Desenterre
seus vivos, porque dos mortos a natureza cuida...
Crônica escrita por Jorge
Araken Filho
Aliviado, mas sem ânimo
para comemorar, cheguei ao ano 2013, número cabalístico, cheio de mistérios que
a própria razão desconhece. Como Geraldo Vandré, vou “caminhando, cantando e seguindo a canção”. Na verdade, ainda desconheço
o sentido da vida, mas acho que sobrevivi ao fim do mundo, apesar da infinita sabedoria
dos Maias.
Em plena crise da meia-idade, solitário, depois da terceira separação, caminhava na Praia de Ipanema, tentando fugir dos desafios que haverei de enfrentar nessa fase difícil da vida, com poucos recursos e muitos esqueletos no armário, ainda sem sepultura, velhas histórias inacabadas e mal resolvidas.
Em plena crise da meia-idade, solitário, depois da terceira separação, caminhava na Praia de Ipanema, tentando fugir dos desafios que haverei de enfrentar nessa fase difícil da vida, com poucos recursos e muitos esqueletos no armário, ainda sem sepultura, velhas histórias inacabadas e mal resolvidas.
Encorajado por essa estranha
força que move os corações maltratados, mirava o mar de Ipanema e desfazia,
lentamente, as infinitas memórias das experiências traumáticas por que passei, tentando transforma-las
em maturidade, um saudável exercício para quem se aproxima do flanco descendente
da escalada, aquele instante em que começamos a descer a ladeira e se inicia o lento
e inexorável declínio do vigor físico, quando o corpo, muitas vezes, já não
acompanha os devaneios da mente.
Mergulhado em reflexões
filosóficas, torturava-me a ideia de que o mundo pudesse ter sido melhor, se eu
não houvesse nascido, enfim, se a minha existência não houvesse tocado as vidas
e os destinos das pessoas que conheci. Estariam melhores? Apenas diferentes,
talvez. Distraído, comecei a lembrar de quantas
vezes a minha existência alterou, para o bem ou para o mal, o curso de outras
vidas. Acho que a maturidade, forçada pelas circunstâncias, se não me trouxe
paz, ao menos revelou alguns “insights”,
quase Freudianos, sobre os monstros que habitam o meu inconsciente, governado
por instintos que ninguém gosta de ver no seu próprio mundo interior; só no do
outros.
Seguia meus próprios medos
e observava o mar, divagando ao ritmo das ondas, não sem observar, aqui e ali,
os corpos dourados do sol de Ipanema, cantados em verso pelo poetinha Vinícius
de Moraes.
Ainda pior do que a visível decadência do ego,
maldição dos que pensam muito e agem pouco, é a emersão desse processo doloroso
ao plano da consciência! Diria Freud, ao me salvar desse perigoso mergulho na
alma, que os meus “insights”
intelectuais, que brotam sem a revivência atual dos vínculos afetivos e das
experiências psíquicas prévias, acabam por não descarregar as emoções
reprimidas. Pelo menos, responderia eu ao ilustre Doutor Freud, as nossas
emoções afloram à consciência, mesmo sem o saudável processo catártico da
transferência e da contratransferência! Traduzindo, posso ver os meus monstros
interiores, embora não consiga domá-los, mas isso já é um grande progresso! Percebo,
agora com indesejável frequência, os meus conflitos, revivendo-os como
reedições inalteradas, meras reimpressões, talvez, de sentimentos afetuosos ou
hostis, há muito reprimidos, mas não consigo descarregá-los das noites do
inconsciente, para trazê-los à luz do dia.
Não raro, nas minhas
experiências de celibato involuntário, mais prolongadas do que o desejável à
conservação da sanidade, tento sublimar os instintos primitivos, revivendo, na arte
poética e nos meus escritos, as experiências de sexualidade já apagadas da
memória e relegadas ao inconsciente.
Mil pensamentos, devaneios
de uma tarde do verão carioca, afastavam-me, contudo, daquela paisagem do meu Rio
40 graus, “Cidade maravilha, purgatório
da beleza e do caos”, cantada e decantada por Fernanda Abreu. Belas
mulheres, corpos esculturais, praia cheia, muitos turistas à espera da garota
do corpo dourado, do sol de Ipanema, que vem e que passa, a caminho do mar. Ah,
Vinícius, meu poetinha genial, bendito vagabundo, só você capturou a verdadeira
essência da mulher carioca, a musa das lajes do imaginário masculino! Mas
aquela efervescência ficava imperceptível ao coração e à mente, embora não me passasse
despercebida aos olhos.
Num raro momento de
lucidez, percebi, ainda ao longe, uma figura que me parecia familiar, quase um
fantasma do passado a assombrar os meus delírios freudianos. Imerso em
autocomiseração, culpando o mundo pelos meus repetidos fracassos, preferi me afastar
do caminho daquele personagem, e continuei a contemplar, com piedade, o meu
próprio umbigo, carcomido pelo rancor. Baixei a cabeça, quase irrefletidamente,
e passei a caminhar na ciclovia, escondendo-me em meio a um grupo de turistas
orientais, que passeava entre sorrisos, com as suas câmeras vistosas e
filmadoras "hi-tech".
Imaginando haver
escapado do encontro indesejado, já retomava o caminho, quando ouvi um grito
familiar:
— Companheiro, é você? Não acredito que
saíste, finalmente, do teu esconderijo nas Terras de Gálvez! O que te trouxe ao
Rio?
— Olá, meu ilustre amigo! Faz tempo que
não nos vemos! Vim ao Rio, acompanhando meu pai, que estava doente, e agora, com
o seu retorno ao Acre, dedico-me, de corpo e alma, ao ócio criativo. —,
respondi, meio sem graça, mas imaginando que a minissérie da Rede Globo, escrita
por Glória Perez, uma ilustre acreana, já fizera algo de bom: um carioca da
Zona Sul, que chama o Nordeste de Norte, os nordestinos de “paraíbas” e vê os Povos
da Floresta como primitivos e incultos, já ouvira falar de Luis Gálvez
Rodríguez de Arias! Nem tudo estava perdido, pensei... Indaguei-lhe sobre as
novidades, já apreensivo, temendo que ele as contasse, desfiando o seu rosário
de realizações prodigiosas, certamente muito distantes das pequenas conquistas
do meu passado inglório.
— Você nem imagina o que passei há dois anos!
Simplesmente morri! — disse-me com uma pitada de orgulho, que me cheirava mais
a bravata do que a realidade.
— Morreu? Como assim?
— Morri e despertei no meu próprio
velório! Descobri que sofro de catalepsia patológica, a doença dos enterrados
vivos. Saiu até nos jornais! Você não soube? Ah, esqueci que você mora no meio
da selva! Mas lá vocês não recebem sinais de fumaça? — indagou jocosamente, inspirando-se,
por certo, nos filmes americanos dos tempos de outrora, quando os “civilizados”
praticavam o genocídio contra seus ancestrais.
Já irritado com aquele “fantasma”
engraçadinho (sequer lembrara seu nome), preferi não desdenhar aquele
personagem carioca, que já se revelava assim tão pequeno, quase diminuto,
escondido sob o manto do preconceito, que corrói os pobres de espírito, especialmente
os que não beberam as águas inebriantes dos Rios da Amazônia. E confesso que nunca
abandonei a alma carioca, apesar de comer “baixaria” no mercado do Bosque e de
me deliciar com rabada no tucupi, devorada sem piedade, com os ossos bem
seguros pelas mãos. Perguntei-lhe, apenas, sobre a experiência de quase morte,
não por interesse no “amigo”, mas por simples curiosidade. Ele comentou haver
sofrido um ataque de catalepsia, acrescentando, com ar professoral, tratar-se
de um distúrbio que impede o doente de se movimentar, não obstante continuem
funcionando os sentidos e as funções vitais, que, contudo, ficam desacelerados,
simulando a morte.
— Levantei-me do caixão em pleno
velório, causando pânico entre os parentes e amigos, que já se deliciavam com
Nescau e bolachas, fartamente servidos. Acabei sabendo que alguns “amigos” já
comentavam, entre segredos, que eu merecera a morte; outros acrescentavam, com
pitadas de humor negro, que a viúva, antes mesmo de esfriar o defunto, já flertava
com o meu chefe.
— Caro amigo, infelizmente um compromisso
inadiável me chama, mas gostaria de continuar a nossa conversa em outra hora. —
retruquei, ansioso por retomar o meu caminho solitário e com a viva esperança
de que ele não percebesse que ainda não trocáramos os números de telefone.
— Ligue para o meu celular! — ele
respondeu, fornecendo, com estranha e sincera alegria, todos os seus telefones
e até o endereço de casa.
Ainda chocado com a
revelação, porém incrédulo, comecei a divagar sobre a morte. Na verdade, ser
enterrado vivo deve ser a maior e mais profunda das fobias do homem, inspiração
de centenas de filmes de horror, que exploram o mito dos vampiros e dos zumbis,
mortos-vivos sugadores de sangue e comedores de carne humana.
Lembrei-me de uma
antiga história, talvez uma lenda urbana, que correu o mundo, nos anos 70,
sobre a morte do ator Sergio Cardoso, que sofria de catalepsia e teria sido
enterrado vivo, fato negado pela família e por amigos. Lembrei-me, ainda, dos
rumores sobre a catalepsia do cantor Aladim, da dupla sertaneja Alan e Aladim,
que teve o corpo misteriosamente exumado e estaria de bruços, com as unhas
cravadas por farpas de madeira. Dizia a lenda, ainda, que a tampa do caixão estaria
crispada de arranhões, numa cena de desespero e horror. Contudo, o caso mais
conhecido, que animou, por muitos anos, o imaginário popular, foi o do cantor
Paulo Sérgio, que teria sido enterrado vivo, depois de um ataque de catalepsia.
Ao menos, era o que diziam as histórias contadas à boca miúda na época da sua
morte.
Como nunca confiei em
lendas urbanas, continuava não acreditando naquela história, que me parecia demasiado
fantasiosa, no mínimo um exagero de quem pretendia o seu minuto de fama...
Apesar da incredulidade,
comecei a pensar na estranha sensação de estar morto na consciência dos outros.
Ser enterrado vivo, na verdade, pode ser uma metáfora para a exploração do
homem pelo capital, do homem pelo próprio homem ou, ainda, da perda da
individualidade diante dos excessos da tecnologia da informação, que aproxima
as pessoas, mas torna obsoleta e antiquada a sua privacidade.
Restam poucos momentos
de reflexão solitária, instantes em que possamos mergulhar no nosso próprio
ego, sem medo de ser beliscado pelos papagaios da rede globalizada, que
propagam a sabedoria alheia, sem pudores e sem a insubstituível experiência da
vida. Nos tempos modernos, a individualidade se dilui nas redes sociais, universo
onde o público e o privado se misturam e se confundem numa simbiose caótica e
febril, que não propicia, porém, o respeito à alteridade. Estamos em permanente
troca com o outro, mas não respeitamos necessariamente o seu espaço. As interações nas redes sociais, que poderiam
ser saudáveis, se nos despíssemos da máscara da hipocrisia, esbarram no muro da
contemplação narcísica, e todos “ficam”, mas ninguém permanece no coração do outro.
Só navegamos na superfície das nossas emoções. Muita exposição na rede, milhares
de “amigos”, mas, na verdade, não conhecemos ninguém! Acho que nos enterramos
vivos...
Não raro, e por não termos
qualquer pensamento inteligente a compartilhar (“Oh! Bendito o que semeia livros, livros à mão cheia, e manda o povo
pensar!” — diria Castro Alves, lamentando a nossa aversão à leitura), acabamos
vítimas do narcisismo digital desses tempos de “Big Brother” (nem George Orwell,
a bem da verdade, chegaria tão longe), e caímos de amores pela nossa própria imagem,
tristemente refletida na aldeia global e capturada no Instagram. Esse é o verdadeiro
“homem, lobo do próprio homem”, pensei,
lembrando-me da velha sentença de Plauto.
Continuei caminhando,
mas, agora, com a nítida sensação de que algo mudara no meu universo egoísta e particular: comecei a pensar que ser
enterrado vivo também poderia ser a metáfora da minha própria existência, pois
enterrei muitas pessoas queridas, ainda vivas, sepultando-as sob sete palmos de
esquecimento. E acabei enterrado por elas...
Em regressão à fase
edipiana, pensei na minha mãe, que não vejo há muito tempo, embora a sua
residência esteja a menos de meia hora de onde me “escondo” dos fantasmas do armário,
que assombram as minhas noites mal dormidas. E os meus filhos, que estão a mais
de 4 mil quilômetros, não os vejo há mais tempo do que os laços de amor
recomendam! Lembrei-me, ainda, do meu irmão, que não vejo há muitos anos, e
pensei nos amigos da velha infância, que foram enterrados vivos e, malgrado a
minha pureza d’alma, acabaram sepultados no esquecimento e na injustiça dos
meus julgamentos de caráter.
Mas somos juízes
benevolentes, quando examinamos os nossos atos, que reconhecemos, quase sempre,
como justos e bondosos, e demasiado intolerantes com os de outrem. . . O amor
próprio, por vezes, faz colorido o pior dos nossos atos, mas não aceita as
pequenas falhas dos amigos e parentes, mesmo quando revelam boas intenções.
Aquela frase do velho
colega de faculdade, cujo nome não me recordo, ainda martela a minha
consciência:
— Morri e despertei no meu próprio
velório!
Será que a solidão, o
verdadeiro mal do século, não é fruto das nossas próprias escolhas? Comecei a
imaginar que a sepultura em que fui enterrado é a mesma que cavei para os
amigos e parentes que abandonei pelo caminho.
Para não enlouquecer, comecei
a imaginar que os espíritos verdadeiramente livres são filhos de longas e
torturantes solidões, que lhes proporcionam, como recompensa, o privilégio da
liberdade diante do poder e da dependência econômica, política e,
principalmente, emocional. Livres da coerção dos relacionamentos e das conveniências
sociais, aprendemos a viver e a experimentar a felicidade sem o outro e a
despeito dele. É a dolorosa conquista da maturidade pelo espírito livre, que,
recolhido em si mesmo e até enterrando pessoas vivas, pode contemplar as próprias
fraquezas, fazendo do seu interior, do corpo e da mente, uma intransponível
couraça, capaz de desviar de si as vicissitudes da vida e os vampiros de almas,
que se alimentam do sangue puro dos solitários. Encontrar na solidão uma
recompensa pode ser sinal de alienação e loucura, mas é o único fio que liga o
solitário à vida.
Em ascese monástica,
forçada pelas minhas próprias escolhas, desligo-me da imperfeição e
materialidade do meu corpo, para atingir um estágio de equilíbrio sensorial em
que o refúgio da solidão contemplativa me permita reviver as memórias da velha
infância das minhas emoções.
Só desejo, agora, uma "madeleine"
(bolinho muito comum na França de Marcel Proust), molhada no chá, na doce
esperança de que a minha consciência mergulhe no passado, em busca do tempo
perdido, seguindo os difíceis caminhos de Charles Swann em sua paixão por Odette
de Crécy. Se não puder experimentar os sentimentos de ódio, culpa e ciúme, com
pitadas de amor edipiano, nem as temporadas na provinciana Combray, anseio ao
menos reviver os primeiros contatos com as pessoas que enterrei nos caminhos da
minha existência, que envelheceram e, finalmente, desapareceram, sepultadas no
meu esquecimento. Por ironia do destino, enterrei os vivos, e despertei
no meu próprio velório!
Como Charles Swann, personagem
de Marcel Proust, deixei de me sentir medíocre, contingente e mortal. De onde
me teria vindo essa energia tão poderosa? Talvez não tenha sido das “madeleines” da minha infância, mas, irônica
e contraditoriamente, dos vampiros do mundo real, que não pretendiam, apenas, sugar o meu sangue, mas a minha alma e a vontade de
viver. Esse pálido morto-vivo, que caminha sem destino na Ipanema dos
bem-aventurados, agora viverá eternamente, cavando as sepulturas onde
enterraram a sua felicidade.
Quem sabe, desenterrando
os vivos, posso usufruir da felicidade que nunca tive ou, pelo menos,
compreender os desatinos de quem passou pela minha vida sem deixar marcas,
certo de algum dia poder perdoá-los! Quem sabe, posso ser feliz e, nesse processo,
também, me perdoar.
Sonhando com a garota do corpo dourado, com seu balançado, que é mais que um poema, continuei a caminhar naquele cenário de culto ao corpo, embora me sentisse obsoleto na linguagem estética do meu físico decadente. Enquanto isso, desfilava a minha crise de meia-idade e lutava para não envelhecer o espírito!
Logo eu, que até pouco
tempo só olhava o horizonte, desdenhando tempestades e tsunamis, agora me
surpreendo de costas para o futuro e alheio ao presente, dando passos inseguros,
a contemplar o passado. Os meus olhos, despidos daquela arrogância da
juventude, insistem em divisar as trilhas já percorridas, lamentando que os
novos caminhos sejam cada vez mais curtos e os do passado, cada vez mais longos.
Infelizmente, tenho mais passado que futuro! Enquanto isso, o presente se
arrasta, teimosamente, sufocando aquele grito de felicidade, que não me sai da
garganta.
Para não caminhar
sozinho, a saudade me acompanha! Saudade do que perdi, saudade do que deixei de
ter, pelo simples medo de tentar! Saudade dos sorrisos, que ignorei, por estar
ocupado em outras questões, agora sem importância; saudade dos vivos, que
enterrei na minha própria consciência!
Vamos lá, meu velho,
disse à minha própria imagem refletida no celular. Desenterre seus vivos,
porque dos mortos a natureza cuida!
Tomei uma decisão: vou
ligar para a minha mãe! Mas como? Nem sei o telefone dela! E o meu irmão,
por onde anda? Quem sabe, se eu correr contra o tempo, os meus filhos ainda me reconheçam...
Parei no “Quase Nove”,
o Quiosque da caipirinha e da Bossa Nova, escutei o “Samba da Bênção” e pedi licença ao “capitão do mato Vinicius de Moraes, Poeta e Diplomata, o branco mais
preto do Brasil, na linha direta de Xangô”. “Saravá! A bênção, que eu vou partir”. Tomei um drinque e segui meu
caminho em busca do tempo perdido.
O fim? Não! Apenas o
começo de tudo...