segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Desenterre seus vivos, porque dos mortos a natureza cuida...

Desenterre seus vivos, porque dos mortos a natureza cuida...

Crônica escrita por Jorge Araken Filho


Aliviado, mas sem ânimo para comemorar, cheguei ao ano 2013, número cabalístico, cheio de mistérios que a própria razão desconhece. Como Geraldo Vandré, vou “caminhando, cantando e seguindo a canção”. Na verdade, ainda desconheço o sentido da vida, mas acho que sobrevivi ao fim do mundo, apesar da infinita sabedoria dos Maias.

Em plena crise da meia-idade, solitário, depois da terceira separação, caminhava na Praia de Ipanema, tentando fugir dos desafios que haverei de enfrentar nessa fase difícil da vida, com poucos recursos e muitos esqueletos no armário, ainda sem sepultura, velhas histórias inacabadas e mal resolvidas.

Encorajado por essa estranha força que move os corações maltratados, mirava o mar de Ipanema e desfazia, lentamente, as infinitas memórias das experiências traumáticas por que passei, tentando transforma-las em maturidade, um saudável exercício para quem se aproxima do flanco descendente da escalada, aquele instante em que começamos a descer a ladeira e se inicia o lento e inexorável declínio do vigor físico, quando o corpo, muitas vezes, já não acompanha os devaneios da mente.

Mergulhado em reflexões filosóficas, torturava-me a ideia de que o mundo pudesse ter sido melhor, se eu não houvesse nascido, enfim, se a minha existência não houvesse tocado as vidas e os destinos das pessoas que conheci. Estariam melhores? Apenas diferentes, talvez. Distraído, comecei a lembrar de quantas vezes a minha existência alterou, para o bem ou para o mal, o curso de outras vidas. Acho que a maturidade, forçada pelas circunstâncias, se não me trouxe paz, ao menos revelou alguns “insights”, quase Freudianos, sobre os monstros que habitam o meu inconsciente, governado por instintos que ninguém gosta de ver no seu próprio mundo interior; só no do outros.

Seguia meus próprios medos e observava o mar, divagando ao ritmo das ondas, não sem observar, aqui e ali, os corpos dourados do sol de Ipanema, cantados em verso pelo poetinha Vinícius de Moraes.

 Ainda pior do que a visível decadência do ego, maldição dos que pensam muito e agem pouco, é a emersão desse processo doloroso ao plano da consciência! Diria Freud, ao me salvar desse perigoso mergulho na alma, que os meus “insights” intelectuais, que brotam sem a revivência atual dos vínculos afetivos e das experiências psíquicas prévias, acabam por não descarregar as emoções reprimidas. Pelo menos, responderia eu ao ilustre Doutor Freud, as nossas emoções afloram à consciência, mesmo sem o saudável processo catártico da transferência e da contratransferência! Traduzindo, posso ver os meus monstros interiores, embora não consiga domá-los, mas isso já é um grande progresso! Percebo, agora com indesejável frequência, os meus conflitos, revivendo-os como reedições inalteradas, meras reimpressões, talvez, de sentimentos afetuosos ou hostis, há muito reprimidos, mas não consigo descarregá-los das noites do inconsciente, para trazê-los à luz do dia.

Não raro, nas minhas experiências de celibato involuntário, mais prolongadas do que o desejável à conservação da sanidade, tento sublimar os instintos primitivos, revivendo, na arte poética e nos meus escritos, as experiências de sexualidade já apagadas da memória e relegadas ao inconsciente.

Mil pensamentos, devaneios de uma tarde do verão carioca, afastavam-me, contudo, daquela paisagem do meu Rio 40 graus, “Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”, cantada e decantada por Fernanda Abreu. Belas mulheres, corpos esculturais, praia cheia, muitos turistas à espera da garota do corpo dourado, do sol de Ipanema, que vem e que passa, a caminho do mar. Ah, Vinícius, meu poetinha genial, bendito vagabundo, só você capturou a verdadeira essência da mulher carioca, a musa das lajes do imaginário masculino! Mas aquela efervescência ficava imperceptível ao coração e à mente, embora não me passasse despercebida aos olhos.

Num raro momento de lucidez, percebi, ainda ao longe, uma figura que me parecia familiar, quase um fantasma do passado a assombrar os meus delírios freudianos. Imerso em autocomiseração, culpando o mundo pelos meus repetidos fracassos, preferi me afastar do caminho daquele personagem, e continuei a contemplar, com piedade, o meu próprio umbigo, carcomido pelo rancor. Baixei a cabeça, quase irrefletidamente, e passei a caminhar na ciclovia, escondendo-me em meio a um grupo de turistas orientais, que passeava entre sorrisos, com as suas câmeras vistosas e filmadoras "hi-tech".

Imaginando haver escapado do encontro indesejado, já retomava o caminho, quando ouvi um grito familiar:

— Companheiro, é você? Não acredito que saíste, finalmente, do teu esconderijo nas Terras de Gálvez! O que te trouxe ao Rio?

— Olá, meu ilustre amigo! Faz tempo que não nos vemos! Vim ao Rio, acompanhando meu pai, que estava doente, e agora, com o seu retorno ao Acre, dedico-me, de corpo e alma, ao ócio criativo. —, respondi, meio sem graça, mas imaginando que a minissérie da Rede Globo, escrita por Glória Perez, uma ilustre acreana, já fizera algo de bom: um carioca da Zona Sul, que chama o Nordeste de Norte, os nordestinos de “paraíbas” e vê os Povos da Floresta como primitivos e incultos, já ouvira falar de Luis Gálvez Rodríguez de Arias! Nem tudo estava perdido, pensei... Indaguei-lhe sobre as novidades, já apreensivo, temendo que ele as contasse, desfiando o seu rosário de realizações prodigiosas, certamente muito distantes das pequenas conquistas do meu passado inglório. 

— Você nem imagina o que passei há dois anos! Simplesmente morri! — disse-me com uma pitada de orgulho, que me cheirava mais a bravata do que a realidade.

— Morreu? Como assim?

— Morri e despertei no meu próprio velório! Descobri que sofro de catalepsia patológica, a doença dos enterrados vivos. Saiu até nos jornais! Você não soube? Ah, esqueci que você mora no meio da selva! Mas lá vocês não recebem sinais de fumaça? — indagou jocosamente, inspirando-se, por certo, nos filmes americanos dos tempos de outrora, quando os “civilizados” praticavam o genocídio contra seus ancestrais.

Já irritado com aquele “fantasma” engraçadinho (sequer lembrara seu nome), preferi não desdenhar aquele personagem carioca, que já se revelava assim tão pequeno, quase diminuto, escondido sob o manto do preconceito, que corrói os pobres de espírito, especialmente os que não beberam as águas inebriantes dos Rios da Amazônia. E confesso que nunca abandonei a alma carioca, apesar de comer “baixaria” no mercado do Bosque e de me deliciar com rabada no tucupi, devorada sem piedade, com os ossos bem seguros pelas mãos. Perguntei-lhe, apenas, sobre a experiência de quase morte, não por interesse no “amigo”, mas por simples curiosidade. Ele comentou haver sofrido um ataque de catalepsia, acrescentando, com ar professoral, tratar-se de um distúrbio que impede o doente de se movimentar, não obstante continuem funcionando os sentidos e as funções vitais, que, contudo, ficam desacelerados, simulando a morte.

— Levantei-me do caixão em pleno velório, causando pânico entre os parentes e amigos, que já se deliciavam com Nescau e bolachas, fartamente servidos. Acabei sabendo que alguns “amigos” já comentavam, entre segredos, que eu merecera a morte; outros acrescentavam, com pitadas de humor negro, que a viúva, antes mesmo de esfriar o defunto, já flertava com o meu chefe.

— Caro amigo, infelizmente um compromisso inadiável me chama, mas gostaria de continuar a nossa conversa em outra hora. — retruquei, ansioso por retomar o meu caminho solitário e com a viva esperança de que ele não percebesse que ainda não trocáramos os números de telefone.

— Ligue para o meu celular! — ele respondeu, fornecendo, com estranha e sincera alegria, todos os seus telefones e até o endereço de casa.

Ainda chocado com a revelação, porém incrédulo, comecei a divagar sobre a morte. Na verdade, ser enterrado vivo deve ser a maior e mais profunda das fobias do homem, inspiração de centenas de filmes de horror, que exploram o mito dos vampiros e dos zumbis, mortos-vivos sugadores de sangue e comedores de carne humana.

Lembrei-me de uma antiga história, talvez uma lenda urbana, que correu o mundo, nos anos 70, sobre a morte do ator Sergio Cardoso, que sofria de catalepsia e teria sido enterrado vivo, fato negado pela família e por amigos. Lembrei-me, ainda, dos rumores sobre a catalepsia do cantor Aladim, da dupla sertaneja Alan e Aladim, que teve o corpo misteriosamente exumado e estaria de bruços, com as unhas cravadas por farpas de madeira. Dizia a lenda, ainda, que a tampa do caixão estaria crispada de arranhões, numa cena de desespero e horror. Contudo, o caso mais conhecido, que animou, por muitos anos, o imaginário popular, foi o do cantor Paulo Sérgio, que teria sido enterrado vivo, depois de um ataque de catalepsia. Ao menos, era o que diziam as histórias contadas à boca miúda na época da sua morte.

Como nunca confiei em lendas urbanas, continuava não acreditando naquela história, que me parecia demasiado fantasiosa, no mínimo um exagero de quem pretendia o seu minuto de fama...

Apesar da incredulidade, comecei a pensar na estranha sensação de estar morto na consciência dos outros. Ser enterrado vivo, na verdade, pode ser uma metáfora para a exploração do homem pelo capital, do homem pelo próprio homem ou, ainda, da perda da individualidade diante dos excessos da tecnologia da informação, que aproxima as pessoas, mas torna obsoleta e antiquada a sua privacidade.

Restam poucos momentos de reflexão solitária, instantes em que possamos mergulhar no nosso próprio ego, sem medo de ser beliscado pelos papagaios da rede globalizada, que propagam a sabedoria alheia, sem pudores e sem a insubstituível experiência da vida. Nos tempos modernos, a individualidade se dilui nas redes sociais, universo onde o público e o privado se misturam e se confundem numa simbiose caótica e febril, que não propicia, porém, o respeito à alteridade. Estamos em permanente troca com o outro, mas não respeitamos necessariamente o seu espaço. As interações nas redes sociais, que poderiam ser saudáveis, se nos despíssemos da máscara da hipocrisia, esbarram no muro da contemplação narcísica, e todos “ficam”, mas ninguém permanece no coração do outro. Só navegamos na superfície das nossas emoções. Muita exposição na rede, milhares de “amigos”, mas, na verdade, não conhecemos ninguém! Acho que nos enterramos vivos...

Não raro, e por não termos qualquer pensamento inteligente a compartilhar (“Oh! Bendito o que semeia livros, livros à mão cheia, e manda o povo pensar!” — diria Castro Alves, lamentando a nossa aversão à leitura), acabamos vítimas do narcisismo digital desses tempos de “Big Brother” (nem George Orwell, a bem da verdade, chegaria tão longe), e caímos de amores pela nossa própria imagem, tristemente refletida na aldeia global e capturada no Instagram. Esse é o verdadeiro “homem, lobo do próprio homem”, pensei, lembrando-me da velha sentença de Plauto.

Continuei caminhando, mas, agora, com a nítida sensação de que algo mudara no meu universo egoísta e  particular: comecei a pensar que ser enterrado vivo também poderia ser a metáfora da minha própria existência, pois enterrei muitas pessoas queridas, ainda vivas, sepultando-as sob sete palmos de esquecimento. E acabei enterrado por elas...

Em regressão à fase edipiana, pensei na minha mãe, que não vejo há muito tempo, embora a sua residência esteja a menos de meia hora de onde me “escondo” dos fantasmas do armário, que assombram as minhas noites mal dormidas. E os meus filhos, que estão a mais de 4 mil quilômetros, não os vejo há mais tempo do que os laços de amor recomendam! Lembrei-me, ainda, do meu irmão, que não vejo há muitos anos, e pensei nos amigos da velha infância, que foram enterrados vivos e, malgrado a minha pureza d’alma, acabaram sepultados no esquecimento e na injustiça dos meus julgamentos de caráter.

Mas somos juízes benevolentes, quando examinamos os nossos atos, que reconhecemos, quase sempre, como justos e bondosos, e demasiado intolerantes com os de outrem. . . O amor próprio, por vezes, faz colorido o pior dos nossos atos, mas não aceita as pequenas falhas dos amigos e parentes, mesmo quando revelam boas intenções.

Aquela frase do velho colega de faculdade, cujo nome não me recordo, ainda martela a minha consciência:

— Morri e despertei no meu próprio velório!

Será que a solidão, o verdadeiro mal do século, não é fruto das nossas próprias escolhas? Comecei a imaginar que a sepultura em que fui enterrado é a mesma que cavei para os amigos e parentes que abandonei pelo caminho.

Para não enlouquecer, comecei a imaginar que os espíritos verdadeiramente livres são filhos de longas e torturantes solidões, que lhes proporcionam, como recompensa, o privilégio da liberdade diante do poder e da dependência econômica, política e, principalmente, emocional. Livres da coerção dos relacionamentos e das conveniências sociais, aprendemos a viver e a experimentar a felicidade sem o outro e a despeito dele. É a dolorosa conquista da maturidade pelo espírito livre, que, recolhido em si mesmo e até enterrando pessoas vivas, pode contemplar as próprias fraquezas, fazendo do seu interior, do corpo e da mente, uma intransponível couraça, capaz de desviar de si as vicissitudes da vida e os vampiros de almas, que se alimentam do sangue puro dos solitários. Encontrar na solidão uma recompensa pode ser sinal de alienação e loucura, mas é o único fio que liga o solitário à vida.

Em ascese monástica, forçada pelas minhas próprias escolhas, desligo-me da imperfeição e materialidade do meu corpo, para atingir um estágio de equilíbrio sensorial em que o refúgio da solidão contemplativa me permita reviver as memórias da velha infância das minhas emoções.

Só desejo, agora, uma "madeleine" (bolinho muito comum na França de Marcel Proust), molhada no chá, na doce esperança de que a minha consciência mergulhe no passado, em busca do tempo perdido, seguindo os difíceis caminhos de Charles Swann em sua paixão por Odette de Crécy. Se não puder experimentar os sentimentos de ódio, culpa e ciúme, com pitadas de amor edipiano, nem as temporadas na provinciana Combray, anseio ao menos reviver os primeiros contatos com as pessoas que enterrei nos caminhos da minha existência, que envelheceram e, finalmente, desapareceram, sepultadas no meu esquecimento. Por ironia do destino, enterrei os vivos, e despertei no meu próprio velório!

Como Charles Swann, personagem de Marcel Proust, deixei de me sentir medíocre, contingente e mortal. De onde me teria vindo essa energia tão poderosa? Talvez não tenha sido das  “madeleines” da minha infância, mas, irônica e contraditoriamente, dos vampiros do mundo real, que não pretendiam, apenas, sugar  o meu sangue, mas a minha alma e a vontade de viver. Esse pálido morto-vivo, que caminha sem destino na Ipanema dos bem-aventurados, agora viverá eternamente, cavando as sepulturas onde enterraram a sua felicidade.

Quem sabe, desenterrando os vivos, posso usufruir da felicidade que nunca tive ou, pelo menos, compreender os desatinos de quem passou pela minha vida sem deixar marcas, certo de algum dia poder perdoá-los! Quem sabe, posso ser feliz e, nesse processo, também, me perdoar.

Sonhando com a garota do corpo dourado, com seu balançado, que é mais que um poema, continuei a caminhar naquele cenário de culto ao corpo, embora me sentisse obsoleto na linguagem estética do meu físico decadente. Enquanto isso, desfilava a minha crise de meia-idade e lutava para não envelhecer o espírito!

Logo eu, que até pouco tempo só olhava o horizonte, desdenhando tempestades e tsunamis, agora me surpreendo de costas para o futuro e alheio ao presente, dando passos inseguros, a contemplar o passado. Os meus olhos, despidos daquela arrogância da juventude, insistem em divisar as trilhas já percorridas, lamentando que os novos caminhos sejam cada vez mais curtos e os do passado, cada vez mais longos. Infelizmente, tenho mais passado que futuro! Enquanto isso, o presente se arrasta, teimosamente, sufocando aquele grito de felicidade, que não me sai da garganta.

Para não caminhar sozinho, a saudade me acompanha! Saudade do que perdi, saudade do que deixei de ter, pelo simples medo de tentar! Saudade dos sorrisos, que ignorei, por estar ocupado em outras questões, agora sem importância; saudade dos vivos, que enterrei na minha própria consciência!

Vamos lá, meu velho, disse à minha própria imagem refletida no celular. Desenterre seus vivos, porque dos mortos a natureza cuida!

Tomei uma decisão: vou ligar para a minha mãe! Mas como? Nem sei o telefone dela! E o meu irmão, por onde anda? Quem sabe, se eu correr contra o tempo, os meus filhos ainda me reconheçam...

Parei no “Quase Nove”, o Quiosque da caipirinha e da Bossa Nova, escutei o “Samba da Bênção” e pedi licença ao “capitão do mato Vinicius de Moraes, Poeta e Diplomata, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô”.Saravá! A bênção, que eu vou partir”. Tomei um drinque e segui meu caminho em busca do tempo perdido.

O fim? Não! Apenas o começo de tudo...

Rio de janeiro, 19 de janeiro de 2013.  



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