O sapo na panela: casamento não é assim
mesmo...
Meio de longe, mas com profunda ansiedade,
tenho acompanhado o martírio de uma doce e querida amiga, alma sensível e
delicada, cujo nome prefiro não declinar, já que revelarei alguns traços da sua
intimidade.
Vítima de um casamento sem confiança, repleto
de traições e suspeitas, essa doce pessoa, obcecada pelo medo de ficar sozinha,
paralisou a própria existência, vivendo, entre lágrimas furtivas, uma relação
de dependência emocional e econômica, que ela confunde com amor.
Tem medo de voltar para casa, e não ser
aceita ou, pior ainda, de ser machucada pelos sermões da sua mãe, timoneira
experiente, conhecedora de tempestades e tormentas, que lhe disse para evitar
mares bravios. Mas ela, teimosa, destemida, quase imprevidente, embarcou nessa
aventura, sem bússola ou mapas de navegação.
Carente de afeto, sem autoestima,
apaixonou-se, à primeira vista, pela imagem de um príncipe em seu cavalo
branco... Mas não existe amor à primeira vista: amor idealizado não é amor, é
paixão!
Entre cenas de amor fingido, promessas de
mudança, sempre descumpridas, sexo mecânico, gozos simulados e acusações sem
fim, ela se acomodou numa existência sem perspectivas, quase sem sonhos.
Num domingo, já com a voz embargada, ela me
ligou: “eu não traio, mas quem não dá assistência, abre a concorrência”.
Parecia um diálogo de Nélson Rodrigues... Perguntei-lhe, então:
— Isso é casamento? Era isso que você
imaginava quando se casou?
— Sou uma moça simples, de família
humilde e honesta. Considero o casamento como uma instituição sagrada, que deve
ser levada para o túmulo. — Ela me respondeu entre soluços amargurados.
— Mas você se considera casada? — Insisti,
aflito com o seu sofrimento, mas acreditando que ela, na verdade, tinha medo de
ficar sozinha.
— Nem sei o que responder! — Disse-me,
resignada, quase letárgica.
Lembrei-me, não por acaso, de uma antiga
fábula, que simboliza a acomodação na angústia e no sofrimento, causada pelo
medo de ficar sozinho, sentimento que inspira a minha amiga na sua resignação
diante de uma vida de raros prazeres, quase sempre migalhas, jogadas como
recompensa por seu silêncio conformado.
Segundo a fábula, se um sapo for colocado
numa panela com água fria, retirada da sua própria lagoa, ele fica paralisado,
se o líquido for aquecido lentamente, morrendo, sem reagir, quando a água
alcança determinada temperatura. Morre cozido, mas aparentemente feliz e
acomodado na sua lenta rotina de sapo, sem grandes emoções. Não reage à mudança
no ambiente, se ela for gradual. Ao contrário, diz a mesma lenda, se você o
jogar na água em ebulição, ele salta da panela num piscar de olhos, com algumas
queimaduras, porém vivo.
Moral da história, querida amiga: não
se acomode a uma rotina infeliz, com medo de ser ainda mais infeliz sem ela! Se
a vida a dois lhe proporciona mais dor do que prazer, se as lamentações tomaram
o lugar dos sonhos, mude o olhar sobre os seus caminhos!
É normal o medo de se separar, de ficar só,
de sentir falta do outro, de não encontrar um novo amor, medo do desamparo, de
não conseguir se sustentar, de se sentir jogada fora. Todos sentem isso, mas
nem todos percebem que a água está lentamente se aquecendo, e que é preciso
saltar do relacionamento, antes da ebulição. Casamento desfeito não significa
vida desfeita! A relação com o outro é uma parte da sua existência; tente não
fazê-la o seu único sentido.
Para essa amiga, contudo, a felicidade está
sempre em outra pessoa, enfim, na alteridade, e não em si própria. Ela só se
imagina feliz e realizada, se tiver alguém do lado, verdadeira muleta, pessoa
imaginária, que idealiza como onipresente, com qualidades infinitas, mas sem
defeitos humanos.
Esse tipo de pessoa, espelho do que fui a
minha vida inteira, paga qualquer preço por uma companhia, vivendo a pior
solidão do mundo: a solidão acompanhada.
Pelo simples medo de ficar sozinha, paralisa
a sua vida num interminável suplício, aceitando traições e ofensas, não só
morais, como físicas, apenas para manter a aparência, na verdade, para
conservar insepulto o cadáver de um relacionamento que já morreu.
Conheço muitos casais de estranhos, que
convivem no mesmo ninho, ocupando o mesmo espaço físico, mas sem qualquer
sintonia na alma e nas emoções. As carnes se penetram, mas os espíritos não se
tocam. Caminham como mortos-vivos, sem sangue nas câmaras do coração. Por
vezes, nem o sexo resiste... Mal se falam, nunca não trocam olhares furtivos,
nem escutam silêncios! Por temerem a solidão, eles se martirizam e
trocam insultos, permanecendo como reféns voluntários nessa prisão
sem grades. Tão obcecados se tornam com o cadáver da relação
conjugal, que preferem não sepultá-lo. Escolhem o automartírio, sem perceber que
a solidão, o mal que tanto desejam evitar, já os contaminou de morte.
Infelizmente, o medo da solidão nos paralisa!
Entramos em pânico, quando imaginamos a ideia de separar e ficar só! Até a
palavra solidão nos apavora. Vou sentir falta do ex? Vou sobreviver sem ele,
sem a sua conta bancaria? Nessa hora, engolimos sapo, para não cair no
desamparo da solidão!
O problema é que idealizamos muito,
depositando, numa pessoa imperfeita, emoções, virtudes e sentimentos angelicais
e perfeitos. As relações humanas, sobretudo os casamentos e namoros, não são
depósitos de felicidade.
Não busques a completude em ninguém, querida
amiga, a não ser em ti mesma, nem imagines que pessoas imperfeitas viverão
amores perfeitos. Ninguém se transforma em santo, só porque tu desejas, nem
porque se casou contigo. Muitas coisas vão continuar faltando na tua vida, e
caberá a ti encontrá-las, e não ao objeto da tua paixão, que é um ser humano,
contingente e imperfeito, como tu também és. Ninguém pode ser o bonde dos teus
desejos!
Não esperes que o parceiro, ser humano, cheio
de falhas, preencha o espaço das tuas frustrações, nem que satisfaça a todas as
tuas necessidades Em pouco tempo, as máscaras cairão e tu começarás a perceber
a realidade por trás da fantasia.
Quantas vidas se perderam na infelicidade,
pelo simples medo da solidão! Muitas vezes, preferimos continuar na panela, sem
perceber que a água está aquecendo, lenta, mas inexoravelmente. Para se
defender da solidão, muitos preferem não pensar no que está acontecendo,
esquecendo-se de saltar da panela antes de morrer, senão física, mas
emocionalmente, o que é ainda pior.
Não te enganes: casamento não é assim mesmo!
Esse é o verdadeiro perigo: a acomodação na zona de aparente conforto! Se não
tiveres coragem de sair da panela, terás o mesmo destino do sapo acomodado.
Eu mesmo, depois de uma profunda catarse, que
modificou a perspectiva da minha caminhada existencial, percebi que é mais
saudável sofrer as dores, enfim, entender o significado dos meus tormentos, do
que eternizá-los sob o manto da ignorância.
Só compreendendo a sua gênese mais profunda,
pelo autoconhecimento, posso expor as feridas à ação cicatrizante do oxigênio,
modificando os rumos da trajetória antes do precipício.
E o caminho mais perene, embora cheio de
espinhos, é o que transita pela consciência plena dos sofrimentos, que devem
ser examinados à luz do dia.
Anestesiado, posso até não sofrer por algum
tempo, mas acabarei ocultando, sob o tapete da minha covardia e imaturidade, um
cadáver que permanecerá insepulto, assombrando os meus sonhos por toda a vida e
me impedindo de sonhar novos sonhos.
E os meus tormentos, por mais que me pareçam
insolúveis e injustos, por mais que me pareçam exclusivos, como se expiasse os
pecados do mundo, podem ser mais comuns do que imagino, alcançando pessoas
aparentemente felizes, que vivem na ilusão. Pessoas diferentes, dramas que se assemelham!
Assim na vida, como na arte, que se imitam mutuamente, os nossos enredos se
tocam em planos misteriosos.
Por vezes, quando narramos um fato de nossas
vidas pessoais, traçamos, sem perceber, mas instintivamente, um arquétipo da
existência humana, sensações e sentimentos que nascem da constante renovação
das vivências experimentadas pelas gerações que nos precederam.
E nesse processo contínuo, em que
reexperimentamos velhos arquétipos, lapidamos os nossos sentimentos, emoções,
intuições e sensações, caminhando em direção ao nosso próprio eu.
Por isso, não negues o teu desamparo,
assumindo uma ilusão de felicidade absoluta e bem-aventurança ou vestindo a
máscara da existência perfeita, sem arestas, sacrifícios e sofrimentos, porque
essa aparente proteção contra a realidade, com seus mecanismos de compensação,
quase sempre alienantes (crenças irracionais, inclusive religiosas, ou o apego
a esquemas mirabolantes e repentinos de enriquecimento), encobre a tua
capacidade de pensar e resolver os conflitos, construindo, pela tua própria
potencialidade psíquica, um caminho alternativo, certamente imperfeito, como
tudo que é humano, mas feliz, apesar da finitude da vida.
Mas não nos deixemos enganar: a falsidade é
um sentimento humano, quase instintivo, irmão da hipocrisia e pai da mentira.
Quando a percebemos em um amigo e, pior ainda, na pessoa amada, mais do que a
confiança, esvai-se o desejo de acreditar na bondade humana, uma triste e
perniciosa ilusão, com a qual nos defendemos da realidade, nessa eterna busca
de proteção contra o desamparo.
Para encontrar respostas, temperemos as
ilusões com um pouco de realidade, sem negar os conflitos e sem esconder de nós
mesmos a infinita maldade dos homens.
Enfim, não esperemos por um ser humano
perfeito, que nunca vá nos desamparar, alguém que haverá de adoçar a nossa vida
com gotas de felicidade, porque, vivendo na ilusão, até podemos encontrar uma
frágil e temporária proteção contra o desamparo e a solidão, mas deixaremos de
exercer a nossa potencialidade criativa, experiência multifacetada e rica, que revela
a singularidade da vida humana.
A felicidade está em ti, minha querida amiga,
e não nos falsos amigos e amantes de coração vazio! Cresce e deixa a carapaça
da tua infantilidade! Não atribua ao objeto da tua paixão a culpa dos teus
males, porque cada um dá apenas o que tem! De um coração pérfido, só podes
esperar a perfídia!
A culpa é tua, porque abdicaste da
própria felicidade, entregando o teu destino nas mãos de outra pessoa, mesmo
sabendo que a maior interessada eras tu, e ninguém mais..
Acorda enquanto a água ainda está morna! Se
as lamentações já começam a tomar o lugar dos sonhos, não esperes a luz
acender-se sozinha! Levanta e liga o interruptor! Mexe a tua vida sem culpa,
porque a pior solidão, a mais profunda e duradoura, é essa em que tu
sobrevives, minha doce amiga! Mas não mintas para ti mesma.
A prisão sem grades é o pior dos cárceres,
porque as correntes estão na nossa própria mente!
Por carência afetiva, religiosidade
autoimolante ou simples medo da solidão, algumas pessoas se acomodam em seus
casamentos infelizes, como os sapos na água quente, e ainda se tornam obcecadas
com a ideia de que foi Deus que as uniu aos seus parceiros... As más escolhas
são atribuídas ao Diabo, e as boas a Deus, como se nenhuma delas fosse fruto do
livre arbítrio. Automartírio não é destino, mas escolha.
Na verdade, o que tu chamas de destino é
apenas o inconsciente dirigindo a tua vida. Conheça teus próprios limites,
enfrenta teus demônios, reformula-te a ti mesma, mas não tente mudar o objeto
da tua paixão. Sai da zona de conforto, antes que as fronteiras do destino se
apertem diante de ti.
E acima de tudo, acredita na utopia, se a
realidade te sufoca!
Querida amiga, esperas muito e ages pouco:
Nesse triste vazio, que te dilacera o peito,
Contemplas a solidão.
Choras o destino, mas não te moves!
Sentes pena de ti?
Pobre criatura. . . É domingo!
Escuta o silêncio à tua volta!
Teu quarto, espaço das tuas quimeras,
catedral de profundos amores, agora é o esquife das tuas ilusões.
A multidão lá fora, bradando as suas
desventuras, corpos ardentes, camas quentes, carnes que se penetram em gozos
sem fim.
E tu, tão só, alma errante, de coração
partido, condenado a eternas noites de luto!
Morreste? Não, tu não morres. . .
Consola-te: ainda tens o telefone em tuas
mãos trêmulas, testemunha efêmera da felicidade que navega todos os ventos, e
nunca te alcança.
Mas ele não toca. . . Ele não vibra. . . Ele
não fala. . .
E tu não morres. . .
Jorge Araken Filho, apenas um
coletor de palavras perdidas nos ermos do tempo.