Embriagai-vos!
Aos leitores de Charles Baudelaire, especialmente
aos ébrios e loucos desse mundo, dedico este poema em prosa:
“Embriagai-vos”
(Charles Baudelaire)
“Deveis andar sempre embriagados.
Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não sentirdes o fardo horrível
do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que
vos embriagueis sem descanso.
Mas, com quê? Com vinho, poesia,
virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de
um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna do vosso quarto,
despertardes com a embriaguez diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à
vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme,
a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas
são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão: — É a
hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos!
Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!” (BAUDELAIRE,
Charles. Pequenos Poemas em Prosa: O Spleen de Paris. Rio de janeiro: Athena
Editora, 1937)”.
Essa é a minha homenagem a essa gente que
vaga sem nome pelos bares da vida.
Ao contrário dos puritanos, que julgam os
ébrios e loucos e apontam seus dedos moralistas, eu adoro o ambiente dos bares
e botequins, lugares onde ainda se encontram verdades, muito mais do que em
algumas igrejas de pecadores fantasiados de santos, de gente que olha de cima,
com altivez e orgulho, os que se embriagam “com vinho, poesia e virtude”.
Depois da quinta garrafa de cerveja, restam
poucas mentiras por contar! Quer saber de uma coisa? Vou dar um papo reto: — não
há caô que resista ao poder da quinta garrafa! A máscara cai e você se reduz ao
que é de verdade, sem ilusões ou fantasias.
Passa a fase do herói, que bate em todo
mundo, que ganha de todos na sinuca, do curioso que sabe mais do que o especialista... Pelo
ralo do banheiro imundo, que não vê água há séculos, escoa o conquistador, que
pega as novinhas da rua, que come as cachorras do escritório. Você se torna
você mesmo, com as suas amarguras e ódios reprimidos, desavenças e amores mal
resolvidos. Nada de passar cerol nas preparadas e popozudas...
Depois da quinta garrafa, você começa o
caminho da verdade: nessa hora, o chifre aparece por encanto... Do nada,
surge aquela mercenária que só queria a sua grana. Você chama a sua ex de puta,
fala do Ricardão, lembra até do pênis dele, que, obviamente era imenso, muito
maior do que o seu. O companheiro de bar, o cara que está ali para ajudar a
secar a sua garrafa, de repente se torna o Doutor Freud. Você se deita no divã
e, misteriosamente, as palavras começam a transbordar do copo. Tudo gira em torno do chifre, que você ostenta,
de início com raiva e, aos poucos, com estranho e crescente orgulho. – Aquela cachorra vai sentir a minha falta!
Ainda vai comer na minha mão... – Seu amigo de copo, fazendo cara de
Doutor Freud, ligadão na parada, responde com ar de sabedoria etílica: – Demorô!
Copo vai, copo vem e... a mulher que o
traiu, aquela “vagabunda, puta, safada”,
que você odiava na primeira garrafa, repentinamente se transforma na mulher
ideal, a amante dos sonhos: “Cara, eu amo
a Letícia!” Você acha que ela vai voltar? Vou mandar um WhatsApp pra ela:
– Letícia,
sua cachorra, eu te perdoo. Volta pra mim! Eu te amo!
– Fonseca,
eu estou com outro no motel.
– Não tem
problema, eu não sou ciumento, Letícia. Você pode ficar com os dois.
Essa é a vida nos bares, talvez o único lugar
onde todo mundo é igual, onde todos carregam as suas dores e desenganos, mas
onde ninguém é tão desgraçado que não encontre um ébrio louco, um peito amigo
para depositar as suas tragédias. No bar, todos chegam com as suas máscaras,
que vão se rasgando diante de seres estranhos, cheios de histórias e desejos,
pessoas sem nome que não buscam amigos, mas a cumplicidade de um belo porre. No bar, ninguém sabe o nome do parceiro, nem o chama de "Doutor".
Até no banheiro, os ébrios são solidários,
não na cobiça do pênis alheio, mas na escuta daquele cara trancado no
sanitário, que solta seus gases reprimidos, numa sinfonia que entorpece os
sentidos. Para os ébrios, tudo é diversão, até os peidos menos amistosos...
O bar é o divã dos pobres e desiludidos, dos
que buscam a bebida para esquecer a dor que mora n’alma, e, misteriosamente,
acabam encontrando os monstros que se escondem no armário.
Quando estamos vulneráveis e fragilizados,
física e emocionalmente, para lidar com os desencontros da vida, dizem os menos
sensíveis que é falta de maturidade encontrar na bebida o lenitivo para os
nossos males. Pode ser verdade. Também sei que o álcool não cura, nem cicatriza
as feridas, apenas adormece a consciência.
Mas não vou julgar esses ébrios loucos e sua vontade
incontida de afogar as mágoas! Eles sabem que o álcool expõe o que tentam
esconder quando estão sóbrios. Nada melhor do que o bar, se você deseja
conhecer a pior e mais estranha das criaturas desse mundo: você mesmo!
Por isso, cuidado com o que você diz na hora
do porre! A bebida não cria outro ser humano, apenas abre os canais do
inconsciente, libertando alguns sentimentos e representações pulsionais das
amarras da repressão. Esse monstro que aparece é você mesmo, quando certos
conteúdos, recalcados pela censura, retornam à consciência. Não sei se Freud
concordaria, mas é melhor não arriscar além de certos limites.
Se preferir beber, aproveite o porre, para
descarregar as pulsões mais profundas do aparelho psíquico, liberando as
energias negativas que o prendem aos traumas.
É verdade que você não deve beber, para se
sentir melhor, mas para se sentir ainda melhor.
Quer um conselho?
Tome seu porre, encha a cara sem medo de ser
julgado pelos puritanos de almanaque. Eles haverão de julgá-lo de qualquer
jeito, mesmo que você esteja na Igreja. Sempre terão algo a dizer, talvez mencionem
que é falsidade ou digam, entre cochichos, que você nunca prestou.
Pelo menos, você ganha um tempo para recompor
as forças, uma anestesia para iniciar o procedimento cirúrgico nas emoções.
Pensar em coisas sérias, quando você está na
fossa, sentindo-se um lixo, é a pior das opções. Por isso, desencane e beba, se
tiver vontade, e esqueça os seres humanos perfeitos. Eles são um saco! Aproveite
para falar mal dos pecadores que se acham santos. Use-me para isso, se desejar:
serei um bom bebedor e um ótimo ouvido, se você pagar a conta do bar! Sou
apenas um escritor falido. Aceito convites...
Meus amigos leitores, o papo é sério! Para
mergulhar nesse submundo de homens e mulheres cheios de histórias, pessoas sem
meias palavras, que abandonam as amenidades e elegâncias, tenho frequentado
alguns bares do Rio de Janeiro, desses com ovos coloridos e moelas no velho
balcão.
Ando recolhendo histórias de vida, contando,
sem compromisso com os preconceituosos, o que essa gente traz no coração e
derrama em um copo de cerveja.
Um dia contarei tudo...
Jorge Araken Filho, apenas um coletor
de palavras que se embriaga “com vinho,
poesia e virtude”!