem o meu fado cruel e infalível, mas porque eu mesmo os perseguira, movendo as engrenagens do destino.

Era o inconsciente moldando a vida consciente. E o ego, tentando alhear-se ao que se passa na parte submersa do iceberg, continuava a atribuir as minhas desventuras ao destino. Era uma reação defensiva do ego crispado pela dor.

Um dia tudo mudou...

Foi num domingo de inverno que me olhei no espelho pela primeira vez. Sempre flertei com o medo de acabar na solidão, mas nunca me dei conta de que, na verdade, sempre estive sozinho: eu mesmo cavei a sepultura onde haveria de enterrar o meu destino, afastando as pessoas, para evitar, talvez, que tirassem a máscara que me escondia de mim mesmo.

Caía aquela chuvinha insistente, meio nostálgica, que evocava o passado, trazendo à memória os dias tristes de uma vida que caminha para o seu ocaso. Olhava a Ladeira dos Tabajaras pela pequena janela, que logo abri, para sentir a umidade no rosto, relembrar os tempos de criança, quando ainda brincava na chuva com os meninos da vizinhança. Será que cometi um ato falho, lembrando “amigos” de infância numa vida sem amigos?

Fazia frio na Cidade Maravilhosa, o céu ainda carregado de nuvens, algumas com formas estranhas, que lembravam os algodões doces da minha infância perdida, dos tempos em que ainda me via como um ser humano especial, predestinado ao sucesso, um poço de virtudes e muitos defeitos a corrigir, nunca em mim, sempre nos outros, para que fique bem claro.

Imaginava o mundo como o palco dos meus feitos heroicos, sonhava com um futuro de glórias, sem ver as minhas próprias sombras. Uma fase de sonhos, que não me fazia despertar. Sempre com os olhos voltados para fora, para o que haveria de realizar no mundo, esquecera-me de olhar para dentro, com medo de perceber que não estava preparado para transformar sonhos em realidade. Imaturo nas emoções, incapaz de lidar com os desafios e dissabores da vida, era muito forte e decidido, até ser contrariado... Era só desfazer as minhas expectativas, e eu virava o próprio capeta com chifre e tudo!

Em plena crise da meia-idade, solitário, depois de muitos amores perdidos, quase sempre idealizados pela minha própria carência afetiva, só pensava em fugir dos desafios que fui levado a enfrentar nessa fase da vida, quando muitos já buscam um cantinho, um amor e uma lareira. Eu ainda convivia com os esqueletos do armário, sem sepultura, velhas histórias inacabadas e mal resolvidas.

Fiz um chá e me sentei próximo à janela. Aquela névoa, que saía da xícara, serpenteava no meu pequeno quarto. Logo à frente, divisava a descida íngreme da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, lugar onde passei a viver depois de perder as minhas posses no arriscado jogo da vida. Tentava descobrir algum traço da mulher do Lustosa, a jovem Adélia, uma deusa de ébano, na flor dos dezoito anos, que massageava o meu ego nas noites de plantão do marido. As ruas, estranhamente vazias, evocavam os meus desejos esquecidos, sublimados na solidão dos desgarrados, que vagam em noites frias, em busca de sentido para essa vida absurda, que se acaba quando nos apaixonamos por ela. Nenhuma criança brincando na chuva; nenhuma alma desafiando aquela manhã de domingo.

Acho que o medo do outro nos faz reféns de nós mesmos. Somos obrigados a conviver com os demônios do inconsciente. Esse processo, doloroso como a picada de uma serpente, pode ser o início da maturidade e da cura, forçada, embora, pelas circunstâncias. Mas nem sempre... Muitas vezes, a percepção da autossabotagem, sendo meramente intelectual, não traz a mudança real e concreta do comportamento nocivo que se repete, nem dos sentimentos a ele associados, permanecendo, a percepção de si próprio, alterada por sentimentos de culpa e de rejeição da própria imagem. Esse era eu...

Uma vida de Sísifo, o personagem da mitologia grega que desafiou os Deuses do Olimpo e foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, enquanto estivesse vivo. Toda vez que se aproximava do cume, depois de muitas expiações e sacrifícios, a pedra rolava montanha abaixo, até o ponto de partida, por meio de uma força irresistível que tornava inútil o seu sofrimento. Mas Sísifo nunca desistia da vida, repetindo a mesma tarefa todos os dias, sem aceitar que, diante da sua pena, só a morte significaria a liberdade, impossível de se alcançar em sua vida inútil e sem recompensas. Mesmo assim, buscava dar sentido à própria existência, apegando-se à paixão pela vida, quase absurda naquelas circunstâncias, obtendo a felicidade na própria busca, enfim, no caminho, e não no objetivo, que se revelava sem sentido e inútil. A sua felicidade era um revolta contra os Deuses.

Nesse dia, olhei para os lados e percebi que o telefone não tocava há mais de três meses. Nada de mensagens! Nada de Adélia! As redes sociais pareciam um esquife para o meu corpo insepulto. Ninguém se lembrava da minha existência. O que teria acontecido?

Comecei a olhar o meu chá fumegante, seguindo, mentalmente, os vapores que se condensavam no frio da manhã. Meio entorpecido pelo transe hipnótico, o quarto foi ficando distante, sem forma, como uma pintura abstrata.

Estava na infância, aos sete anos de idade. Levantara-me, de madrugada, para ir ao banheiro. Morávamos numa casa de três quartos, com um amplo jardim e uma piscina. O maior pertencia aos meus pais, um casal de meia idade, preso em um casamento de aparências, que não durou muito tempo. Meu irmão, sendo o caçula, ocupava o menor, não porque o desejasse, mas porque era o único que sobrara na época do seu nascimento. O meu quarto ficava no fundo de um longo corredor, o mais distante do banheiro, fato sem importância, mas que se revelaria singular na minha vida.

Acordei com aquela sensação de bexiga estourando. Até sonhei que estava urinando e, ao acordar, percebi que um pequeno jato de urina escapara sem que eu percebesse. Segurei-o, tão logo me dei conta de que ainda estava na cama, e não no banheiro, como no sonho. Depois daquela espreguiçadinha gostosa, que antecedeu um longo bocejo, levantei-me, já preocupado em não me demorar acordado, para não perder o sono. Nem sei se foi exatamente por isso. Acho que as memórias daqueles dias se misturaram com a realidade dos tempos que se seguiram, talvez uma tentativa de embaralhar a verdade, facilitando o esquecimento. Mas a verdade, sem atos falhos ou esquecimentos eloquentes, é que a insônia foi — e continua sendo — uma companheira inseparável na minha vida. Não me lembro de quando surgiu, mas, por coincidência ou não, acho foi depois dos sete anos... Dúvidas que tentam revelar a verdade oculta, certezas que a mascaram!

No corredor, teria que passar pelo quarto dos meus pais e pelo do meu irmão, antes de alcançar o banheiro, que ficava próximo da sala de estar. Logo nos primeiros passos, vi que a luz do quarto dos meus pais estava acesa e a porta, entreaberta.

Quando passei, paralisei o movimento e olhei para o quarto. Vi um corpo sobre a cama, totalmente sem roupa. Era uma mulher, deitada, acariciando, suavemente, os lábios da sua vulva cheia de pelos, uma cena que se impregnou na minha mente infantil. Olhei para aquele corpo desnudo, que não percebera a minha presença no corredor, tão absorta estava em seus devaneios; ao menos, desejei acreditar nisso. Acho que o esquecimento de alguns detalhes da cena, como o olhar daquele personagem noturno, revela ainda mais do que a eventual recordação. Mesmo sem ver o rosto, imaginei que era a minha mãe, sozinha no meio da noite, masturbando-se, como vim a entender algum tempo depois. Lembro-me bem do seu sexo, assim, exposto e devassado, mas não do seu rosto. Bloqueei a memória do seu olhar e, contudo, sei que era a minha mãe. Freud deve ter uma explicação para o esquecimento do seu rosto!

Talvez seja uma resistência do ego aos desejos libidinais que o inconsciente tenta fazer emergir à consciência em busca de gratificação; uma forma de resistir à ideia de que aquele corpo era o da minha mãe, e de que experimentei desejos carnais por ela. Essa névoa que encobre a memória, que ainda não se desfez, apesar do tempo, deixa alguma dúvida no caminho da verdade que dói e dilacera a pureza virginal da maternidade, que desdoura a figura de Maria, a “imaculada”, mãe de Jesus. Mesmo agora, mais maduro, ainda não consigo ver o rosto da minha mãe lançada aos prazeres da carne. O esquecimento do seu rosto, com a lembrança apenas do corpo desnudo, talvez seja uma forma de resistência do ego, crispado pela dor, à revivência atual da memória traumática e dolorosa recalcada no passado.

Na verdade, esquecer o rosto de minha mãe e, mais que isso, não me recordar se o mirei naquela noite dos meus sete anos, pode ser um ponto de fuga do ego, que resiste à certeza de uma verdade que traz sofrimento e dor. A lembrança de uma mulher sem rosto pode ser ter sido a única forma de suportar uma dor com a qual não sabia lidar ou compreender. A atração que senti naquele momento, o verdadeiro despertar da minha libido, o ápice do meu amor edipiano, tinha como objeto uma mulher sem identidade e sem rosto, e não a minha própria mãe, a figura imaculada que me fez carne. Mas essas memórias, mesmo embaçadas, nunca se apagaram completamente...

Meu pai, como de costume, não havia retornado para casa. Certamente dormira na casa da Luzinete, uma jovem de vinte e poucos anos, que eu conhecera no verão anterior. Algumas vezes, talvez para não despertar suspeitas, creio eu hoje, meu pai me levava nas visitas que lhe fazia na hora do almoço, sempre com a promessa de irmos ao meu restaurante preferido, se eu não revelasse à minha mãe o nosso “segredinho”, enfatizando sempre que eu não deveria mencionar a nossa acompanhante. Ele sempre dizia, em voz baixa e com a boca encoberta pelas mãos, que a minha mãe não gostaria de saber que almoçáramos sem ela. Nessas visitinhas do meio-dia, o único problema era o tempo que ele passava no quarto da Luzinete, antes de sair ofegante e com os cabelos em desalinho. Eu ficava agonizando de fome, tentando escutar os gemidos incompreensíveis que vinham do quarto, àquela altura sem muito significado para um menino de sete anos...

Quando me dei conta de que era a minha mãe, desnuda naquele quarto, sozinha no meio da noite, contorcendo-se em convulsões ritmadas, fingi-me de sonâmbulo, quase por instinto, seguindo para o banheiro, com o olhar perdido, antes que ela percebesse a minha presença. Se a percebesse, imaginaria que eu, uma simples criança, seu próprio filho, não vira aquela cena de sexo solitário. Não que eu, àquela época, já compreendesse o seu significado, mas sabia, ao menos, que era algo que não deveria ter presenciado na inocência dos meus sete anos, em plena fase edipiana.

Fui ao banheiro e retornei sem falar uma só palavra, ainda extasiado com aquela cena. Pensei logo em meu pai, que não estava presente, o que era normal naqueles dias. E surgiu um ódio que nunca esqueci! Foi a primeira vez que odiei alguém de verdade! A imagem que tinha de meu pai nunca mais se reconstruiu; esvaneceu nas areias do tempo, encoberta pela raiva reprimida que passei a ter dele!

No dia seguinte, as nossas vidas seguiram seu curso... Minha mãe voltou a beber compulsivamente; meu pai continuou as suas aventuras na casa de Luzinete, às quais, não raro, acabava me arrastando, numa cumplicidade que eu não entendia, na inocência dos meus sete anos, mas que me beneficiava com alguns presentes, que compravam o meu silêncio conformado e me enchiam de culpa. Acabei percebendo, muito tempo depois, que a minha mãe, para dificultar as aventuras do meu pai, vez por outra também o obrigava a me levar. Não era bondade paterna...

Aquela cena, que submergiu no inconsciente da criança, tornou-se um martírio na vida do adulto, moldando o que fiz e, principalmente, o que deixei da fazer, menos pelo que recordava e muito mais pelo que esquecera. Na versão menos traumática, era apenas uma mulher carente, embriagada pelo álcool e atormentada por desejos insatisfeitos. Nem imagino o que ficou reprimido no meu inconsciente, embora tenha percebido que a autocomiseração de minha mãe, a solidão e os seus desejos insatisfeitos tenham passado para mim, como a repetição do seu comportamento de autossabotagem. Acabei associando o sexo à solidão de minha mãe, triste sina para quem sempre trocou as mulheres da sua vida, uma após outra, para acabar, sozinho, buscando prazer em noites escuras, num quarto perdido da cidade grande.

Na verdade, nunca tivemos laços de família, nada de cumplicidade entre pessoas que se amam. Nenhuma declaração de amor. Quando os conflitos surgiam, sempre mantínhamos um silêncio conformado, quase cúmplice, que gritava a nossa imaturidade. Nada se dizia! Meu pai saía para as suas aventuras e a minha mãe afogava-se no álcool, buscando, na fuga da realidade, a autopunição pelo seu conformismo e pelo seu destino, sempre culpando os outros por enterrar a própria cabeça na lama, um espelho de quem eu mesmo viria a ser com o passar dos anos. O cinismo dos culpados, uma das minhas heranças familiares, não me permite esquecer que o meu pai tinha um bom emprego e um belo salário, que comprava o conformismo da minha mãe, o corpo da Luzinete e o meu silêncio repleto de culpa...

Ainda na adolescência, eu os deixei, indo morar com parentes distantes. Essa seria uma fuga perfeita, se os meus traumas reprimidos não viajassem comigo, soterrados no inconsciente. Ninguém foge de si mesmo, eu aprenderia depois...

Agora, entre um gole e outro do meu chá, percebo que as mulheres da minha vida eram as Luzinetes do meu pai, jovens sem perspectiva e sem amor próprio, que se entregavam por um punhado de tostões ou em troca de presentes, fartamente distribuídos pela minha insegurança, que me fazia comprar os afetos que eu me considerava incapaz de conquistar. Sempre fui como a minha mãe: o filho que sabota a própria felicidade, copiando os comportamentos nocivos dos pais, que já os copiaram dos avós, numa reação em cadeia que nunca termina. Entregava-me à autopiedade conformista, lamentando as injustiças do mundo e buscando culpados para as minhas próprias atitudes imaturas e omissões covardes. Só o álcool me entendia!

As minhas reações, nos momentos decisivos, sempre foram de fuga da realidade — ou de autossabotagem —, uma estranha certeza de que nada poderia dar certo comigo, a exemplo do que acontecera com a minha mãe, que se entregou à bebida e vive mendigando carinho e dinheiro de pessoas que nada sentem por ela. Perdeu o emprego que tinha e jamais se recuperou. Vive à míngua em algum lugar do Rio de janeiro. Não a visito há muitos anos, para não me ver naquela mulher indefesa, com um passado que não consegue esquecer nem perdoar, e um futuro que não consegue construir. Meu pai, figura ausente e distante, perdeu-se no tempo das minhas memórias, embora perceba, agora, que as minhas tentativas de recalcá-lo no inconsciente eram ilusórias, uma simples defesa do ego que não sabe lidar com a dor.

Espelho do que minha mãe sempre foi, acabei me entregando à bebida e à autopiedade. Repetindo meu pai, acabei caindo numa sucessão interminável de relacionamentos superficiais com mulheres jovens, que percebiam as minhas carências, suportavam enquanto lhes convinha e, depois, se afastavam.

E sempre a mesma reação da minha parte: simplesmente as acusava de se haverem aproveitado das minhas fraquezas, sem assumir que eu buscava sempre o mesmo tipo de pessoa, cometia os mesmos erros, na expectativa de resultados diferentes. Enquanto reexperimentava os traumas reprimidos, buscando parceiras do mesmo tipo, o processo de autossabotagem me afastava cada vez mais da felicidade. Recalcava as minhas culpas e as depositava na mais nova parceira, sem perceber que a nova era um espelho da anterior, que, por sua vez, era a minha própria imagem refletida no espelho. E a minha imagem, talvez, fosse a reedição do meu pai, a quem eu tanto odiava! Odiava a mim mesmo, odiando meu pai!

Mesmo sem perceber, agia como um vampiro emocional, sugando a energia das mulheres com a minha carência afetiva. Como nunca tive amigos, não buscava uma parceira para caminhar ao lado, mas uma vítima para me fundir numa só pessoa, abstraindo as nossas próprias identidades. De início, até dava certo, mas elas logo se cansavam de preencher a minha incompletude. Sentiam falta dos seus próprios amigos, de quem se afastavam para estarem comigo, sendo sugadas até a última gota de sua energia vital. Na tentativa de fundir duas vidas, vivíamos um para ou outro, numa simbiose que nunca dava certo. O velho ciclo da perda se repetia, quando a energia do outro chegava ao seu fim. E eu voltava à minha cama, para o sexo solitário, reproduzindo o que a minha mãe fez naquele dia que nunca se apagou da memória...

Para mim, esses ciclos de felicidade, por mais breves que fossem, eram melhores do que a alternativa de estar sozinho, por não ter amigos nem parentes para dividir o fardo da vida. Mas não existem relacionamentos de um só.  Mesmo quando existe amor, ninguém suporta uma relação em que se perde a individualidade, para se viver a vida do outro! Mais cedo ou mais tarde, eu recebia o bilhete azul e reiniciava o ciclo das culpas, buscando algum defeito no outro, para esconder dos amigos e, principalmente, de mim mesmo as minhas próprias culpas. Ela era isso, era aquilo... Contava ao mundo a mulher diabólica que ela fora, acalmando o inconsciente e tentando me convencer de que eu era um pobre injustiçado, vítima de uma mulher fria e sem coração. Exatamente o que a minha mãe dizia do meu pai, sem perceber, talvez, que ela mesma, com o autoabandono, deixara de ser a mulher alegre e feliz que se casara com ele, a pessoa inteligente e sedutora que fora um dia, que o desafiara por ser misteriosa e plena, que o seduzira por ser forte e decidida. Eu mesmo, como a minha mãe, fui perdendo, a pouco e pouco, os encantos que, agora, eram das Luzinetes e Ricardões desse mundo de vaidades.

Nos momentos mais íntimos, nem a carne jovem e rígida dessas mulheres sem rosto me livrava de alguns escorregões na libido, instantes de horror em que as câmaras do meu pênis não se enchiam de sangue, ocasiões em que a simples lembrança da minha mãe, desnuda numa noite da infância, desfazia o erotismo da cena. Só me restavam as desculpas de sempre. Ainda bem que me tornara alcoólatra, e a bebida explicava os silêncios constrangedores.

A sedução daquele corpo nu, perdido na infância, sepultou a minha sexualidade. E sem a figura de um pai, acabei perdendo a referência masculina, que poderia equilibrar o amor edipiano por minha mãe, de quem sempre fugi, para me livrar da culpa por desejá-la.

A meu pai, dediquei o meu ódio mais intenso, que nunca declarei, reprimindo sentimentos profundamente enraizados na infância perdida, na amarga ilusão de que os afogara no esquecimento. Mas não se matam sentimentos, nem se apagam traumas com o tapete do medo.

Acabei o meu chá e, por impulso do inconsciente, fui visitar o meu pai, depois de alguns anos sem vê-lo. Não sabia o que esperar, ou sabia, bem no fundo do inconsciente. Acho que fui meio sem querer, mas, ainda assim, querendo. Encontrei-o com idade avançada, profundos sulcos no rosto, mas o mesmo ar prepotente, que me fazia lembrar minha mãe, no meio da noite, tentando encontrar, no prazer solitário, uma forma de descarregar a sexualidade distante, que sublimara na bebida.

A única coisa que me veio à mente foi o incontrolável desejo de matá-lo, pondo fim à vida daquele a quem eu culpava por me roubar a família e a inocência, numa noite perdida dos meus sete anos. Quanto ódio e ressentimento eu tinha represado no inconsciente! Passei a vida recalcando as minhas dores e os sentimentos que elas despertavam, e acabei represando um oceano. Era natural a ruptura nas defesas do ego, que veio, por ironia do destino, no único momento em que eu poderia mudar os caminhos da minha existência, libertando-me das memórias que me faziam fugir de mim mesmo.

Pensei que a maturidade, com a percepção dos eventos em perspectiva, como num insight freudiano, libertar-me-ia da escravidão aos eventos traumáticos da infância, levando-me, quem sabe, a perdoar meu pai. Ledo engano! Quando as memórias traumáticas libertam-se das amarras do inconsciente, onde permaneceram recalcadas, e afloram à consciência, enfrentam resistências, muitas vezes invencíveis, para que mergulhem, novamente, nos mares profundos em que se escondiam. Não queria passar a vida fugindo!

Na luta entre o coração e a razão, entre o ódio e o amor filial, a vida passou diante dos meus olhos, numa analepse profunda, que recuou no tempo das  minhas memórias mais distantes. Quando vi meu pai naquela cadeira de balanço, a mesma em que eu haveria de estar em breve, não suportei ver, nele, a  imagem do meu próprio futuro, condensada no espelho, em progressiva e dinâmica decadência. Num ato de loucura e revolta com a triste figura que via em meu pai, dilacerei seu corpo com um punhal, que cravei mais de cem vezes, com um prazer que nunca sentira nessa vida de tormentos. Senti a sua respiração e o último suspiro, um grito sufocado pelo sangue. Gozei como nunca me acontecera na vida. Sentia-me livre das correntes que me amarravam ao passado. Larguei, enfim, a pedra de Sísifo!

Vi um caderno na mesa e, absorto nos meus devaneios, consegui descarregar as emoções que sempre escondera.

Logo depois, escrevi uma carta para a minha mãe. Lembrei-me de ligar, na esperança de que o seu telefone ainda fosse o de outros tempos. Enfim, ela atendeu, estranhou a ligação, mas reconheceu a minha voz, embargada pela emoção. Disse-lhe que a amava e que cansara de enfrentar a minha dor... Li a carta que acabara de escrever:

“Minha querida mãezinha:
Enquanto os corvos, famintos, rapinam em liberdade, sugando a última gota do teu sangue, tu agonizas, no fundo do oceano, à espera de um milagre.
Ao contrário de Prometeu, não roubaste o fogo de Zeus para dar aos homens, mas continuas amarrada aos teus grilhões, enquanto as aves de rapina se alimentam do teu fígado.
Como Hércules, quebrei as tuas correntes, rogando que a esperança, sempre a última que nos abandona, ainda não tenha desaparecido do teu coração e que, liberta, tu possas, enfim, limpar, com o sal dos oceanos, as tuas feridas.
Estás livre do castigo. Zeus está morto!
Não esperes meu pai nessa vida.
Finalmente vou descansar dos meus tormentos, depois de rolar a pedra da minha vida por 40 anos. Cansei da revolta sem sentido, cansei de ser o Sísifo dos tormentos a que eu mesmo me condenei! Fui o Deus do meu próprio castigo! A única certeza é a morte, e sou o juiz do seu tempo! Pela primeira vez, fiz uma escolha livre.”

Poucos momentos depois, os vizinhos encontraram o corpo de um homem de idade no apartamento 701, dilacerado por um punhal, que ficara cravado no corpo. Na calçada em frente ao prédio, encontraram o corpo de um homem de meia idade, com uma carta nas mãos, ainda crispadas pelo terror. Em cima da mesa de jantar, algumas páginas de caderno, com um pequeno conto, manchado com gotas de sangue: “Cenas de amor edipiano”.

Enquanto a cena se desfazia num antigo prédio da Barata Ribeiro, os vizinhos da Ladeira dos Tabajaras se agitavam. Notícia trágica corre mais rápido que o pensamento... Uns diziam que foi chifre; outros, que o pobre coitado era louco. Os mais criativos chegaram a dizer que era amor de “viado”. O Lustosa, no alto de um sobrado verde, abriu as janelas e começou a gritar: já vai tarde, seu filho da puta! Vai comer a mulher do capeta, seu canalha!

Depois da limpeza, umas gotinhas de sangue na calçada, testemunhas efêmeras da tragédia em Copacabana, foram o único legado de uma existência.

Post Scriptum: este conto é obra puramente ficcional! Qualquer semelhança com fatos ou personagens da vida real é mera coincidência!