Narcisismo digital
Diante do absoluto desconhecimento da
Mitologia greco-romana, por culpa, em parte, da educação moderna, que desconstruiu
a dialética e inventou os acumuladores de dogmas, seres engessados em certezas
absolutas, introjetadas sem reflexão — essa mesma educação que fabrica, em “mass production”, uma legião de
autômatos programados para marcar com um “x” as escolhas inflexíveis de algum
examinador de conhecimentos homogeneizados —, sinto-me obrigado a iniciar pela
origem da expressão narcisismo.
Segundo a versão mais conhecida do Mito de
Eco e Narciso, a Deusa Hera, esposa de Zeus, suspeitando dos passeios do marido
com as Ninfas, mandou chamar Eco, a Ninfa tagarela, conhecida por distrair os
Deuses do Olimpo com as suas histórias. E mandou chamá-la por saber que ela era
a única que jamais cedera ao assédio do insaciável Zeus. E esse foi o seu erro...
Enquanto Eco falava sem parar,
distraindo a Deusa enciumada, Zeus a traía com outra Ninfa. Percebendo o
engodo, Hera condenou-a a repetir, por toda a eternidade, as últimas palavras
que ouvisse.
Tímida e envergonhada, por não ser capaz de
iniciar um diálogo, a jovem Ninfa escondia-se nos bosques, seguindo os passos
de Narciso, o jovem filho de Cefiso e Liríope, por quem se apaixonara
perdidamente.
Mesmo sendo belo e formoso, Narciso não podia
se olhar no espelho. Sobre ele, pesava um encantamento: viveria enquanto não
visse a própria imagem.
Apesar de segui-lo em seus passeios diários,
a Ninfa permanecia oculta na floresta, envergonhada da sua condição, mas
cultuando de longe, quase entorpecida, a incomparável beleza do jovem Narciso,
a mais bela das criaturas que já existiu.
Por sua beleza, Narciso encantava as
mulheres. O próprio nome "Narciso", no original grego (narkhé),
significa torpor, uma metáfora para a sensação de entorpecimento e embaraço dos
sentidos que a sua beleza provocava em quem o contemplava.
Certo dia, suspeitando estar sendo seguido,
Narciso perguntou:
— Quem está aí?
Em resposta, escutou:
— Quem está aí?
— Alguém aí? — insistiu Narciso.
— Alguém aí? — foi a reposta de Eco.
Encantado com a estranha voz, que repetia as
suas palavras, ele gritou mais uma vez:
— Por que foges de mim?
E ouviu:
— Por que foges de mim?
Antes de desistir, Narciso tentou uma
última vez:
— Juntemo-nos aqui!
Incapaz de declarar o seu amor pelo jovem
Narciso, Eco respondeu:
— Juntemo-nos aqui!
Enquanto Eco, impotente diante da condenação
de Hera, repetia as palavras de Narciso, o belo jovem só escutava as suas próprias palavras.
Triste e desiludida, Eco retirou-se para as profundezas
do bosque, chorando por muitos dias. Cansada da sua eterna sina, ela orou a
Afrodite, implorando à Deusa do amor e da beleza que ceifasse a sua vida.
Escutando as suas preces, Afrodite
comoveu-se com o destino de Eco. Para ajudá-la, chamou a Deusa Artêmis e,
juntas, combinaram um plano para que Narciso se encantasse com a jovem Ninfa.
Decidiram furtar um raio de Zeus (Não se
assuste: na mitologia Greco-romana, os Deuses cometiam pecados), colocando nele
um encanto: quem fosse atingido pelo raio, apaixonar-se-ia perdidamente pela
primeira pessoa que olhasse.
Pediram a Eco que se escondesse perto do
lago, até que Narciso se aproximasse para dar de beber ao seu rebanho. Assim
que Artêmis o acertasse com o raio encantado, Eco deveria aparecer diante dele.
Narciso se apaixonaria e eles seriam felizes para sempre. Um plano perfeito...
Mas algo saiu errado...
No instante em que Artêmis o acertou com o
raio encantado, o jovem debruçou-se sobre o lago, para saciar a sede. Mesmo não
sendo essa a intenção do encantamento, foi ele mesmo a primeira pessoa que viu,
depois de ser atingido pelo raio de Zeus. Acabou enfeitiçado mais uma vez,
apaixonando-se por si mesmo.
Paralisado por sua beleza, refletida na água,
Narciso se afoga em sua própria imagem, cumprindo-se, assim, o encantamento anterior,
que sobre ele pesava, de que morreria, se visse o próprio reflexo no espelho.
Moral da história: narcisistas — os que agem
como Narciso — só aceitam no outro o que é eco da sua própria fala, ou seja, só
percebem o seu próprio eu refletido e projetado no outro.
Narcisismo, entretanto, não é só exibir a
cauda do pavão, enfim, não é só o identificar-se diante de si próprio e dos
outros com uma imagem de sucesso, de engrandecimento do ego ou de beleza, como
ocorre no Mito.
Narcisismo pode ser, também, o eterno
identificar-se com o fracasso, com o apequenamento do ego, o fascínio com a
autoimagem da tristeza e da derrota, o autodesprezo com o qual o narcisista se
encobre e se apresenta para o outro.
A ladainha do "ninguém me quer",
"ninguém me chama de meu amor", "eu expio os pecados do
mundo", "eu não consigo", "vou me matar", quando passa
a identificar a imagem com a qual eu me apresento diante do outro, também é
investimento narcísico.
Em outras palavras, falar bem ou mal sobre
mim mesmo, fazendo desse monólogo a identidade com a qual eu me apresento diante
do outro, é narcisismo.
Quando passamos a investir a nossa energia
psíquica nessa imagem, bela ou feia, com a qual nos identificamos, sem lançar
outra perspectiva para o olhar sobre nós, acabamos servos desse fascínio pela
nossa própria condição, deixando de ver a riqueza multifacetada da vida humana.
Ninguém deve ser espelho de nós mesmos! Ou
seja, não devemos receber do outro apenas o nosso eco.
Mas esse novo olhar, esse relacionar-se com o
outro em busca de algo além de mim mesmo, é um processo doloroso, que muitos
nunca conseguirão superar. Raros, na verdade, são os que não se
"afogam" em sua própria imagem refletida no espelho d'água.
Apesar das dores que experimentamos nesse
processo, quando nos esvaziamos dos excessos do narcisismo, enxergando e
aceitando o que não é espelho, deixamos a posição de centro do universo e
caminhamos, paradoxalmente, para nós mesmos.
Só a liberdade desse Narciso que nos fascina
e que nos escraviza pode nos assegurar que estamos caminhando para revelar o
que ocultamos por trás da cortina do narcisismo.
Será que você conhece o avesso do Narciso que
habita a sua mente?
Suspeito que não!
Por isso, esvazie-se de si mesmo e pare de
investir a sua energia psíquica na falsa imagem que alimenta sobre o seu ego!
Veja-se olhando para dentro, e não para o espelho. Para não se identificar,
diante do outro, com a visão distorcida que tem sobre si próprio, projete-se
menos. Não use o outro para ver, como se estivesse fora, o que não admite estar
em si mesmo.
Só aceitando o que não é espelho, sabendo,
enfim, o que é seu ao olhar o outro, vendo as suas próprias sombras, sem
projetá-las no outro, você poderá se libertar das correntes do narcisismo, que
se alimenta da necessidade de reconhecimento e aceitação. Dessa forma, você
será capaz de se ver e de se mostrar como você verdadeiramente é.
O narcisismo é o pior dos mecanismos de
defesa do ego, já que nos impede de olhar para fora. Mesmo quando vemos o
outro, na verdade estamos nos vendo.
E quando nos projetamos em alguém, limitando
o outro ao que é espelho, acabamos criando, dentro de nós, o monstro que haverá
de nos devorar.
Narcisismo é quando a fala aparece mais do
que a escuta, a forma mais do que a essência, o continente mais do que o
conteúdo, a versão mais do que o fato, a fantasia mais do que a realidade, a
imagem do corpo mais do que a sua linguagem.
O grande mal dos relacionamentos, verdadeira
chave para a infelicidade a dois, é só percebermos o outro, quando ele é
espelho dos nossos desejos.
Como disse o poeta Caetano Veloso, em Sampa:
"Quando
eu te encarei frente a frente,
e não vi o
meu rosto,
Chamei de
mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto.
É que
Narciso acha feio o que não é espelho."
Somos essencialmente narcisistas e autocentrados,
rejeitando o que não reflete os nossos desejos. Obcecados pelo próprio umbigo e
cegos à diversidade, só enxergamos o que nos parece espelho das nossas pulsões e desejos.
Quando a pessoa com quem nos relacionamos,
seja no amor, seja na profissão, é diferente de nós, quando contraria as nossas
expectativas, simplesmente a rejeitamos, entendendo essa negação, voluntária ou
involuntária, dos nossos desejos como um ato de hostilidade. A pessoa que não
nos parece espelho — feia, portanto, aos nossos olhos! — revela-nos o que não
gostamos de ver em nós mesmos, agredindo, assim, os nossos desejos e pulsões mais
profundos, quase sempre inconscientes, que invadem o ego em busca de
satisfação.
E quando nos sentimos agredidos, simplesmente
reagimos...
Bem conhecido é o narcisismo digital em sua
forma clássica, o enaltecimento do próprio ego, a propagação de virtudes imaginárias nas
redes sociais. O objetivo do narcisista é fazer o mundo girar em torno de si
mesmo, é fazer-se tema dos diálogos com os amigos, não porque esbanje
autoestima, mas para compensar a sua falta com o autoelogio de virtudes que ele
deseja ter, mas não reconhece em si mesmo.
Na verdade, a coceirinha narcísica é
incontrolável, nascendo da luta entre os princípios da realidade e do prazer. O
ego, no seu papel de mediar o conflito entre as instâncias psíquicas, negociando
e harmonizando as exigências do id e do superego, acaba percebendo que a
realidade é diferente, que, talvez, o autoelogio seja falso. Quando isso
acontece, tenta refrear os impulsos que se esforçam para emergir do
inconsciente, as forças que o compelem a experimentar o prazer na ilusão do eu
ideal, aquele que é propagado nas redes sociais. Premido pela realidade prosaica
e simplória do self, o ego tenta fazer o sujeito cair na real, nem sempre com
sucesso.
Mas a forma de narcisismo digital que me
interessa, nesse momento, é mais sutil, e raramente se percebe como inquietação
narcísica. É a compulsão ao autoaniquilamento virtual.
É o exibir nas redes sociais o
autoaniquilamento psíquico, o esgarçamento progressivo do ego, para que o
público o assista em contemplação piedosa. Isso também é narcisismo, embora o
público reaja como os abutres em busca de carniça.
Apesar da pulsão autodestrutiva, que flerta
com o masoquismo, a pessoa deseja, ainda assim, ser o para-raios da atenção
virtual, o centro desse universo hedonista e inconsequente, mesmo que, para
capturar a plateia, precise desconstruir-se em público.
Para os autossabotadores, esses cujo ego não
consegue reprimir minimamente a pulsão autodestrutiva, que emerge à consciência
em busca de gratificação, ser dissecado em público em espetáculos de
autopiedade é melhor do que permanecer no limbo da indiferença virtual.
Essa compulsão a se tornar vidraça,
mostrando-se vulnerável, também é narcisismo.
Jorge Araken Filho, apenas um
coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.