ADVERTÊNCIA PRÉVIA: o
presente conto, escrito para adultos — de preferência amadurecidos,
emocionalmente —, apresenta cenas de violência e incesto, não sendo
recomendável, por sua temática e linguagem, para os falsos moralistas, nem para
as pessoas sensíveis às sombras humanas.
Cenas de amor em Copacabana
Conto escrito por Jorge Araken Filho
Nunca tive muitos amigos, nem na escola e
ainda menos na vida profissional! Sempre fui um lobo solitário, vagando, sem
destino, nas pradarias e campos da vida, idealizando virtudes que nunca tive e
ocultando defeitos insondáveis. Sempre cheio de mim, senhor da razão, protegido
na onipotência narcísica que escondia as minhas fraquezas, projetava no mundo
uma imagem de felicidade aparente, de sucesso fingido, sempre dependendo da aceitação
dos outros. E, contudo, nunca me aceitava sob aquela máscara de sabedoria.
Quem sou eu? Não importa... Nada de nomes verdadeiros
por aqui! Pretendo revelar apenas os milagres, sem indicar o santo.
Na verdade, nem eu mesmo me conhecia; buscava,
na aceitação dos outros, a minha própria identidade. Aliás, fazia de tudo para
não me conhecer, com medo, talvez, de descobrir a verdade por trás da máscara,
o odor de podre da minha alma, que eu não suportava sentir em mim mesmo e lançava
sobre os outros, com cheiro de intolerância narcísica.
Projetar as minhas culpas era o meu segredo
de vida, nessa busca pela piedade dos amigos. Todos eram culpados pelo meu
destino, menos eu, a pobre vítima de uma grande conspiração cósmica que me
condenava ao inferno e à infelicidade.
Tinha aquela estranha vontade, quase
instintiva, que vinha do inconsciente, de mostrar aos amigos que expiava os
pecados do mundo, que sofria nas mãos de pessoas impuras, mas me esquecia de
olhar para dentro, quem sabe para me aceitar sem negações ou fantasias, percebendo-me
como um ser humano banal e pequeno, falível, como todos, mas consciente de que,
sob a máscara social, eu era apenas eu mesmo e as minhas próprias
circunstancias, um cara cheio de defeitos e algumas virtudes, que não dependia
da aceitação de ninguém para ser feliz. Mas nunca foi assim...
Quanto mais me alienava do meu verdadeiro eu,
mais me aprisionava aos medos e anseios que antecipavam os meus traumas,
fazendo-os viver em espírito antes da própria vivência concreta. Sofria por
antecipação. E os meus julgamentos sobre mim mesmo, quase sempre mais severos do
que o olhar alheio, acabavam por me prender no molde de outras vivências.
Vagava, sem identidade, por uma existência
que não era vivida no presente, mas num passado de tormentos reprimidos no
inconsciente, nunca amadurecidos pela compreensão, e num futuro de angústias,
que criavam os enredos que acabavam acontecendo, não porque fossem o meu fado cruel
e infalível, mas porque eu mesmo os perseguira, movendo as engrenagens do
destino.
Era o inconsciente moldando a vida consciente.
E o ego, tentando alhear-se ao que se passa na parte submersa do iceberg,
continuava a atribuir as minhas desventuras ao destino. Era uma reação defensiva
do ego crispado pela dor.
Um dia tudo mudou...
Foi num domingo de inverno que me olhei no
espelho pela primeira vez. Sempre flertei com o medo de acabar na solidão, mas
nunca me dei conta de que, na verdade, sempre estive sozinho: eu mesmo cavei a
sepultura onde haveria de enterrar o meu destino, afastando as pessoas, para
evitar, talvez, que tirassem a máscara que me escondia de mim mesmo.
Caía aquela chuvinha insistente, meio
nostálgica, que evocava o passado, trazendo à memória os dias tristes de uma
vida que caminha para o seu ocaso. Olhava a Ladeira dos Tabajaras pela pequena
janela, que logo abri, para sentir a umidade no rosto, relembrar os tempos de
criança, quando ainda brincava na chuva com os meninos da vizinhança. Será que
cometi um ato falho, lembrando “amigos” de infância numa vida sem amigos?
Fazia frio na Cidade Maravilhosa, o céu ainda
carregado de nuvens, algumas com formas estranhas, que lembravam os algodões
doces da minha infância perdida, dos tempos em que ainda me via como um ser
humano especial, predestinado ao sucesso, um poço de virtudes e muitos defeitos
a corrigir, nunca em mim, sempre nos outros, para que fique bem claro.
Imaginava o mundo como o palco dos meus
feitos heroicos, sonhava com um futuro de glórias, sem ver as minhas próprias sombras.
Uma fase de sonhos, que não me fazia despertar. Sempre com os olhos voltados
para fora, para o que haveria de realizar no mundo, esquecera-me de olhar para
dentro, com medo de perceber que não estava preparado para transformar sonhos
em realidade. Imaturo nas emoções, incapaz de lidar com os desafios e
dissabores da vida, era muito forte e decidido, até ser contrariado... Era só desfazer
as minhas expectativas, e eu virava o próprio capeta com chifre e tudo!
Em plena crise da meia-idade, solitário,
depois de muitos amores perdidos, quase sempre idealizados pela minha própria carência
afetiva, só pensava em fugir dos desafios que fui levado a enfrentar nessa fase
da vida, quando muitos já buscam um cantinho, um amor e uma lareira. Eu ainda
convivia com os esqueletos do armário, sem sepultura, velhas histórias
inacabadas e mal resolvidas.
Fiz um chá e me sentei próximo à janela. Aquela
névoa, que saía da xícara, serpenteava no meu pequeno quarto. Logo à frente, divisava
a descida íngreme da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, lugar onde passei a
viver depois de perder as minhas posses no arriscado jogo da vida. Tentava
descobrir algum traço da mulher do Lustosa, a jovem Adélia, uma deusa de ébano,
na flor dos dezoito anos, que massageava o meu ego nas noites de plantão do
marido. As ruas, estranhamente vazias, evocavam os meus desejos esquecidos,
sublimados na solidão dos desgarrados, que vagam em noites frias, em busca de sentido
para essa vida absurda, que se acaba quando nos apaixonamos por ela. Nenhuma
criança brincando na chuva; nenhuma alma desafiando aquela manhã de domingo.
Acho que o medo do outro nos faz reféns de
nós mesmos. Somos obrigados a conviver com os demônios do inconsciente. Esse
processo, doloroso como a picada de uma serpente, pode ser o início da
maturidade e da cura, forçada, embora, pelas circunstâncias. Mas nem sempre...
Muitas vezes, a percepção da autossabotagem, sendo meramente intelectual, não
traz a mudança real e concreta do comportamento nocivo que se repete, nem dos
sentimentos a ele associados, permanecendo, a percepção de si próprio, alterada
por sentimentos de culpa e de rejeição da própria imagem. Esse era eu...
Uma vida de Sísifo, o personagem da mitologia grega que
desafiou os Deuses do Olimpo e foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de
uma montanha, enquanto estivesse vivo. Toda vez que se aproximava do cume,
depois de muitas expiações e sacrifícios, a pedra rolava montanha abaixo, até o
ponto de partida, por meio de uma força irresistível que tornava inútil o seu sofrimento.
Mas Sísifo nunca desistia da vida, repetindo a mesma tarefa todos os dias, sem
aceitar que, diante da sua pena, só a morte significaria a liberdade,
impossível de se alcançar em sua vida inútil e sem recompensas. Mesmo assim, buscava
dar sentido à própria existência, apegando-se à paixão pela vida, quase absurda
naquelas circunstâncias, obtendo a felicidade na própria busca, enfim, no
caminho, e não no objetivo, que se revelava sem sentido e inútil. A sua
felicidade era um revolta contra os Deuses.
Nesse dia, olhei para os lados e percebi que
o telefone não tocava há mais de três meses. Nada de mensagens! Nada de Adélia!
As redes sociais pareciam um esquife para o meu corpo insepulto. Ninguém se
lembrava da minha existência. O que teria acontecido?
Comecei a olhar o meu chá fumegante,
seguindo, mentalmente, os vapores que se condensavam no frio da manhã. Meio
entorpecido pelo transe hipnótico, o quarto foi ficando distante, sem forma,
como uma pintura abstrata.
Estava na infância, aos sete anos de idade.
Levantara-me, de madrugada, para ir ao banheiro. Morávamos numa casa de três
quartos, com um amplo jardim e uma piscina. O maior pertencia aos meus pais, um
casal de meia idade, preso em um casamento de aparências, que não durou muito
tempo. Meu irmão, sendo o caçula, ocupava o menor, não porque o desejasse, mas
porque era o único que sobrara na época do seu nascimento. O meu quarto ficava
no fundo de um longo corredor, o mais distante do banheiro, fato sem
importância, mas que se revelaria singular na minha vida.
Acordei com aquela sensação de bexiga
estourando. Até sonhei que estava urinando e, ao acordar, percebi que um
pequeno jato de urina escapara sem que eu percebesse. Segurei-o, tão logo me
dei conta de que ainda estava na cama, e não no banheiro, como no sonho. Depois
daquela espreguiçadinha gostosa, que antecedeu um longo bocejo, levantei-me, já
preocupado em não me demorar acordado, para não perder o sono. Nem sei se foi
exatamente por isso. Acho que as memórias daqueles dias se misturaram com a
realidade dos tempos que se seguiram, talvez uma tentativa de embaralhar a
verdade, facilitando o esquecimento. Mas a verdade, sem atos falhos ou
esquecimentos eloquentes, é que a insônia foi — e continua sendo — uma
companheira inseparável na minha vida. Não me lembro de quando surgiu, mas, por
coincidência ou não, acho foi depois dos sete anos... Dúvidas que tentam revelar
a verdade oculta, certezas que a mascaram!
No corredor, teria que passar pelo quarto dos
meus pais e pelo do meu irmão, antes de alcançar o banheiro, que ficava próximo
da sala de estar. Logo nos primeiros passos, vi que a luz do quarto dos meus
pais estava acesa e a porta, entreaberta.
Quando passei, paralisei o movimento e olhei
para o quarto. Vi um corpo sobre a cama, totalmente sem roupa. Era uma mulher,
deitada, acariciando, suavemente, os lábios da sua vulva cheia de pelos, uma
cena que se impregnou na minha mente infantil. Olhei para aquele corpo desnudo,
que não percebera a minha presença no corredor, tão absorta estava em seus
devaneios; ao menos, desejei acreditar nisso. Acho que o esquecimento de alguns
detalhes da cena, como o olhar daquele personagem noturno, revela ainda mais do
que a eventual recordação. Mesmo sem ver o rosto, imaginei que era a minha mãe,
sozinha no meio da noite, masturbando-se, como vim a entender algum tempo
depois. Lembro-me bem do seu sexo, assim, exposto e devassado, mas não do seu
rosto. Bloqueei a memória do seu olhar e, contudo, sei que era a minha mãe. Freud
deve ter uma explicação para o esquecimento do seu rosto!
Talvez seja uma resistência do ego aos desejos
libidinais que o inconsciente tenta fazer emergir à consciência em busca de gratificação;
uma forma de resistir à ideia de que aquele corpo era o da minha mãe, e de que experimentei
desejos carnais por ela. Essa névoa que encobre a memória, que ainda não se desfez,
apesar do tempo, deixa alguma dúvida no caminho da verdade que dói e dilacera a
pureza virginal da maternidade, que desdoura a figura de Maria, a “imaculada”, mãe
de Jesus. Mesmo agora, mais maduro, ainda não consigo ver o rosto da minha mãe lançada
aos prazeres da carne. O esquecimento do seu rosto, com a lembrança apenas do corpo
desnudo, talvez seja uma forma de resistência do ego, crispado pela dor, à
revivência atual da memória traumática e dolorosa recalcada no passado.
Na verdade, esquecer o rosto de minha mãe e,
mais que isso, não me recordar se o mirei naquela noite dos meus sete anos,
pode ser um ponto de fuga do ego, que resiste à certeza de uma verdade que traz
sofrimento e dor. A lembrança de uma mulher sem rosto pode ser ter sido a única
forma de suportar uma dor com a qual não sabia lidar ou compreender. A atração
que senti naquele momento, o verdadeiro despertar da minha libido, o ápice do meu
amor edipiano, tinha como objeto uma mulher sem identidade e sem rosto, e não a
minha própria mãe, a figura imaculada que me fez carne. Mas essas memórias, mesmo
embaçadas, nunca se apagaram completamente...
Meu pai, como de costume, não havia retornado
para casa. Certamente dormira na casa da Luzinete, uma jovem de vinte e poucos
anos, que eu conhecera no verão anterior. Algumas vezes, talvez para não
despertar suspeitas, creio eu hoje, meu pai me levava nas visitas que lhe fazia
na hora do almoço, sempre com a promessa de irmos ao meu restaurante preferido,
se eu não revelasse à minha mãe o nosso “segredinho”, enfatizando sempre que eu
não deveria mencionar a nossa acompanhante. Ele sempre dizia, em voz baixa e
com a boca encoberta pelas mãos, que a minha mãe não gostaria de saber que
almoçáramos sem ela. Nessas visitinhas do meio-dia, o único problema era o
tempo que ele passava no quarto da Luzinete, antes de sair ofegante e com os
cabelos em desalinho. Eu ficava agonizando de fome, tentando escutar os gemidos
incompreensíveis que vinham do quarto, àquela altura sem muito significado para
um menino de sete anos...
Quando me dei conta de que era a minha mãe,
desnuda naquele quarto, sozinha no meio da noite, contorcendo-se em convulsões
ritmadas, fingi-me de sonâmbulo, quase por instinto, seguindo para o banheiro,
com o olhar perdido, antes que ela percebesse a minha presença. Se a
percebesse, imaginaria que eu, uma simples criança, seu próprio filho, não vira
aquela cena de sexo solitário. Não que eu, àquela época, já compreendesse o seu
significado, mas sabia, ao menos, que era algo que não deveria ter presenciado
na inocência dos meus sete anos, em plena fase edipiana.
Fui ao banheiro e retornei sem falar uma só
palavra, ainda extasiado com aquela cena. Pensei logo em meu pai, que não
estava presente, o que era normal naqueles dias. E surgiu um ódio que nunca
esqueci! Foi a primeira vez que odiei alguém de verdade! A imagem que tinha de
meu pai nunca mais se reconstruiu; esvaneceu nas areias do tempo, encoberta
pela raiva reprimida que passei a ter dele!
No dia seguinte, as nossas vidas seguiram seu
curso... Minha mãe voltou a beber compulsivamente; meu pai continuou as suas
aventuras na casa de Luzinete, às quais, não raro, acabava me arrastando, numa
cumplicidade que eu não entendia, na inocência dos meus sete anos, mas que me
beneficiava com alguns presentes, que compravam o meu silêncio conformado e me
enchiam de culpa. Acabei percebendo, muito tempo depois, que a minha mãe, para
dificultar as aventuras do meu pai, vez por outra também o obrigava a me levar.
Não era bondade paterna...
Aquela cena, que submergiu no inconsciente da
criança, tornou-se um martírio na vida do adulto, moldando o que fiz e,
principalmente, o que deixei da fazer, menos pelo que recordava e muito mais
pelo que esquecera. Na versão menos traumática, era apenas uma mulher carente,
embriagada pelo álcool e atormentada por desejos insatisfeitos. Nem imagino o
que ficou reprimido no meu inconsciente, embora tenha percebido que a
autocomiseração de minha mãe, a solidão e os seus desejos insatisfeitos tenham
passado para mim, como a repetição do seu comportamento de autossabotagem.
Acabei associando o sexo à solidão de minha mãe, triste sina para quem sempre
trocou as mulheres da sua vida, uma após outra, para acabar, sozinho, buscando
prazer em noites escuras, num quarto perdido da cidade grande.
Na verdade, nunca tivemos laços de família,
nada de cumplicidade entre pessoas que se amam. Nenhuma declaração de amor.
Quando os conflitos surgiam, sempre mantínhamos um silêncio conformado, quase
cúmplice, que gritava a nossa imaturidade. Nada se dizia! Meu pai saía para as
suas aventuras e a minha mãe afogava-se no álcool, buscando, na fuga da
realidade, a autopunição pelo seu conformismo e pelo seu destino, sempre
culpando os outros por enterrar a própria cabeça na lama, um espelho de quem eu
mesmo viria a ser com o passar dos anos. O cinismo dos culpados, uma das minhas
heranças familiares, não me permite esquecer que o meu pai tinha um bom emprego
e um belo salário, que comprava o conformismo da minha mãe, o corpo da Luzinete
e o meu silêncio repleto de culpa...
Ainda na adolescência, eu os deixei, indo
morar com parentes distantes. Essa seria uma fuga perfeita, se os meus traumas
reprimidos não viajassem comigo, soterrados no inconsciente. Ninguém foge de si
mesmo, eu aprenderia depois...
Agora, entre um gole e outro do meu chá,
percebo que as mulheres da minha vida eram as Luzinetes do meu pai, jovens sem
perspectiva e sem amor próprio, que se entregavam por um punhado de tostões ou
em troca de presentes, fartamente distribuídos pela minha insegurança, que me
fazia comprar os afetos que eu me considerava incapaz de conquistar. Sempre fui
como a minha mãe: o filho que sabota a própria felicidade, copiando os
comportamentos nocivos dos pais, que já os copiaram dos avós, numa reação em
cadeia que nunca termina. Entregava-me à autopiedade conformista, lamentando as
injustiças do mundo e buscando culpados para as minhas próprias atitudes imaturas
e omissões covardes. Só o álcool me entendia!
As minhas reações, nos momentos decisivos,
sempre foram de fuga da realidade — ou de autossabotagem —, uma estranha certeza
de que nada poderia dar certo comigo, a exemplo do que acontecera com a minha
mãe, que se entregou à bebida e vive mendigando carinho e dinheiro de pessoas
que nada sentem por ela. Perdeu o emprego que tinha e jamais se recuperou. Vive
à míngua em algum lugar do Rio de janeiro. Não a visito há muitos anos, para
não me ver naquela mulher indefesa, com um passado que não consegue esquecer nem
perdoar, e um futuro que não consegue construir. Meu pai, figura ausente e
distante, perdeu-se no tempo das minhas memórias, embora perceba, agora, que as
minhas tentativas de recalcá-lo no inconsciente eram ilusórias, uma simples
defesa do ego que não sabe lidar com a dor.
Espelho do que minha mãe sempre foi, acabei
me entregando à bebida e à autopiedade. Repetindo meu pai, acabei caindo numa
sucessão interminável de relacionamentos superficiais com mulheres jovens, que
percebiam as minhas carências, suportavam enquanto lhes convinha e, depois, se
afastavam.
E sempre a mesma reação da minha parte:
simplesmente as acusava de se haverem aproveitado das minhas fraquezas, sem
assumir que eu buscava sempre o mesmo tipo de pessoa, cometia os mesmos erros, na
expectativa de resultados diferentes. Enquanto reexperimentava os traumas
reprimidos, buscando parceiras do mesmo tipo, o processo de autossabotagem me
afastava cada vez mais da felicidade. Recalcava as minhas culpas e as depositava
na mais nova parceira, sem perceber que a nova era um espelho da anterior, que,
por sua vez, era a minha própria imagem refletida no espelho. E a minha imagem,
talvez, fosse a reedição do meu pai, a quem eu tanto odiava! Odiava a mim
mesmo, odiando meu pai!
Mesmo sem perceber, agia como um vampiro
emocional, sugando a energia das mulheres com a minha carência afetiva. Como
nunca tive amigos, não buscava uma parceira para caminhar ao lado, mas uma
vítima para me fundir numa só pessoa, abstraindo as nossas próprias identidades.
De início, até dava certo, mas elas logo se cansavam de preencher a minha incompletude.
Sentiam falta dos seus próprios amigos, de quem se afastavam para estarem
comigo, sendo sugadas até a última gota de sua energia vital. Na tentativa de
fundir duas vidas, vivíamos um para ou outro, numa simbiose que nunca dava
certo. O velho ciclo da perda se repetia, quando a energia do outro chegava ao seu
fim. E eu voltava à minha cama, para o sexo solitário, reproduzindo o que a minha
mãe fez naquele dia que nunca se apagou da memória...
Para mim, esses ciclos de felicidade, por
mais breves que fossem, eram melhores do que a alternativa de estar sozinho,
por não ter amigos nem parentes para dividir o fardo da vida. Mas não existem
relacionamentos de um só. Mesmo quando
existe amor, ninguém suporta uma relação em que se perde a individualidade,
para se viver a vida do outro! Mais cedo ou mais tarde, eu recebia o bilhete
azul e reiniciava o ciclo das culpas, buscando algum defeito no outro, para
esconder dos amigos e, principalmente, de mim mesmo as minhas próprias culpas.
Ela era isso, era aquilo... Contava ao mundo a mulher diabólica que ela fora,
acalmando o inconsciente e tentando me convencer de que eu era um pobre
injustiçado, vítima de uma mulher fria e sem coração. Exatamente o que a minha mãe
dizia do meu pai, sem perceber, talvez, que ela mesma, com o autoabandono, deixara
de ser a mulher alegre e feliz que se casara com ele, a pessoa inteligente e sedutora
que fora um dia, que o desafiara por ser misteriosa e plena, que o seduzira por
ser forte e decidida. Eu mesmo, como a minha mãe, fui perdendo, a pouco e pouco,
os encantos que, agora, eram das Luzinetes e Ricardões desse mundo de vaidades.
Nos momentos mais íntimos, nem a carne jovem
e rígida dessas mulheres sem rosto me livrava de alguns escorregões na libido, instantes
de horror em que as câmaras do meu pênis não se enchiam de sangue, ocasiões em
que a simples lembrança da minha mãe, desnuda numa noite da infância, desfazia
o erotismo da cena. Só me restavam as desculpas de sempre. Ainda bem que me
tornara alcoólatra, e a bebida explicava os silêncios constrangedores.
A sedução daquele corpo nu, perdido na
infância, sepultou a minha sexualidade. E sem a figura de um pai, acabei
perdendo a referência masculina, que poderia equilibrar o amor edipiano por
minha mãe, de quem sempre fugi, para me livrar da culpa por desejá-la.
A meu pai, dediquei o meu ódio mais intenso,
que nunca declarei, reprimindo sentimentos profundamente enraizados na infância
perdida, na amarga ilusão de que os afogara no esquecimento. Mas não se matam
sentimentos, nem se apagam traumas com o tapete do medo.
Acabei o meu chá e, por impulso do
inconsciente, fui visitar o meu pai, depois de alguns anos sem vê-lo. Não sabia
o que esperar, ou sabia, bem no fundo do inconsciente. Acho que fui meio sem
querer, mas, ainda assim, querendo. Encontrei-o com idade avançada, profundos
sulcos no rosto, mas o mesmo ar prepotente, que me fazia lembrar minha mãe, no
meio da noite, tentando encontrar, no prazer solitário, uma forma de
descarregar a sexualidade distante, que sublimara na bebida.
A única coisa que me veio à mente foi o
incontrolável desejo de matá-lo, pondo fim à vida daquele a quem eu culpava por
me roubar a família e a inocência, numa noite perdida dos meus sete anos.
Quanto ódio e ressentimento eu tinha represado no inconsciente! Passei a vida
recalcando as minhas dores e os sentimentos que elas despertavam, e acabei
represando um oceano. Era natural a ruptura nas defesas do ego, que veio, por
ironia do destino, no único momento em que eu poderia mudar os caminhos da
minha existência, libertando-me das memórias que me faziam fugir de mim mesmo.
Pensei que a maturidade, com a percepção dos
eventos em perspectiva, como num insight freudiano, libertar-me-ia da
escravidão aos eventos traumáticos da infância, levando-me, quem sabe, a perdoar
meu pai. Ledo engano! Quando as memórias traumáticas libertam-se das amarras do
inconsciente, onde permaneceram recalcadas, e afloram à consciência, enfrentam
resistências, muitas vezes invencíveis, para que mergulhem, novamente, nos
mares profundos em que se escondiam. Não queria passar a vida fugindo!
Na luta entre o coração e a razão, entre o
ódio e o amor filial, a vida passou diante dos meus olhos, numa analepse
profunda, que recuou no tempo das minhas memórias mais distantes. Quando
vi meu pai naquela cadeira de balanço, a mesma em que eu haveria de estar em
breve, não suportei ver, nele, a imagem
do meu próprio futuro, condensada no espelho, em progressiva e dinâmica
decadência. Num ato de loucura e revolta com a triste figura que via em meu pai,
dilacerei seu corpo com um punhal, que cravei mais de cem vezes, com um prazer
que nunca sentira nessa vida de tormentos. Senti a sua respiração e o último
suspiro, um grito sufocado pelo sangue. Gozei como nunca me acontecera na vida.
Sentia-me livre das correntes que me amarravam ao passado. Larguei, enfim, a
pedra de Sísifo!
Vi um caderno na mesa e, absorto nos meus
devaneios, consegui descarregar as emoções que sempre escondera.
Logo depois, escrevi uma carta para a minha
mãe. Lembrei-me de ligar, na esperança de que o seu telefone ainda fosse o de
outros tempos. Enfim, ela atendeu, estranhou a ligação, mas reconheceu a minha
voz, embargada pela emoção. Disse-lhe que a amava e que cansara de enfrentar a
minha dor... Li a carta que acabara de escrever:
“Minha querida mãezinha:
Enquanto os corvos, famintos, rapinam em
liberdade, sugando a última gota do teu sangue, tu agonizas, no fundo do
oceano, à espera de um milagre.
Ao contrário de Prometeu, não roubaste o fogo
de Zeus para dar aos homens, mas continuas amarrada aos teus grilhões, enquanto
as aves de rapina se alimentam do teu fígado.
Como Hércules, quebrei as tuas correntes, rogando
que a esperança, sempre a última que nos abandona, ainda não tenha desaparecido
do teu coração e que, liberta, tu possas, enfim, limpar, com o sal dos oceanos,
as tuas feridas.
Estás livre do castigo. Zeus está morto!
Não esperes meu pai nessa vida.
Finalmente vou descansar dos meus tormentos,
depois de rolar a pedra da minha vida por 40 anos. Cansei da revolta sem
sentido, cansei de ser o Sísifo dos tormentos a que eu mesmo me condenei! Fui o
Deus do meu próprio castigo! A única certeza é a morte, e sou o juiz do seu
tempo! Pela primeira vez, fiz uma escolha livre.”
Poucos momentos depois, os vizinhos
encontraram o corpo de um homem de idade no apartamento 701, dilacerado por um
punhal, que ficara cravado no corpo. Na calçada em frente ao prédio, encontraram
o corpo de um homem de meia idade, com uma carta nas mãos, ainda crispadas pelo
terror. Em cima da mesa de jantar, algumas páginas de caderno, com um pequeno
conto, manchado com gotas de sangue: “Cenas
de amor edipiano”.
Enquanto a cena se desfazia num antigo prédio
da Barata Ribeiro, os vizinhos da Ladeira dos Tabajaras se agitavam. Notícia trágica
corre mais rápido que o pensamento... Uns diziam que foi chifre; outros, que o
pobre coitado era louco. Os mais criativos chegaram a dizer que era amor de
“viado”. O Lustosa, no alto de um sobrado verde, abriu as janelas e começou a
gritar: já vai tarde, seu filho da puta! Vai comer a mulher do capeta, seu canalha!
Depois da limpeza, umas gotinhas de sangue na
calçada, testemunhas efêmeras da tragédia em Copacabana, foram o único legado
de uma existência.
Post Scriptum: este conto é obra puramente ficcional!
Qualquer semelhança com fatos ou personagens da vida real é mera coincidência!