Dia histórico na minha vida: 60.000 acessos ao meu Blog!
Hoje,
27 de setembro de 2016, às 12h48min (hora de Brasília), alcancei a marca de 60.000 visitas ao meu
Blog, um número inexpressivo para os blogueiros de sucesso, com as suas legiões
de fãs e seguidores, mas surreal para um simples coletor de palavras como eu,
alguém que não escreve os textos idílicos que os leitores, normalmente, desejam
ler, um ser que se automutila na contramão do tráfego. E nunca impulsionei a
minha página com os mecanismos do Google ou do Facebook, que custariam recursos
que não possuo...
Nos
últimos anos, tornei-me o avesso do jovem sonhador que fui um dia, a antítese do
cara sorridente que fantasiava realizações inesquecíveis, feitos gloriosos que
impregnariam o ar fétido desse mundo com o cheiro adocicado da sua genialidade.
Enquanto andava distraído, fui descobrindo, desiludido e nostálgico, que as
pegadas que eu deixava nas areias do tempo iam se dissipando a cada sopro do
vento...
Nunca tive fé, e deixei de ter esperança. Depois
que alcancei o cume dessa montanha existencial que chamam de vida, o instante
de magia e desencanto em que comecei a rolar como a pedra de Sísifo, eu caí numa
espécie de fenda no tempo, que mudou a perspectiva do meu olhar sobre a vida.
Iniciei, melancólico e angustiado, o flanco descendente da minha escalada, a
fase em que me surpreendi mirando o passado não vivido, as escolhas que nunca
fizera, as pessoas que abandonara enquanto subia. Iludido, imaginava que não as
veria lá do alto, sem perceber que, na minha descida, poderia reencontrá-las
subindo a montanha. Apesar do sofrimento, decidi cair de pé, sem mendigar
afetos...
Hoje em dia, alimento unicórnios e dragões,
mas nego um simples copo d'água às antigas ilusões.
Não sonho a vida, não imagino realizações
fantasiosas e idílicas, não tenho qualquer ilusão de sobreviver do que escrevo.
E hoje só escrevo... Desisti de ser o que não sou. A ilusão de ganhar seguidores,
curtidas, compartilhamentos e comentários sinceramente não me comove.
Apenas vou dilacerando a minha própria carne,
lançando no mundo virtual o que o meu ego não é capaz de recalcar no
inconsciente. Aliás, para quem é sensível à escuta dos silêncios, às
reentrâncias dos meus significantes e significados, à transparência dos meus
textos, não é difícil capturar as minhas sombras.
Num certo momento da vida, quando abandonei o
Direito (que nunca me seduziu), e renunciei à vida profissional (não por acaso mal
sucedida), flagrei-me perdido e sem rumo, sem saber o fazer pelo resto dos meus
dias. Dinheiro seria certamente um problema, que ainda não resolvi, mas deixei
de me incomodar com as calçadas da vida: sempre existirá uma velha marquise
para adormecer ao luar...
Sem saber o que fazer nas horas vãs, simplesmente
resolvi escrever; e esse sempre foi o grande barato da minha vida de negações e
desenganos, a injeção de adrenalina nas minhas noites de insônia, o néctar que
me dava energia para sobreviver nos caminhos que escolhera por imitação ao meu
pai, quem sabe, talvez, para ser aceito por ele. Não me importo mais com a
aceitação de ninguém...
Escrever sempre foi uma terapia. Comecei sem
prisões estéticas, sem fazer da palavra um claustro; usei-a como chave para as
câmaras sombrias do meu inconsciente.
Depois de me libertar das palavras, inventei
personagens, criei realidades paralelas, naveguei por sentimentos e afetos que
não ousaria expressar como meus. Imaginei palavras que arranharam a minha sensibilidade,
que despertaram ódios e ressentimentos, que alteraram o meu aparente equilíbrio
psíquico. Quem sabe, nelas, eu acabaria me descobrindo... E assim tem sido
nesses tempos de autoabandono!
Muito do que se passa em mim, mesmo o que
está recalcado abaixo da superfície, acaba escapando nas parapraxias, aquelas
palavras que surgem do nada, que brotam não se sabe de onde, mas revelam
pulsões e desejos reprimidos. Escrever tem sido uma forma de
gratificá-los, burlando as defesas do meu ego outrora iludido. Nas minhas
fantasias de “escritor”, esses afetos, algumas vezes brutais e autodestrutivos,
não raro libidinais, passaram a ser puramente “fictícios”. É o mundo interior
dos personagens, e não o meu, passei a dizer à censura do ego. Deixei que eles
abrissem caminho para a consciência. Na escrita, tudo é permitido, inclusive
ser eu mesmo, e não a minha máscara social!
Depois que um amigo — de vastas leituras —
tocou em Michel Foucault, um gênio da humanidade, um ser de luz que viu as
interconexões entre a psicanálise e a literatura, dois fascínios na minha
existência medíocre, precisei fazer-lhe uma confissão, que estendo, agora, aos
meus leitores: sempre que escrevo, tenho em mente que
“A literatura (. . .) faz parte
desse grande sistema de coação através do qual o Ocidente obrigou o cotidiano a
se pôr em discurso; mas ela ocupa um lugar particular: obstinada em procurar o
cotidiano por baixo dele mesmo, em ultrapassar os limites, em levantar brutal
ou insidiosamente os segredos, em deslocar as regras e os códigos, em fazer
dizer o inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr fora da lei ou, ao menos, a
ocupar-se do escândalo, da transgressão ou da revolta. Mais do que qualquer
outra forma de linguagem, ela permanece o discurso da ‘infâmia’: cabe a ela
dizer o mais indizível – o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o
descarado.” (FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In:
Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 203-222).
Por ser, também eu, um desses “homens infames”, de que falava
Foucault, ao se referir aos escritores, preciso seguir a minha sina e espalhar
o indizível, o secreto e o intolerável... E devo segui-la sozinho, apesar desse
meu louco desejo de acampar o coração em terreno alheio! Mas a verdade, triste
e dolorosa verdade, e que o escritor é sempre solitário.
Quando penetrei no reino das palavras,
abandonando as memórias em dissipação, percebi que o escritor precisa da
solidão contemplativa, do estar consigo próprio, para ver o outro, sem se
projetar e sem se confundir com ele.
Para desamarrar as palavras, trocar a sua
pele desgastada, precisei dissolver as correntes de dogmas sem vida, as
certezas covardes que as prendiam à secreta mesquinhez dos Narcisos desse mundo
virtual, que só escutam os próprios lamentos.
É tempo de palavras imobilizadas em velhas muletas,
caminhando, trôpegas, para o esquecimento no Hades, devoradas por Cérbero, o
cão de três cabeças que guarda o mundo subterrâneo.
Para salvar Perséfone da mediocridade,
saciando a minha fome de encantamento, eu precisava decifrar os mistérios de Elêusis.
Mas no meu caminho havia muitas pedras... Por
isso, busquei no recolhimento o despertar da consciência, a sabedoria para
observar os seres humanos em suas interações virtuais, capturando o que eles
não mostram, vendo abaixo da superfície calma e intacta, mas sem interferir em
suas vidas, sem projetar sobre eles as minhas sombras.
E assim, no isolamento do meu pequeno quarto,
entre fantasmas insepultos e desejos enganosos, escorriam as horas da minha
existência como escritor, estranhamente flácidas e letárgicas, guardiãs
sonolentas de antigos sonhos de infância, que se transformaram em profundas e
dolorosas lamentações. Só a cama devorava a minha solidão!
Apesar das interações aparentes, com pessoas
breves, que não deixaram pegadas, e até com seres de luz, que me iluminaram na
cegueira, sempre fui solitário, mesmo quando caminhei, perdido, na multidão dos
carentes de afeto, dos que vivem em busca de curtidas, dos Narcisos que se
vestem de glórias efêmeras, para anestesiar a alma das dores perenes.
As pessoas nunca passaram de pontos
insignificantes, quase imperceptíveis, fora das curvas do meu destino.
Obstáculos a superar, fontes de prazer transitório, que estavam ali por um
único motivo: gratificar os meus desejos.
Sedento de prazeres e brevidades, carente de
aceitação, eu as sugava até a última gota de sangue, abandonando as carcaças ao
próximo abutre.
Depois da ascese monástica, as palavras,
antes adormecidas, acordaram do seu sono profundo, transformando as pessoas em
cobaias para o meu silêncio, que se rompia enquanto desvendava os enigmas de
muitas vidas, as afinidades que nos sincronizam, os gozos e sentimentos não
revelados, os equívocos que definem caminhos sabotados pelo sabor amargo da
desesperança.
Realmente sozinho — recolhido para dar voz
aos impulsos do inconsciente, longe das luzes do mundo —, passei a observar,
com os olhos marejados de lágrimas, a vida que escorre ligeira e
desinteressada, cheia de esquecimentos e culpas trocadas, a vida que passa no
outro lado da fechadura do pequeno quarto em que me recolhi.
Ao contrário de Alice, a linda garotinha de
Lewis Caroll, que se enamorou do País das Maravilhas, um mundo cheio de
encantamentos que descobriu no buraco da fechadura, eu vi seres desumanizados,
do lado de fora do meu quarto, pobres criaturas sem rosto, exauridas em
pequenas questões, mergulhadas no umbigo dos seus próprios devaneios,
caminhando, hipnotizadas, como zumbis, nessa busca insana por interesses
mesquinhos e bens de consumo que recebem as suas projeções de sucesso aparente.
E nada de chave dourada para esse mundo de maravilhas e encantamentos... Onde
estaria Alice e seu mundo de alegrias? Não tenho a ilusão de encontrá-los. Na
minha existência banal e pequena, escrever pode ser a única forma possível de
gratificar as ilusões perdidas.
Longe das sensações e afetos fugidios,
sublimando gozos e tormentos, busquei, no refúgio dos aflitos, a pessoa que
nunca tolerei: eu mesmo.
Enquanto as ausências se acumulavam, passei a
imaginar o que as pessoas faziam no espaço aberto das suas vivências, como
superavam o desamparo da condição humana.
É mais fácil ver o outro, quando nos
reduzimos a nós mesmos, quando entramos em contato com as nossas dissonâncias,
harmonizando, como totalidade, as nossas personas que vivem em
conflito.
Quando deixei de conviver com os normais desse
mundo, nos momentos em que a fechadura deixou de me revelar os seus contornos,
completei o cenário com as minhas fantasias, penetrando na alma de seres
transparentes, que deixam vestígios nas redes sociais, largando côdeas de pão
embolorado e azedo, para quem os observa com o olhar penetrante dos solitários.
Recluso em mim mesmo, como Gregório Samsa, o
homem que se transformou em inseto, no eterno Romance de Franz Kafka, inventei
monstros e demônios, para testar os meus próprios medos; deuses e heróis, para
exorcizá-los.
Antes de me recolher fisicamente, eu já me
sentia sozinho, não porque me faltassem companhias fáceis e descartáveis, mas
porque, de fato, eu não as via, mesmo quando as olhava nos olhos. Elas eram
apenas espelhos, onde eu me via refletido. Como Narciso, só aceitava o que me
devolvia a minha própria imagem, o que gratificava os meus desejos.
Com o recolhimento, passei a viver nas
sombras, ao menos por algum tempo, preso ao buraco da pequena fechadura do meu
quarto, que alguns chamam de Facebook, dependendo de um "amigo"
virtual que caminhasse do outro lado da porta, reconhecendo as minhas glórias
efêmeras, apiedando-se dos meus tropeços, para me fazer feliz por breves
instantes. Mas esses momentos de prazer, transitórios como a vida, mesmo quando
recebia alguns elogios sinceros, tinham gosto de carência, cheiro de prazer
banal, que não queima a pele da alma.
No início, qualquer ser humano fútil, banal e
pequeno, qualquer navegador de mares rasos que eu pudesse capturar no espaço
das minhas visões estreitas, na fechadura virtual das redes sociais, já me
encantava o espírito, sempre carente de afeto. E eu nunca abandonava a velha
fechadura, em busca de almas distraídas que pudessem domar as feras que eu
mesmo criava.
Nesses instantes, quando pensava estar
realmente sozinho, subornando a melancolia com o bálsamo do esquecimento, as
dores recalcadas, essas ignóbeis feras adormecidas, arrancavam-me da cama. De
repente, surpreendia-me com o olho direito no pequeno orifício, não sei se
mágico ou trágico, onde deveria estar a chave dourada do meu quarto. Mas ela
nunca estava lá... Onde estaria essa bendita chave?
Assustado com o mundo, afastava-me da porta
diante de qualquer movimento, paralisado pelo medo das criaturas que via lá
fora, estranhamente humanas, cheias de carrancas para dissimular seus medos, e
falsas máscaras de bondade e ternura para esconder seus demônios obscuros e
perversos. Nesses instantes de pânico, longe da fechadura, eu me sentava na
velha poltrona, pegava o único espelho que ainda restara e me punha a
contemplar, com olhar perdido, o inseto em que acabara me transformando, uma
criatura horrenda e cheia de pernas, asquerosa como as sombras que carregava
sem ver.
Insistia em fugir do mundo e continuava em
busca das palavras escondidas no inconsciente. Trancado no meu pequeno
universo, tentava fugir das dores que me cortavam a carne, que me incendiavam a
alma de ilusões, tentando distanciar-me de uma época, não muito distante, em
que buscava o prazer do dia seguinte, numa eterna insatisfação com as
conquistas do momento.
Mas só o recolhimento solitário poderia me
revelar os seres partidos, os homens sem cor, que compram certezas banais, que
vendem ilusões cuidadosamente embrulhadas como fatos. Pobre mundo virtual! Tão
rico de convicções e tão pobre de ideias...
Aprendi, contudo, que os escritores, os que
interrompem os silêncios com as suas redes de fantasia, devem expressar as
falas que transbordam do inconsciente de recalques do leitor, os desejos e
impulsos que buscam oxigênio na superfície do ego, vencendo o superego
castrador que eles recebem como legado no triângulo edipiano. Só de longe, no
silêncio da observação, o delicioso caos da relatividade se revela em palavras,
perdido e oculto em meio às certezas do absoluto.
Mas onde estaria a maldita chave do quarto? —
Costumava me perguntar, nos momentos de angústia.
Em ascese monástica, distanciado das
distrações que me afastavam do que sou, comecei a ver, de início indistintos e,
depois, em cores vivas, os muros e barreiras que ergui na ilusão de me proteger
do desamparo e da dor. Decepcionado com a minha própria cegueira, mas com a
esperança renovada pela visão do meu próprio self, percebi que sempre
estivera longe de me tornar o que sou de verdade. Sem perceber quem eu era,
vendo, nos amigos e inimigos, a minha própria imagem — que o espelho me
devolvia —, deixei de construir pontes perenes entre o meu mundo interior e as
frágeis conexões que criei com o mundo exterior. Só ergui paredes e muros!
Imaturo e egocêntrico, passei pela existência
sem vivê-la, recolhido, não física, mas emocionalmente, na ilusão de completude
no outro, sempre buscando a outra metade desamparada que haveria de preencher o
espaço vazio das minhas carências. Ironicamente, nunca me sentia inteiro, nem
mesmo quando capturava a vítima seguinte do meu desamparo.
Esse foi o mundo particular em que me enredei
nos anos de existência sem vida, um espaço de sonhos grandiosos, sempre
adiados, tempo de pessoas cortadas ao meio, divididas em suas dissonâncias,
acomodadas ao relento, lambendo as próprias feridas.
Olhava o mundo pela fechadura, com os olhos
perdidos e vazios. Os outros, pobres diabos, os outros não eram nada! Detalhes
tão pequenos, que, depois da autoflagelação, tornaram-se virtuais. Depois de me
dissecar, o que restou foi o meu próprio self.
Com pena de mim mesmo, corroído pela
autopiedade, descobri — tarde demais ou, talvez, menos cedo do que deveria —
que nunca vivi de verdade, nunca senti o inseto que habitava o meu corpo.
Alheio a mim mesmo, fantasiando o ego que desejava ver no espelho, só percebia
uma pequena parte dessa rica e multifacetada experiência de viver. E era tão
pequeno o meu mundo, apenas um quartinho perdido nesse universo em desencanto!
E a chave, onde estaria essa maldita chave?
Ou seria bendita? Já nem sei mais! Tudo ficou tão confuso, tão incerto e cheio
de possibilidades depois que despertei...
Frágil e impotente, pensei em pedir a Deus
que me ajudasse a encontrar a chave dourada da felicidade. É o que as pessoas
fazem, quando se sentem incapazes de correr atrás dos seus sonhos, quando
desejam fugir das próprias responsabilidades.
Fugimos de nós mesmos, gastando palavras,
destilando culpas, na tentativa insana de sobreviver aos nossos pecados. Deus
sempre perdoa... E seguimos, frágeis e iludidos, entorpecendo o senso moral e o
remorso, aspirando ópio divino com o nariz sujo de arrogância. Incomodados com
a degradação do pecado, mas sedentos por cometê-los, buscamos a salvação em
outro lugar muito longe de nós próprios, na esperança de receber de um Pai todo
poderoso a proteção contra o desamparo, o lenitivo para as misérias e sofrimentos
que nós mesmos criamos. É mais fácil imaginar-se salvo por Deus do que lidar
com o peso da culpa nas noites mal dormidas, contemplando a inexorável finitude
da vida, que não tem pena dos sonhos que deixamos pelo caminho, quando a morte
nos alcança mais cedo do que esperávamos. E ela sempre chega mais cedo,
sorrateira e imprevisível, sombria como o caixão em que somos esquecidos e
abandonados aos vermes...
Mas pensei em pedir a Deus, mesmo assim: –
Ele que se vire nos trinta, para realizar os meus desejos, fazer por mim tudo o
que imagino merecer! – Arrogância pouca é bobagem!
Mas eu me lembrei de um pequeno detalhe: como
poderia pedir a Deus que realizasse os meus desejos, se não acredito em Deus,
nem no gênio da lâmpada dos contos das mil e uma noites? A vantagem de não
acreditar no divino é não temer o demônio, seu contraponto indissociável, como
o preto e o branco, o Yin e o Yang, a pecado e o perdão.
Deveria ter outro jeito de encontrar essa
porcaria de chave. Ela é maldita mesmo! — Comecei a dizer em voz alta.
Mas algo me angustiava... De onde viria
aquele aperto no coração, um leve odor de queimado? Viria da pele da alma em
chamas? Achei que seria saudade! Mas saudade do quê? Se eu decidi fugir das
imperfeições do mundo, para ser escritor, eu que me aguente com os “comigos” de
mim mesmo! O quarto se tornou o meu claustro, de onde só as palavras escapam...
pelo buraco da fechadura.
Saudade do que perdi, quem sabe; saudade do
que deixei de ter, pelo simples medo de tentar! Saudade, talvez, dos sorrisos,
que ignorei, por estar ocupado em outras questões, agora sem importância!
E ainda dizem que o tempo não para! Gente
inocente, mal sabe que a saudade faz parar o tempo. Leis da física? Que me
importam as leis, se a saudade repousa na memória do coração?
Eu quero essa maldita chave! — Dizia, aflito
e angustiado. Aquele adjetivo — "maldita" — sempre martelava a minha
cabeça, quando me lembrava da chave que poderia me libertar da
autodestruição... Atos falhos revelam os desejos que o ego reprime nas sombras
do inconsciente. A chave poderia romper o ciclo da autossabotagem, o vício nos
prazeres sem dor, na ilusória proteção do quarto fechado, dando-me o que o id
me negava: a realidade que também traz sofrimentos, mas amplifica a experiência
de prazer dos instantes de alegria. Que seja infinito enquanto dure, diria o
poetinha Vinícius de Moraes.
Um dia, não sei se por coragem ou por medo,
movido, talvez, pela saudade da vida de cores difusas, de perigos ocultos e
desafios imponderáveis, da vida sem a tediosa proteção do quarto, percebi que a
fechadura fora trancada por dentro, e a chave, a bendita chave dourada que me
libertaria de mim mesmo, sempre estivera no meu próprio bolso.
Abri a porta, rasguei o véu do esquecimento e
descobri a vida, com seus montes escarpados e vales floridos, alegrias e
tristezas que escondem o tédio.
Ainda não se inventaram armaduras contra as
dores! Mas é preferível andar à beira do precipício a se proteger numa
fortaleza de gelo. É só aprender a voar e não ter medo do abismo:
“Mas quem ousaria
ser hóspede aqui,
ser teu hóspede?...
Uma ave de rapina, talvez,
que se apega aos cabelos
do firme sofredor
em maldosa alegria, com louca risada,
risada de ave de rapina...
Por que tão firme?
— ela zomba cruel:
é preciso ter assas, quando se ama o abismo...
é preciso não se pendurar
como tu, pendurado!”
(NIETZSCHE,
Friedrich Wilhelm. “Entre aves de rapina”, um dos nove poemas da série
“Ditirambos de Dionísio”, que recebeu, na edição brasileira, o título de “Canções
de Zaratustra”).
Cutuquem-me sem pudores e amenidades
elegantes; tirem o carnegão dos meus tumores; arranquem a casca pútrida que
encobre as minhas feridas. Eu me alimento do oxigênio que purifica a podridão
do meu ser.
Mas é preciso ter asas, quando se ama o
abismo! E eu, poeta e caminhante da vida, alma que luta contra moinhos de
vento, resolvi criar asas.
Agora sou livre, sem fechaduras invisíveis
que me aprisionem a alma!
Cansado dos direitos; só desejo encontrar os
meus avessos!
O que me preocupa, agora, não é sair da
gaiola, mas saber o que fazer fora dela, sem perder o tesão pelo doce perigo de
andar à beira do abismo, soltando pipas ao vento, para viajar nos sonhos.
O mais difícil não é amadurecer, mas
continuar menino...
Depois de dilacerar a alma, rasgando a pele
sensível e me despojando dos falsos invólucros da persona, alcancei algumas
verdades sobre mim mesmo.
Como disse Hegel,
"O espírito só alcança sua
verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto." (Hegel,
Georg Friedrich Wilhelm. Fenomenologia do Espírito. p. 16).
A mesma chave que tranca o coração,
ironicamente semeia a liberdade! Vou usá-la sem medo. Finalmente, descobri que
o essencial é viver!
Um dia desses, quando um parente qualquer
postar a notícia do meu sepultamento, entre lágrimas fingidas e encenações de
saudade, serei como um poeta encantado, ao menos na melancolia do destino. Se
pudesse sentir algo, mesmo depois da morte, saberia o que sentiram as
testemunhas no velório do poeta Blas de Otero:
“Nem dez pessoas iam aos últimos
recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Contudo, quando Blas de Otero morreu,
muitos milhares de pessoas acudiram à homenagem fúnebre que se fez numa arena
de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.” (GALEANO, Eduardo. El libro de
los abrazos. Ediciones la Cueva. p. 52) (A tradução do original em espanhol é
minha).
Será esse o meu fadário? Só a minha morte o dirá...
Quando será esse dia? Ainda não tenho planos...
A quem me perguntar o que ando fazendo,
direi, apenas, que andei semeando poesia e colhendo liberdade.
“A quem me
alugar? Que besta é preciso adorar? Que santa imagem atacar? Que corações
destruirei? Que mentira devo sustentar? Sobre que sangue caminhar?” —
Perguntava-se Arthur Rimbaud, “l’enfant
terrible” (“a criança
terrível”) da poesia francesa (Arthur Rimbaud, “Uma Estação no Inferno”: “Mau sangue”).
Cabe ao poeta desnudar as máscaras da
conformidade resignada, demolir as barreiras da falsa moral burguesa, desfazer
as certezas confortáveis e rotas, para iluminar as sombras desse universo que caminha
apesar de nós e malgrado os nossos desatinos.
Como um andarilho do tempo, que vai se reencontrando enquanto caminha, ele semeia poesia e colhe a liberdade de ser
tudo que ele na verdade é.
O poeta não carece de drogas, para desregrar
os sentidos; ele é a própria droga; e você, leitor, a pobre vítima do seu
inebriante mel...
Por enquanto, só desejo agradecer as 60.000
visitas que recebi no meu Blog, um feito inesperado para alguém que não publica
selfies e memes, um ser que destila o seu ascetismo nos ermos do mundo virtual,
sem contatos ou interações — ao menos físicas — com os bem-aventurados!
Quando eu morrer, que se inscreva na minha
lápide: “nasceu como todos e morreu como ninguém.” E que todos proclamem aos
quatro ventos: “esse malfadado escritor teve raros prazeres na vida, e um deles
foi caminhar na contramão atrapalhando o tráfego.”
O verdadeiro escritor deve sentir na pele o
fogo das suas paixões, deve dar voz aos que morreram de tédio, dar um coração
aos nostálgicos enclausurados no medo.
É tempo de encontrar as histórias que se
perderam nos porões da existência virtual, de libertar as memórias aprisionadas
pela insensibilidade da negação.
Quando a saudade se fez sonho, um grito se
libertou do silêncio. O silêncio se fez palavra; a palavra se fez luz; a luz
mostrou o caminho, e comecei a escrever o que os heróis não contam:
Era uma vez, em um Reino muito distante, um
escritor que se perdeu das palavras, e as encontrou, solitárias, nos ermos do
tempo...
Jorge Araken filho, apenas um
coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.