quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Quando perdemos um grande amor. . .

Quando perdemos um grande amor. . .

Não raro, começamos a nos afastar do grande amor de nossas vidas no exato instante em que o conhecemos. . .

Você sabe o nome disso?


Autossabotagem, essa estranha mania de criar armadilhas para nós mesmos!


Tanto mais apaixonado me sinto, quanto mais o objeto dessa paixão a outro ama. . .

Tanto mais apaixonado me sinto, quanto mais o objeto dessa paixão a outro ama. . .

Quando nos falta amor próprio, o amor ao outro é uma impossibilidade, e o amor do outro, pura ilusão.

Quem não se ama não consegue amar, e se ilude com o falso amor do outro.

Ao final, confundindo paixão com amor, ilusão com realidade, acaba ainda mais apaixonado, quando a percebe sendo desejada por outrem...



Não sei o que você fez no verão passado, mas sei quem é você. . .

Não sei o que você fez no verão passado, mas sei quem é você. . .

Quando a arrogância transbordar do seu corpo, enfim, quando você perder contato com a realidade, lembre-se de que você não passa de poeira cósmica, uma sopa formada de oxigênio (O), hidrogênio (H), carbono (C), nitrogênio (N), cálcio (Ca), fósforo (P), enxofre (S), magnésio (Mg), cloro (Cl), potássio (K) e sódio (Na).

Você é só isso: restos de estrelas que explodiram em algum cantinho distante do universo.


O resto é arrogância, nada além de ilusão. . .



A ilusão do amor do outro

A ilusão do amor do outro

Sabe por que parece amor o que ele sente por você?

Porque você é facilmente iludida.

Só vê o que deseja ver, escondendo de si própria o desprezo que ele transpira quando está ao seu lado. . .



Somos, muitas vezes, o que mais odiamos no outro. . .

Somos, muitas vezes, o que mais odiamos no outro. . .

A tua intolerância te define: supérfluo, banal e pequeno!

Tu sabes qual é o teu maior medo?

Ser exatamente aquilo que tanto odeias!




Essa é a sua agenda, não a do seu filho!

Essa é a sua agenda, não a do seu filho!

Será que é disso mesmo que ele precisa?

Os bens de consumo e atividades (natação, balé, artes marciais, etc.) que enchem a vida do seu filho, na verdade, representam os seus próprios desejos insatisfeitos, e não os dele.

Você, provavelmente, não experimentou o prazer do consumo na infância ou não realizou as atividades e brincadeiras que desejava, e tenta satisfazer seus sonhos frustrados através do seu filho, ter através dele ou realizar através dele o que lhe foi negado na sua própria infância, fazer dele o projeto de vida que desejou para si própria, mas não realizou.

Doe tempo e diálogo, afeto e companheirismo, e não bens de consumo desnecessários e supérfluos; abra os olhos do seu filho à experiência da diversidade e à riqueza multifacetada da vida humana, mas não escolha por ele uma agenda de atividades que é sua, e não dele; não imponha ao seu filho um futuro que não dialoga com o coração dele.

Ele não é você em miniatura, nem a compensação dos seus desenganos e frustrações. Não tente fazer dele a sua cobaia, nem a recompensa do seu passado de desenganos e desejos insatisfeitos.

Negando ao seu filho a sua própria identidade, enfim o direito de ser ele mesmo, e não o seu projeto de vida, você o condena a ser uma cópia sua no futuro, uma pessoa frustrada e ressentida que passou pela infância, mas não a viveu, alguém que precisa sequestrar a alma do próprio filho para viver os sonhos que não realizou.

Essa é uma realidade pouco percebida pelos pais, que projetam suas pulsões e desejos no filho, preenchendo, através dele, o espaço das suas próprias carências e frustrações.

Liberte-o das correntes do seu passado inglório!

Ele não é você em miniatura, nem precisa saciar os seus desejos frustrados ou viver a vida que você, talvez por culpa dos seus pais, não conseguiu viver.


Não faça do futuro dele o seu passado de frustrações!

Ele não é você em miniatura, nem precisa saciar os seus desejos frustrados ou viver a vida que você, talvez por culpa dos seus pais, não conseguiu viver.


Não faça do futuro dele o seu passado de frustrações!




Eu sei o que se passa na sua cabecinha. . .

Eu sei o que se passa na sua cabecinha. . .

Você só deseja apontar o dedo, livrar-se do peso da culpa. . . Um pouco de paz de espírito, quem sabe? Afinal, você precisa ficar em paz, saborear a ilusão de que é uma pobre vítima desse mundo cruel e injusto.

Repense o seu conceito de paz, meu amigo leitor. Fugir de si mesmo não é estar em paz, mas acumular lixo emocional!

A batalha perdida está dentro da sua mente, e não fora. O inimigo é você mesmo, e não o outro.

Enquanto não enfrentar a si próprio, não encontrará a paz que deseja, e a guerra o acompanhará como a sua sombra, por mais que tente fugir.


Lute, sem desistir: a maior batalha ocorre dentro de você mesmo! Se você a perder, nenhuma outra importará. . .


Solicitação de amizade ou confissão de carência?

Solicitação de amizade ou confissão de carência?

Um dos melhores símbolos da solidão atávica do ser humano, algo que perpassa o inconsciente coletivo do Homo sapiens, é a "solicitação de amizade", uma criação mágica das redes sociais, algo ilusório como as miragens nos desertos, uma simples fantasia de pertencimento que não cura a solidão, nem melhora a autoestima.

Na verdade, cria um círculo vicioso de carência, que se alimenta de mais "solicitações de amizade”, de preferência quando somos nós os solicitados. Mas essas amizades novas, sejam mil ou dez mil, não preenchem por muito tempo o espaço vazio do nosso próprio eu. Como mortos-vivos, anestesiados pela dopamina, sugamos o nosso doador de estima até o dia em que o prazer se dissipa no tédio.

Quando o feitiço se quebra, no instante mágico em que a carruagem volta à sua forma de abóbora e o novo amigo deixa de ser príncipe, as “amizades” imploradas ao custo da nossa autoestima já não nos bastam. Caminhamos, então, para a solicitação seguinte, que nos gratifica cada vez menos, num ciclo de incompletude servil que só se encerra com a maturidade ou, nos casos perdidos, com a morte.

Isso sem falar no filho mais querido da “solicitação de amizade”, que é o pedido de curtida ou compartilhamento, um gesto de submissão e mediocridade servil que nos faz reféns das escolhas alheias, como se o outro pudesse ser juiz do que escrevemos, postamos ou, pior ainda, do que somos ou deixamos de ser. Quem muito se preocupa com o que o outro pensa a seu respeito, torna-se prisioneiro dele.

Apenas me pergunto com os meus botões: como é possível solicitar a amizade de alguém?

Amizade solicitada não é amizade; é confissão de carência afetiva!

Mas a modernidade nos leva a esse delírio de pertencimento e aceitação, sendo eu mesmo vítima da minha incompletude, essa vazio de ser apenas eu, que me faz buscar nas amizades imploradas o pedaço que me falta, esse alguém que me aceite como amigo ilusório, para validar a minha própria existência.

Jorge Araken Filho, apenas um coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo. 



segunda-feira, 28 de setembro de 2015

E assim se passaram 19 anos, minha querida filha​...

E assim se passaram 19 anos, minha querida filha​. . .

Lembro-me do dia em que a tomei nos braços, no Hospital Santa Juliana, uma pequenina boneca de carne, linda e amada por esse pai, que ainda aprendia, a duras penas, a arte da paternidade.

Os curativos que fiz no seu umbigo, os primeiros banhos que dei, as visitas que fazíamos ao Pediatra, noites que fiquei orgulhosamente acordado, curtindo as alegrias que você sempre me deu. . .

Hoje, passados 19 anos, muita coisa mudou. Nós acabamos distanciados, sem interações olhos nos olhos, sem o calor de um beijo no rosto.

Mas seu pai a ama, como sempre amou, sente a sua presença em cada minuto do dia, orgulha-se do DNA que compartilha com você.

Sei que dei muito menos do que devia, fiz muito menos do que podia, mas os erros fazem parte do que sou, representam os caminhos que percorri até a maturidade. Não posso negá-los. . .

É  verdade, posso até estar longe, mas a carrego no coração, orgulhoso da sua mente aberta e sem preconceitos, da sua inteligência criativa e da sua humildade.

A pessoa que você se tornou é muito mais do que a soma do meu DNA e da sua mãe, é a soma dos nossos afetos, é a prova de que os filhos nascem para ser livres, nascem com alguns cromossomos de herança, mas escrevem os seus próprios caminhos.

E você, minha linda filha, a mulher mais terna e humana que já conheci, você é o meu presente de todos os dias, o meu orgulho e a minha realização enquanto pai.

Com amor, dedico a você o dia 24 de setembro, que é seu, muito mais do que os outros.

O que esse dia significa, além de uma data no calendário gregoriano? Na verdade, simboliza o único dia do ano em que o calendário indica a passagem do tempo sob a sua perspectiva, minha amada e querida filha, amante da arte e da cultura. Este dia é seu, muito mais do que os outros 364 dias do ano. . .

Muitas datas podem ter significado especial para mim: o dia em que dei o primeiro beijo, em que disse “te amo” pela primeira vez, o dia em que me formei, a primeira desilusão que tive no amor. . . Mas o seu aniversário, minha filha, é mais do que tudo isso. . .

Depois de um ano e meio longe do Acre, é um momento de muitas saudades, de lembranças nostálgicas, de doces reminiscências de um tempo que não volta mais. É o dia em que você veio ao mundo. . .

Nada se compara ao dia 24 de setembro! Sem ele, não haveria existência, para você, Hannah Lydia, que não seria essa sequência específica e única de genes, que formam o seu DNA, presente nos 23 pares de cromossomos contidos em cada uma das 100 trilhões de células que constituem o seu ser, concebidas na alcova dos seus pais e dotadas de energia vital. Sem você, minha filha, o mundo não seria assim, tão colorido.

É o único dia que você pode celebrar como símbolo da sua breve passagem pelo universo. Nesse dia especial, você pode comemorar o dom da vida, essa mistura de aminoácidos e moléculas que formam a complexidade mutante em que você se transformou nesses 19 anos de caminhada, evoluindo e se recriando, para sobreviver à aspereza do ambiente e às provações da vida. Até a mim, você sobreviveu. . .

A sua simples existência, depois que tantos se foram, nos últimos 12 meses, já me consola dos males da vida, fazendo desse dia uma data festiva, a único no calendário que possui um significado pessoal, só seu, que a torna especial para os que compartilham com você os mistérios da vida. Você sobreviveu à negligência do seu pai, sem perder a força vital que sempre a distinguiu dos mortais, sem perder o ânimo e a alegria de viver.

Todos os anos, você celebra o fato de haver nascido, lembrando que a vida é um frágil mistério, que tenta desvendar enquanto caminha, sempre pregando o bem, nessa linha tênue que separa a vida da morte. Nem sabemos se haverá outro aniversário, mas esse imponderável da existência é que nos anima a caminhar sem abandonar os sonhos. Ainda pior do que a morte, contudo, seria a morte com dia certo. . .

Enquanto se vive, é melhor aproveitar a vida em cada dia (“Carpe Diem”), vivendo os segundos, como se fossem os últimos.

O aniversário, mais do que a simples passagem do tempo, indica que a vida é um caminho sempre por percorrer, um roteiro que deve ser escrito e reescrito continuamente, num processo que se inicia na data em que nascemos, mas se encerra a qualquer momento, bem antes, muitas vezes, de se alcançar a realização dos sonhos. Todo aniversário pode ser o último. . .

Fazer aniversário não é só lembrar o início da caminhada, naquela sala de parto distante no tempo das nossas vidas; é saber que o percurso ainda não se completou no ciclo da existência; é ter plena consciência de que as nossas relações e escolhas, que formam a teia da vida, devem ser construídas permanentemente, até o derradeiro suspiro.

Na verdade, um momento especial, que se renova a cada passagem nessa viagem cósmica em torno do sol, quando podemos refazer os caminhos da vida, repensando os desvios que nos levaram a perder segundos preciosos na busca da felicidade! Quem sabe descobrir novos atalhos e refletir sobre as nossas falhas, que confundimos, não raro, com virtudes. Pensar nos culpados a quem atribuímos as nossas desventuras, para fazer mais e culpar menos os outros. . .

Fazer aniversário, mais do que tudo, é reconhecer que o tempo continua passando por nós, inexorável e indiferente às nossas emoções, sonhos, tristezas, alegrias, compensações e desenganos, contentamentos e dissabores. Como dizia o poeta,

“Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.”
(Soneto de aniversário, de Vinicius de Moraes Rio, 1942. Texto extraído da antologia "Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, p. 451).

Feliz aniversário, minha querida filha, Hannah Lydia, exemplo de vida para os que tiveram a honra de compartilhar com você os mistérios da existência.

Se hoje caminho de cabeça erguida, é porque aprendi com você e seu irmão, Leandro Pontes​, a bondade das pessoas simples e humanas, a beleza franciscana dos que vivem para dar amor e colorir o mundo.

Obrigado por sua vida ter tocado a minha própria vida, iluminando as sombras do meu ser imperfeito e cheio de dúvidas. Você é um porto seguro para as tormentas do meu coração!

Pena que você, minha amada e doce filha, não haverá de herdar nada além das palavras que escapam dos meus devaneios; mas isso é tudo que posso deixar. . . Esse é  o meu único legado!

Bem sei que você sempre nos carrega a todos no colo, dando exemplos, muito mais do que palavras, como eu . Tens a fibra das Amazonas, das guerreiras que nunca desistem de viver e de fazer o bem!

Nunca esqueça nem duvide que eu a amo, minha linda filha, orgulho para este velho pai, quase sempre ingrato, mas sempre digno, como você!!!

Vida longa, porque ainda precisamos de você nessa vida sem cores. . .

Com amor,


Jorge Araken Filho, seu velho e orgulhoso pai!








Ilusão, o ópio dos insones. . .

Ilusão, o ópio dos insones. . .

E assim caminhavam juntas a noite e a solidão, enlaçadas num abraço de ternura e aconchego, beijando a madrugada, no seu caminho de martírio. A pequena janela do quarto, emoldurada por uma chuvinha miúda, conspirava para esse mergulho nas memórias do coração, que permanecem altivas, serenas, insensíveis ao olvido.

No silêncio da noite, atravessava, meio entorpecido, quase em transe, a dor infinita das folhas caídas da árvore da minha vida, resquícios do que fui, matéria prima do que serei. – Vem, madrugada, vem derramar sua lenta agonia! – Eu dizia com os meus botões.

Mais uma noite de insônia, a velha companheira do remorso, apenas mais uma dentre muitas que me aprisionaram depois que o sol, a estrela dos infinitos recomeços, escondeu-se na minha vida de desenganos. Dizem as más línguas que o Astro-Rei estava cansado de levar a culpa pela inesgotável estupidez humana. . . Nem a lua, companheira tímida das noites mal dormidas, resolveu aparecer nessa noite de sábado.

Como testemunhas da madrugada, apenas a velha cama desarrumada, os lençóis manchados pelo tempo, desgastados pelo uso, abusados pelo apego à imobilidade catatônica dos que habitam a antiga casa onde moro, ou melhor, onde deposito o meu corpo envelhecido.

Um ventilador de teto, tão antigo quanto o meu falecido avô, girava sem ânimo, contorcendo-se para não se esvair no último soluço: vrum, vrum, vrum. . . As suas hélices, estreitas e alongadas, pareciam asas de um velho avião da primeira guerra, enferrujadas e sem tinta desde que o anjo Lúcifer decaiu do Jardim do Éden. Confesso que não lubrifico o seu velho mecanismo, porque é esse barulhinho, exatamente esse incômodo ruído, que me faz lembrar que ainda estou vivo, nesse mundo de coisas findas. O silêncio da noite seria a morte. . .

Diante dos olhos, acomodei o celular, companheiro de infortúnio, enganador contumaz para um ser solitário, como eu, um pescador de ilusões e fantasias, que captura sonhos alheios nas redes sociais, como um lenitivo para as feridas emocionais ou como um sedativo para entorpecer a razão, um aparelhinho “maldito”, o ópio dos insones, um portal para a fantasia que insiste em promessas de prazer infinito, quando preciso da amarga realidade.

Na pequena tela, abre-se um mundo de cores e alegrias, de soluções mágicas para dilemas sem fim, um universo de pessoas felizes, enganadoramente bem resolvidas e maduras, que me concedem alguns segundos da sua piedade arrogante, quando compartilham com a minha insônia os seus feitos gloriosos, a sua mística bondade, a sua sabedoria em cápsulas de experiência e certeza. Quem precisa de entorpecentes, quando se tem as redes sociais, tanta gente sabida e cheia de julgamentos perfeitos, para fatos incertos?

Deitado na pequena cama de metal, que rangia seus lamentos, eu me embotava de afetos e sentimentos, contemplando, com a autocomiseração dos insones e entre olhares perdidos, as velhas paredes do quarto, carcomidas pelos anos de abandono, pela falta de recursos para tratá-las com o carinho que merecem. Serviram de teto, por mais de cem anos, a três gerações da minha família, mas agora, depois que os mais afortunados partiram para a eternidade, cobram o preço da decadência. Os anos de glória não voltam mais. . . Em alguns pontos, revelam-se as tintas que se sucederam ao longo dos anos: por baixo do azul esmaecido, quase pálido, surgem, embaçados, os amarelos e rosas de outros tempos. A nostalgia, companheira inseparável dos insones, nutre-se dos lamentos atormentados pela amarga doçura dos tempos vividos. . .

Nos cantos, algumas teias de aranha, testemunhas seculares do meu próprio descaso com a vida. Logo abaixo da cama, sepultados há milênios, jazem os entulhos que se acumularam ao longo dos anos. Não eram meus, diga-se de passagem, mas dos que ocuparam o quarto antes de mim, alguns ainda vivos, outros que há muito tempo reverteram ao pó de onde vieram. Em meio às sacolas de supermercado, empilhadas sob a minha cama, ouvia-se um estranho ruído, um farfalhar incômodo que indica que nem a pior das solidões é absoluta e completa: dormiam comigo, no velho quarto, algumas baratas, que descansavam durante o dia, para brincar nas minhas noites de insônia e tripudiar dos meus tormentos. Remexiam as sacolas, numa interminável sinfonia de ruídos, já familiares depois de dois anos de convivência. De algumas, das mais educadas, fiquei até amigo. . .

O nosso ego, nem sempre ágil para evitar os prazeres ocultos, que buscam satisfação na fantasia, acaba divagando além da realidade, principalmente durante a noite, mesmo quando estamos de vigília. A noite inspira-nos a caminhar na ilusão. . . Quanto mais sonhamos a vida, menos realizamos os sonhos. Vivemos na fantasia o que tememos construir na realidade, como se o destino letárgico não fosse consequência da nossa própria letargia. À noite, o corpo pende ao sono, e a mente, à fantasia. É natural do ser humano transbordar nos devaneios o que não pode mais ser contido.

Numa dessas fantasias, em que viajo acordado, de primeira classe – afinal a viagem é minha –, sou um homem bem sucedido no amor, em outras, no jogo da vida; quase sempre estou nesse mundo perfeito, de contos de fadas, que invejo nas pessoas que não conheço. Como são felizes e espertas as pessoas que não conheço. . .

Como nenhuma insônia é capaz de me roubar a noite por inteiro, eventualmente acabo cedendo aos encantos de Morfeu, e caio em seus braços, dormindo, não o sono dos bebês inocentes, mas o sono torturado e reticente dos que se perderam dos caminhos traçados na juventude dos ideais prodigiosos, tempo em que o meu ego desfilava em suas ilusões heroicas.

Um sono assim, tão angustiado, por incrível que pareça, pode iluminar as minhas sombras, se tiver olhos para vê-las. Mas raramente os tenho. . . Quando os meus olhos pousam no horizonte, acabam vendo as fantasias que criei e os sonhos que sublimei, com medo de não realizá-los. Eu crio a realidade que tento evitar. . .

Nesse sono torturado, cheio de recortes, muitos sonhos, alguns bons, outros ruins, despejam suas luzes no inconsciente, trazendo à superfície os desejos e pulsões que adoro negar a mim mesmo, quando estou acordado.

Entretanto, não existe fundo no poço dos insones: mal acabo de adormecer, uma rajada de fuzil rompe o silêncio da madrugada. Acordo assustado, mas logo percebo que não se trata de um pesadelo: é só a realidade, uma sinfonia de granadas e metralhadoras cuspindo suas entranhas na Cidade grande. Nada mais do que uma guerra urbana sem vencedores: aqui, somos todos vencidos! Só ganham os que fabricam as armas, e esses nunca pisam o solo fertilizado com sangue de uma favela. . .

Esfreguei os olhos e comecei a escutar as explosões e os gritos de ódio e pavor:

– Deve ser a Milícia perdendo o controle da minha Comunidade (um eufemismo para o termo favela, um depósito de gente onde o Poder Público não chega: só os políticos, quando se aproximam as eleições).

Já estava habituado às batalhas do cotidiano, um exercício de resiliência para os moradores, como nós, que pagamos R$ 30,00 por mês à Milícia, para obter a “proteção” que o Estado não nos dá. E não me venham dizer que é só não pagar! Sabe de nada, inocente. . .

Foram duas horas de balas perdidas e achadas, muitas granadas rompendo a calma daquela noite de sábado. Quando o tiroteio já estava ficando chato e repetitivo, surgiram balas traçantes, emoldurando a madrugada chuvosa. Lindo espetáculo de sons e luzes, que se refletiam nas nuvens, cintilando as cores de arco-íris nas pequenas gotas de chuva. O sutiã, você pode até esquecer, mas ninguém esquece o primeiro tiroteio na laje. . .

Repentinamente, a monotonia transformou-se em ansiedade pelo desfecho da batalha, o êxtase dos que sentem no coração a finitude da vida, o instante mágico e derradeiro em que uma bala perdida e misteriosa encontra um corpo quente e cheio de sangue para penetrar.

Aos poucos, do mesmo jeito que começaram, os sons foram ficando mais espaçados, menos insistentes, quase resignados com a trégua iminente. Cerca de duas horas depois que iniciou, o espetáculo chegou ao seu fim, sem choro, nem vela. . . Acho que nem teve fita amarela. . .

Logo pela manhã, por volta das 6 horas, saí para comprar o pão, a pedido das minhas tias, algo incomum nesses tempos de crise. Mas era domingo, dia de festa na casa dos pobres: teríamos pão com mortadela! Uma “chiqueza” só, diria uma personagem da TV!

Feliz com a repentina bonança, algo que não sobreviveria ao entardecer seguinte, peguei o dinheiro trocado (é um mistério, mas pobre sempre tem dinheiro trocado) e me coloquei no caminho da padaria.

Desci o morro distraído, como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Andei uns duzentos metros, percorrendo uma viela íngreme. De repente, ouvi algumas vozes, um burburinho indistinto que não compreendi logo no início. Ergui os olhos, curioso: havia corpo estendido no chão.

Aproximei-me sem qualquer emoção, afinal aquilo era rotina naquela Comunidade abençoada por Lúcifer e esquecida por Deus. Era um garoto de mais menos treze ou quatorze anos, crivado de balas.

Antes que a perícia chegasse, a milícia removera, caprichosamente, o fuzil que o pequeno guerreiro urbano carregava ao morrer em combate. Afinal, uma arma daquelas era uma prêmio valioso no mundo das favelas. Perguntei quem era o menino, estranhando nunca tê-lo visto por lá. Disseram-me que era de outra comunidade, agora controlada pelas forças de pacificação da Polícia. Seu bando, acossado em seus domínios, tentara invadir a nossa Comunidade, em busca de refúgio, entrando em conflito com os milicianos.

Todos sorriam, comemorando o feito da Milícia e agradecendo, com acenos de humildade servil, os serviços prestados em troca dos R$ 30,00. . . – Dinheiro bem gasto, dizia uma senhora idosa, antiga moradora da Comunidade! Vagabundo tem que morrer mesmo!

Todos sorriram com os seus comentários “espirituosos”, enquanto o sangue daquele menino anônimo, parcialmente coagulado, brilhava no paralelepípedo da pequena viela, formando uma trilha para as moscas, que sorviam seu néctar, reciclando a vida num eterno recomeço. . .

Continuei no meu caminho, feliz por não ser eu naquele chão quente!


E viva o pão com mortadela!